
Eixo 3 – (a)muro “é o que aparece em signos bizarros no corpo”
Camila Popadiuk
Membro da EBP/AMP
Cristiana Chacon Gallo
Membro da EBP/AMP
Participantes da Comissão de Orientação das XIII Jornadas da EBP-SP
O tema deste eixo de trabalho é uma citação de Lacan em seu Seminário 20 – Mais, ainda,[1] momento de seu ensino em que ele nos apresenta uma nova dimensão do amor, articulada ao saber e ao gozo. Trata-se, no entanto, de um gozo cuja causa é a iteração do significante Um sozinho e que produz marcas indeléveis, chamadas por Lacan de lalíngua, cujos efeitos se manifestam como afetos enigmáticos sobre o corpo.[2] O saber em jogo aqui não é a articulação significante S1-S2, mas sim um saber próprio ao gozo de lalíngua, isto é, “[…] um saber que se trata apenas de decifrar, já que ele consiste em um ciframento”.[3] Estamos, portanto, no campo do gozo não-todo fálico, o que abre as vias para a vertente do real no amor.
Situadas brevemente essas novas perspectivas sobre o gozo e o saber, abordemos o amor pela via da lógica do não-todo – distinta da vertente do simbólico no amor e da dialética do desejo, onde a falta ocupa um lugar central. Nesta perspectiva do gozo feminino, o amor tem como referência o corpo, e, portanto, o gozo do corpo do Outro, tendo como princípio de partida a inexistência da relação sexual.
A partir dessa perspectiva conceitual, na qual o Outro é o corpo próprio, o amor assume a modalidade do encontro, pois ele acontece de maneira sempre contingente, atestando, assim, a impossibilidade de escrever a relação sexual. Dito de outra forma: se a contingência é o que cessa de não se escrever, é porque isso não cessa de não se escrever, ou seja, a relação entre os sexos. Não há um saber sobre a sexualidade humana, ou seja, não há um saber prévio que diga como abordar o Outro sexo. O amor vela, portanto, a ausência da relação sexual. Ele “é, como indica Miller, a abreviação do encontro com o gozo e com o Outro, sob a forma do contingente”.[4]
Ainda assim, Lacan afirma que existem encontros entre os seres sexuados.[5] De fato, pela via da contingência, “não há outra coisa senão encontro, o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço de seu exílio, […] como falante, […] da relação sexual”.[6] Sim, “Existe o feliz acaso. Aliás, só existe isso: felicidade do acaso!”,[7] enfatiza Lacan.
Contudo, não basta o acaso para que um encontro aconteça. É preciso querer saber alguma coisa sobre isso que produz afetos. Pois, quando não se quer saber nada sobre isso que goza, sabemos onde isso pode, talvez, culminar: no ódio e na consequente tentativa de destruição do outro, ou de si mesmo. Assim como o amor tem sua raiz no Um sozinho, também o ódio encontra aí sua origem. É por isso que Lacan afirma que “o verdadeiro amor desemboca no ódio”[8]: porque ele visa o Ser. Quando o gozo não se articula a um saber, a prova de amor pode se apoiar na máxima superegoica, na qual “a paixão inclina o sujeito a uma região onde a ausência de limite não remete mais ao infinito do amor, mas ao ilimitado de um gozo que acaba por envenená-lo”.[9]
Como aponta Clotilde Leguil, “A narrativa sobre o amor [hoje] mudou. Um véu se levantou sobre a obscuridade da pulsão, que pode levar o sujeito a se perder na destruição. Em nome do amor. Pelo amor. Por amor”.[10] Assim, quando nada faz limite ao gozo do amor, até onde ele pode ir? Como se manifestam os efeitos dessa recusa ao saber inconsciente na vida conjugal contemporânea? De que maneira se evidencia essa face destrutiva do amor que fere e machuca, quando ele “assume a forma de um novo supereu?”[11]
Lacan pergunta: “De onde parte o que é capaz, de maneira não necessária, e não suficiente, de responder pelo gozo do corpo do Outro?”.[12] Ele responde: É do amuro.[13] “O amuro é o que aparece em signos bizarros no corpo”.[14] No entanto, aparecer em signos bizarros no corpo não é o mesmo que fazer signo, como o amor faz, pois, como Lacan nos adverte: “O gozo do corpo do Outro não é o signo do amor”.[15] Esses signos bizarros são marcas, traços do encontro da língua com o corpo – marcas de um gozo impossível de dizer; efeitos do Um sozinho que não se articula com nenhum outro significante. O (a)muro é, portanto, o que se inscreve no corpo. E “na perspectiva da não-relação sexual, […] os seres sexuados formam casal no nível do gozo”[16] e não da falta-a-ser.
Mas como um signo é reconhecido como tal? Lacan se interroga e, ao mesmo tempo, nos dá uma orientação: “O signo só tem alcance porque tem que ser decifrado.” É preciso, portanto, que os “signos bizarros no corpo” sejam “suscetíveis de provocar o desejo. Aí está a mola do amor”.[17] É nesse ponto que Lacan pode afirmar que “O amor faz signo e […] é sempre recíproco”,[18] pois “o amor demanda o amor […] mais… ainda”.[19] Este mais, ainda, ele prossegue, “é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda do amor”.[20] O amor é então, permeado pelas palavras que tentam dizer o impossível do gozo.
Lacan afirma que “Entre o homem e a mulher, há o amor. Entre o homem e o amor, há um mundo. Entre o homem e o mundo há um muro”.[21] É aqui que se localiza o lugar da castração – um ponto limite, uma subtração de gozo – que indica a existência de um gozo para além do princípio do prazer. Como diz Lacan, “para se ter uma ideia sadia do amor, talvez fosse preciso partir de que, quando ele entra em jogo, […] entre um homem e uma mulher, é sempre com o cacife da castração”.[22]
O amor, o amor, quer se comunique, quer flutua, quer se funde, é o amor, ora. O amor, o bem que a mãe quer ao filho, o (a)muro, basta pôr o a entre parênteses para deparar com aquilo que vemos todos os dias: que, mesmo entre a mãe e o filho, a relação que a mãe tem com a castração tem um bocado de importância.[23]
Assim, “[…] é sempre com o cacife da castração”[24] que se toma o amor a sério, podendo-se reconhecer as condições da partida desse jogo a partir dos objetos a. A escrita de (a)muro, com o objeto a destacado, coloca em evidência um termo que Lacan dirá não ter sentido, só “uma pequena borradela”,[25] mas que, justamente por não ser tomado na via do sentido ou de uma razão, pode permitir tocar o real em questão, uma réson, “alguma coisa ressoante”.[26] “As paredes, [muros], afirma Lacan, são feitas para circundar um vazio”.[27] Quais são as ressonâncias do (a)muro na nossa clínica de todos os dias?
É assim que (a)muro nos coloca em direção à dimensão do real no amor. Trata-se de um passo a dar na busca do atravessamento do “muro da linguagem”, para falar de um amor que não desconhece a castração e não visa fazer existir a relação sexual. Este neologismo de Lacan não apenas debocha do amor[28], como diz Miller, mas também se distancia da ideia de fusão e da forma ideal, própria ao amor. “(a)muro quer dizer, sobretudo, que é preciso atravessar, a cada vez, o muro da linguagem”[29] para fazer ressoar o eco da pulsão.
A famosa formulação, “Peço-te que recuses o que te ofereço […] porque não é isso”,[30] foi apresentada por Lacan como a verdadeira carta de amuro, no Seminário próximo a sua conferência “Estou falando com as paredes”.[31] Pedir, recusar e oferecer nos coloca às voltas com as relações de objeto. Mas, para além da demanda fundamental, sempre insaciável, em especial na experiência analítica, caberá ao analista reconhecer nesta carta apresentada pelo analisante, o “não é isso”. Lacan esclarece que o “não é isso” emerge do discurso que conjuga demanda e desejo, onde podemos reconhecer “a raiz do que vem a ser o objeto a”.[32]
Miller destaca a evidência que se obtém da psicanálise ao afirmar que o parceiro do sujeito é o “seu objeto a, seu mais-de-gozar e fundamentalmente o sintoma”.[33] Seguindo essa coordenada do objeto a, Laurent aproxima o saber fazer com o sintoma, no sentido dado por Lacan de desembaraçá-lo e manipulá-lo, do que se torna possível fazer na parceria sexual: “desembaraço […] por meio do qual se retiram os objetos a do corpo do outro”,[34] em uma perspectiva em que os registros encontram articulação.
(a)muro, em suas manifestações sintomáticas, afetos e em suas aparições no corpo, é o que nos interessa tratar neste eixo de trabalho, falando dos casos de amor de nossa clínica, inclusive daqueles entre analista e analisante, via transferência, em que se pode tocar os fundamentos da parceria. Trata-se de falar de traços, marcas no corpo que, pelo feliz acaso, encontram não um par, mas uma parceria, em direção a um amor mais digno.
Busquemos então tocar a réson nestas parcerias de hoje, para além das formas imaginárias de apresentação e das nomeações que buscam sustentá-las, pois como nos lembra Miller: “O parceiro tem várias caras. [Ele] é multifacetado. Muita variedade, muita diversidade, mas não deixem de procurar o parceiro. Não se deixem hipnotizar com a posição do sujeito sem se perguntarem: com quem ele joga a partida?”[35]
[1] LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 2ª ed. p. 13.
[2] Ibidem, p. 190.
[3] LACAN, J. (1975) Introdução à edição alemã dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 553.
[4] MILLER, J.-A. A teoria do parceiro. In: ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE (orgs.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. p. 156.
[5] LACAN (1985), op.cit., p. 553.
[6] LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, 2ª ed. p. 198.
[7] LACAN, J. (1975) Introdução à edição alemã dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 553.
[8] LACAN (1985), op. cit., p. 200.
[9] LEGUIL. C. L´ère du toxique : essai sur le nouveua malaise dans la civilisation. Paris: PUF, 2023. p. 114. (Tradução nossa).
[10] Ibidem, p. 115. (Tradução nossa).
[11] Ibidem, p. 126. (Tradução nossa).
[12] LACAN (1985), op. cit., p. 13.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem, p. 187.
[16] BOSQUIN-CAROZ, P. Présentation du thème du Congrès 2025 – Les amours douloureuses. Disponível em: https://www.nlscongress2025.amp-nls.org/nls-congres/2019/1/4/argument-1-5mr52-ewgke-paer5-rhzes-eepar-4wpfy-amecm-32tr3-pewb9-ppklc Acesso em: 24 jul. 2025. (Tradução nossa).
[17] LACAN, J. (1972-1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, 2ª ed. p. 69.
[18] Ibidem, p. 12.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem, p. 13.
[21] LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 90.
[22] Ibidem, p. 95.
[23] Ibidem, p. 95.
[24] Ibidem, p. 95.
[25] Ibidem, p. 85.
[26] LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 86.
[27] Ibidem, p. 80.
[28] MILLER, J.-A. Orientação. In: MILLER, Scilicet: o corpo falante, sobre o inconsciente no século 21. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016. p. 19.
[29] Ibidem, p. 20.
[30] LACAN, J. (1971-1972) O seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 79.
[31] LACAN, op. cit., (2011).
[32] LACAN, op. cit. (2012). p. 89.
[33] MILLER, J.-A. A teoria do parceiro. In: ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE (orgs.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. p. 156.
[34] LAURENT, É. O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 72.
[35] MILLER, J.-A. A teoria do parceiro. In: ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE (orgs.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. p. 161.