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 Eixo 4: “paraíso dos amores infantis”

Carmen Silvia Cervelatti
Membro da EBP/AMP
Camila Colás
Membro da EBP/AMP
Participantes da Comissão de Orientação das XIII Jornadas da EBP-SP

 

“É claro que entre os sexos que sexuados são (embora o sexo só se inscreva pela não relação) existem encontros.

Existe o feliz acaso [bon heur]. Aliás, só existe isso: felicidade do acaso! Os ‘seres’ falantes são felizes, felizes por natureza, é desta maneira, inclusive, tudo o que lhes resta.”[1]

“Falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico”[2], por isso se não existissem os impasses do amor, não existiria a psicanálise. As pessoas falam muito dos encontros e dos desencontros amorosos, associando-os, de alguma maneira, ao amor objetal infantil.

A expressão “paraíso dos amores infantis” foi cunhada por Lacan[3] para nos dizer que o inconsciente são pensamentos articulados, o “Alhures”. Ele pode ser reduzido “à forma de uma nostalgia, de um Paraíso perdido ou futuro; o que encontramos aí é o paraíso dos amores infantis, onde Baudelaire de Deus!, ele se abstém de coisas escandalosas”. No paraíso dos amores infantis não há o escandaloso do encontro com o corpo sexuado, o corpo como instrumento de gozo no encontro sexual.

Em “Paraísos artificiais”, Baudelaire associa tais paraísos a um estado de espírito que se busca a transcendência, muitas vezes ligada à arte e ao uso de drogas. São artifícios para fugir da realidade humana, para fazer existir a relação sexual, lá onde não há.

Sigamos Freud com os amores infantis. O “amor feliz” está relacionado à nostalgia de um objeto perdido, o qual não passaria de uma cena fantasiada, que o sujeito busca repetir no decorrer de sua história. “O impasse sexual secreta as ficções que racionalizam a impossibilidade da qual provém”[4].

Do autoerotismo sobrevém o narcisismo primário como um acréscimo, “uma nova ação psíquica”[5] na vida pulsional. O que dá sustentação para a passagem do autoerótico ao narcísico é o estádio do espelho lacaniano. O mundo imaginário é um mundo instável, de sombras, um mundo de loucura onde reina o Desejo da Mãe, caótico, fora das insígnias do Nome-do-Pai. Nesta fronteira encontramos vários diagnósticos: do autismo à psicose e a neurose quando o amor se fez objetal, mas retorna narcísico. Para Freud, na parafrenia, não ser amado corresponde um aumento do amor próprio e na neurose uma diminuição. A devastação feminina também se insere no pré-edípico.

Freud observou que “todo ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e a mulher que o cria”[6], deixando traços psíquicos que se manifestam na vida amorosa, nas relações de objeto. A libido, sempre narcísica, circula entre o eu e o outro, seus objetos, podendo retornar ao eu. “O retorno da libido objetal ao Eu, sua transformação em narcisismo, representa como que um amor feliz novamente e, por outro lado, um real amor feliz corresponde ao estado primordial em que libido de objeto e libido do Eu não se distinguem uma da outra”[7].

No enamoramento há transbordamento da libido do Eu para o objeto. “Ele tem o poder de levantar repressões e restaurar perversões. Ele eleva o objeto sexual a ideal sexual. Como, no tipo objetal ou de apoio, ele sucede com base no cumprimento de condições de amor infantis, pode-se dizer que tudo o que preencher tal condição de amor será idealizado”[8]. Se levanta o recalque e restaura perversões, situamos aqui os amores loucos?

“O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal”[9]; não há renúncia da satisfação infantil, o sujeito não quer se privar da perfeição narcisista. Vê-se aí a busca apaixonada pelos corpos perfeitos, pelos ideais de beleza como ideal narcísico.

Enquanto “o amor, em sua essência, é narcísico”[10], trata-se, portanto, do amor imaginário, especular porque é o amor que se joga entre o eu e o outro, seus objetos. Nessa parceria, o eu funciona como sombra do outro, e o jogo se dá mediante uma identificação à imagem do outro, visando a uma imagem una, como se voltasse ao paraíso perdido, ao júbilo do estádio do espelho. O corpo sob as vestimentas, o corpo nu, talvez seja o objeto a, um resto que dá sustentação à imagem e não faz signo ao amor. Por isso, ainda que recíproco, diz Lacan, o amor é impotente “porque ignora que á apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos … dois sexos”[11].

“Não é senão da vestimenta da imagem de si, que vem envolver o objeto causa do desejo, que se sustenta mais frequentemente – é mesmo a articulação da análise – a relação objetal”[12].

O mal-estar contemporâneo se traduz em rivalidade, em choque, perceptível nas guerras entre civilizações diversas, por vezes antagônicas, por disputas de territórios e pela hegemonia de poder. Estamos num mundo aguerrido, belicoso, presente nas relações entre as pessoas. Miller pontua que “o Simbólico se consagra à imagem”[13] porque não consegue perfurar o Imaginário, gerando a decadência da virtude ficcional da verdade em nossos tempos.

Depois da conexão dos discursos do capitalista e da ciência se faz crer na possibilidade de um gozo sem o perturbador que há no amor. A promessa é de um gozo imediato, vislumbrado nas mais diversas práticas, e saciável pelas fantasias, com ou sem a presença dos corpos. Os corpos cobertos por tatuagens, músculos, destituídos das carnes da sexualidade, tanto pelo desaparecimento (anorexia) quanto pelo encobrimento (obesidade), enaltecendo um ego diferente do freudiano, inspirado em Joyce? Contrata-se maneiras de gozo que ignoram o amor e o desejo. Como pensar a relação que se estabelece com a inteligência artificial, qual é essa nova forma de gozo que passa por não ter o encontro com o corpo sexuado? Um amor ainda solitário, mas nem tanto?

Dos amores infantis, da relação com os primeiros objetos, também convidamos a um passeio pela clínica das adições, das compulsões, dos amores sem o Outro, narcísicos por excelência, do amor na psicose, dos amores impossíveis, dos amores solitários e outros temas. Haveria amor possível, quando o mais-de-gozar oferece aquilo que se vislumbra como um paraíso artificial?

Podemos nos perguntar com Miller, se aqui haveria como ponto de partida “esta figura do amor que não quer saber nada, do amor cego, o amor situado como contrário do saber. É um amor fundado na ignorância do desejo”. Sabemos que o desejo é fundado sobre um eu não sei e por estrutura, insatisfeito e por isso pode ir ao infinito. Miller, sobre as consequências que podemos extrair da clínica em relação à demanda e do que concerne ao objeto de gozo, diz: “especifiquemos o que liga a demanda ao amor – pode-se demandar amor, ao passo que não se pode demandar desejo”[14].

Não há um amor igual a outro. Quando transitamos num território que vai mais além da repetição, então o amor não é mais sempre o mesmo, é quando há a possibilidade de ser sempre Outro para cada Um[15]. O amor desperta um incômodo, busca-se a certeza, mas se dá de cara com a falta de uma fórmula que falta no real e que o simbólico e o imaginário tentam dar-lhe uma razão. “O real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”[16]. O real, que sempre permanece como enigma, mente ao parceiro e por isso inscreve-se como neurose, perversão ou psicose[17]. O gozo se decifra, razão do trabalho analítico pela via pulsional.

O fantasma em suas três dimensões nos ajuda a pensar a clínica atual. No imaginário há “a produção das imagens dos aspectos do mundo, uma produção imaginária dos personagens do ambiente do sujeito”. No simbólico se trata “de uma pequena história que deve obedecer a determinadas regras, certas leis de construção, que são as leis da língua”, que se decanta em uma frase. A dimensão real, fundamental, “tem um caráter de resíduo, que não pode ser modificada”. Presente durante toda a experiência analítica, sua construção e atravessamento, segue até o seu final, o qual se daria por uma modificação da relação do sujeito com o real do fantasma[18].

O discurso analítico “traz uma promessa: introduzir o novo. E isso, coisa incrível, no campo a partir do qual se produz o inconsciente, já que seus impasses, certamente entre outros, revelam-se no amor”[19]. Com o amor de transferência “o sujeito é suposto saber em que ele consiste como sujeito do inconsciente, e é isso que é transferido ao analista”[20]. Também em “Televisão”, Lacan faz referência à ética do Bem-dizer, e vai contra a sexologia, pois “pela perversão não se pode construir nada de novo no amor”[21]. É pelo impasse de formulação, do impossível de cernir pelas palavras que impactam o corpo e pela inscrição dos acontecimentos de corpo que reside a chance de tocar o real e impedir que a verdade queira ser toda dita.

“O novo amor, como este signo que troca de discurso não é da ordem do ideal, sendo singular a cada sujeito. Seria o novo amor a produção de um novo discurso a partir de um acontecimento de corpo, como uma contrapartida singular ao amor narcísico? Seria ele o resultado da queda das identificações imaginárias que propiciaram a formação do Eu?”[22]

Lacan propôs um amor mais digno que o blá…blá…blá onde se borra sua autenticidade. Talvez uma das formas possíveis de nomear o amor mais digno nesta época em que os véus se desgarram, é aquele que possa sintomatizar-se de tal maneira que permita não fazer do gozo pura obscenidade[23]. “Mais que ‘uma construção de verdade’, como disse Alain Badiou, o amor é um pedaço de real que pode ser oferecido como possibilidade de fazê-lo funcionar como sinthoma, uma forma de oferecer à existência um furo através do qual possa respirar. Se o amor se amarra ao sintoma temos efetivamente a possibilidade de analisá-lo[24]”.

Laurent, em O Avesso da Biopolítica[25] na liçãoO gozo do corpo sustenta o sintoma”, traz um novo ponto de partida em relação ao amor que não se funda no narcisismo da imagem, mas na articulação do sujeito com o real, ou seja, “é o sinthoma que lhe dá uma substância”. Ele cita Miller “Uma definição do amor que não é narcísica; o amor narcísico é aquele que visa a uma imagem, enquanto o amor lacaniano é aquele que visa ao sujeito. O sujeito suposto é amor, na medida que introduz sentido e saber no real”. Como, a partir das condições do amor dadas pelo amor infantil, é possível sair da repetição e ir em direção à crença do sintoma e ao sinthoma?

 

 

[1] LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 553

[2] LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 89.

[3] LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 554

[4] LACAN, J. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 531.

[5] FREUD, S. Introdução ao narcisismo. Ensaios de metapsicologia e outros textos. In: Obras Completas. Vol. 12, p.19.

[6] FREUD, S. Introdução ao narcisismo. Ensaios de metapsicologia e outros textos. In: Obras Completas. Vol. 12, p.33.

[7] Idem, pp.47-48

[8] Idem, p.49.

[9] Idem, p.40.

[10] LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1982, p. 14.

[11] Idem.

[12] Idem, p.125.

[13] MILLER, J-A. El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005, p.14.

[14] MIILER, J. Objeto gozo. In: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n.82, 2020, p.31-32.

[15] https://www.jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/09/texto4_oscar-ventura.pdf

[16] LACAN, J. (1972-1973) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 178.

[17] LACAN, J. Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 515

[18] MILLER, J. Introducción a la clínica lacaniana. – Conferencias em España. Barcelona: Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, 2006, pp. 30-31.

[19] Idem, p. 529.

[20] Idem, p. 529-530,

[21] Idem, p. 532.

[22] https://www.jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/09/texto4_oscar-ventura.pdf

[23] https://www.jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/09/texto4_oscar-ventura.pdf

[24] https://www.jornadaebpmg.com.br/2020/wp-content/uploads/2020/09/texto4_oscar-ventura.pdf

[25] LAURENT, E. O Avesso da biopolítica, uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.73.

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