EIXO III – RISO: MODO DE USAR
ou
MANUAL DO RISO NA CLÍNICA
“A beleza do mundo […] tem dois gumes, um de riso, outro de angústia, cortando o coração ao meio”. Virgínia Woolf[1]
Cartel responsável:
Maria do Carmo Dias Batista (+ 1)
Mirmila Alves Musse
Tatiana Vidotti
Teresinha Natal Meirelles do Prado
Veridiana Marucio
- Informações de segurança
No pensamento ocidental há uma forte tradição de considerar o riso e o risível pelo prisma do julgamento, seja ele estético (Aristóteles), intelectual ou moral (Bergson). Não exploraremos esses pontos, já destacados nas apresentações dos eixos epistêmico e político. Na versão da clínica, terceira da série, trabalharemos o paradigma que inscreve o riso na descontinuidade do julgamento.[2]
Kant postula que o efeito de surpresa que desencadeia o riso reduz ao nada a tensão de uma espera. Freud, a partir da ideia kantiana, interessado e motivado pela perspectiva clínica, criou uma abordagem própria através da noção do riso como redutor da tensão. Introduzida em seu modelo econômico, a redução da tensão permitiu-lhe extrair três modalidades de riso: o cômico, o chiste e o humor.
- Especificações técnicas
O Cômico – não confundir com a comédia, definidora de um gênero literário ou cênico –neutraliza momentaneamente a inibição e produz uma descarga. Esse mecanismo pode ocasionar uma identificação passageira com um personagem cômico e aliviar os fardos pesados e insuportáveis da cultura. É indicado para reencontrar o riso infantil perdido.
O Chiste – recomenda-se também não o confundir com a comédia. Sua ação pode neutralizar o senso-comum e o uso habitual das palavras. À diferença do cômico, que age sobre a imagem do corpo e nas primeiras inibições que organizaram a vida do homem cultural (homo culturalis). O chiste opera com representações (Vorstellungen) que passaram pelo processo de recalque.
Atenção! Esta modalidade pode não estar presente em todos os casos. Nota-se seu efeito instantâneo, vivo e fulgurante. Às vezes, produz riso, mas não o riso da queda da imagem de um adulto sério e inibido pelos ideais correntes. Trata-se aqui de outro tipo de surpresa. |
O Humor – tem a função de drenar o afeto doloroso. Para ilustrar seu mecanismo, Freud evoca a anedota de um condenado que, levado à forca em uma segunda-feira, comenta: “A semana está começando bem!” […]. Em seguida, a caminho da execução, pede um cachecol para seu pescoço nu, para não pegar um resfriado.[3]
- Ação na prática clínica
Alguns analistas relatam fatos constrangedores e engraçados que levaram ao riso cômico, por exemplo, quando um analisante derruba um vaso na sala de espera e espalha terra por todo lado, ou quando o analista se atrapalha e tropeça no tapete da sala. Pode ser que um dos dois não ache graça, mas o efeito cômico está presente.
Com relação ao riso do chiste, o analista deve prestar atenção tanto à cadeia acústica quanto à cadeia significante e seus efeitos de sentido. Atenção: durante uma sessão de análise, pode acontecer passagem do lapso ao chiste.[4] As condensações ou deslocamentos, construídos como no exemplo conhecido de Freud, o familionário, são irrupções intempestivas que produzem um corte no sentido do que se quer dizer e consideradas lapsos que escapam ao sujeito. Aquele que o pronuncia não visa o riso, mas quem escuta pode dar-lhe o estatuto de chiste. O analista, portanto, na posição de terceiro, faz passar do lapso ao chiste.[5]
Ex.: dizer uma palavra em vez de outra, dobrá-la, comprimi-la, dar-lhe outro sentido. |
O chiste, ligado ao material verbal e à criatividade própria à linguagem, instala-se no registro da língua. Esse ponto o diferencia sensivelmente do humor, que pode produzir riso de algo que não é engraçado, podendo até ser trágico. O dito espirituoso, ao fazer rir, diminui a tensão e a carga da angústia.
Atenção! O chiste só é humorístico e desperta o riso quando preenche determinadas condições: surpresa, ambiguidade, afeto doloroso suprimido.
Woody Allen: “Não é que eu tenha medo da morte, mas preferiria estar em outro lugar quando ela acontecer”. |
O humor supõe trabalho, elaboração e criação. Não é a realidade que é engraçada, mas aquilo que dizemos, como propõe Lacan no Seminário 5, ao se perguntar sobre o que provoca o riso. Não seu sentido, mas sua interpretação, ou seu nonsense. Não o prazer que ele nos oferece, mas o que obtemos ao constatarmos que não há nada que possa nos satisfazer.
Atenção! Humor não é ironia. Diferem em reflexibilidade e universalidade. O irônico ri dos outros, o humorista ri de si ou de todos, inclui-se no riso. |
Freud apresenta formas possíveis do riso: do tipo colapso sonoro, descarga, irrupção brusca e para enfrentar a dependência inexorável em relação ao Outro da linguagem, desdramatizando e contornando aspectos ridículos dos sujeitos e das coisas. De um lado, potencializa o desamparo; de outro, há o triunfo de reduzi-lo a nada.
Se o riso cômico opera com a inibição e o riso do chiste com o sintoma, poderíamos definir o riso do humor, considerado por Freud uma defesa digna na vertente cômica do supereu, uma posição ética com relação à angústia? Maiores informações no item 5.
- Informações Práticas
No Seminário 5, Lacan evoca as variedades desse fenômeno, afirmando que “[…] a questão do riso ultrapassa muito amplamente tanto a do espirituoso quanto a do cômico”[6]. Segundo ele, há ainda o riso do riso, o que não convém, o incontido das crianças, o de angústia, o de nervoso da vítima, o de desespero. O riso toca também a imitação, o dublê, o sósia, a máscara e o que desmascara. Está situado no campo da imagem: “O riso eclode [ao ver alguém levar um tombo] na medida que, em nossa imaginação, o personagem continua sua marcha enquanto o que o sustenta de real fica ali, plantado e esborrachado no chão”[7]. O riso é, portanto, o ridículo da verdade…
Como um afeto o riso escoa o que não tem cabimento, por exemplo, quando nos referimos aos acessos de riso como catarse. Mas, lembra Lacan, para que se possa rir do que remete ao cômico, ao chiste e ao humor, é preciso ser da mesma paróquia. É preciso minimamente acreditar no Outro.
Ainda no Seminário 5, Lacan retomará o riso como “a primeira comunicação verdadeira”[8] do bebê, mesmo antes da fala. Esse mecanismo fisiológico do sorriso, inclui relaxamento e satisfação, mas também chamado, apreensão e reconhecimento da presença de quem cuida. Na brincadeira que modula a presença do Outro, encontra-se a raiz da identificação, que ao mesmo tempo se opõe ao riso.
Há algo de preestabelecido, anterior à nossa existência, que determina os modos de fazer rir. O riso pode amortecer o absurdo de nosso destino e ao mesmo tempo afastar algo que só a experiência de uma análise proporciona, pois é conduzida pela paixão e não pelos afetos (tema que talvez requeira outro manual).
Os afetos são secundários, atingem o corpo de quem os experimenta, dirá Lacan. Eles enganam, assim como os sentimentos, pois nos afastam do real que nos interessa, não o sem-sentido, mas o fora do sentido, que extrapola o curso habitual de nossa existência. A regra não se aplica à angústia.
O riso apresentado neste manual pode ser um leve despertar, que antes de recobrir a falha que se abre como o ridículo da verdade, logo é recoberto de sentido; por isso a gargalhada é o sinal de que voltamos a dormir.
Para a psicanálise, interessa esse riso aqui nomeado como ‘do sujeito’?
Talvez o riso possa levar alguém a procurar um analista por nunca ter se levado a sério na vida ou, durante um tratamento, quando não pode falar de seu sofrimento sem rir.
Ex.: Freud ficou intrigado com o estranho sorriso do Homem dos Ratos ao relatar o suplício chinês. Sorria ao narrar a voracidade dos ratos escavando o ânus do prisioneiro. Sabe-se, há muito, da associação entre o “estranho sorriso” e o prazer na dor – primeira noção freudiana de gozo, conceituada por Lacan como gozo do sentido (jouis-sens).
Em outra cena, o HR conta que, aos três anos, foi surrado pelo pai. Enquanto era atingido nas nádegas, por não saber xingar, gritava: “seu lâmpada! seu lenço! seu prato!”. Ri o leitor de Freud. O menino foi punido por ter mordido a babá, num indício de atividade autoerótica. Pode ter se iniciado aí certo sadomasoquismo, descrito por Freud na neurose obsessiva (Observações sobre um caso de Neurose Obsessiva. In: Obras Completas, v. 9, p. 67-69). |
- Solução de problemas?
Haveria outro modo de riso que interesse à psicanálise? Qual? O riso do humor ou fora de todo humor? Recorremos à variação, em francês, do que em português designamos apenas como humor: há o humour, como trabalham Freud e Lacan nos textos já citados e há o humeur, destacado por JAM.[9]
Para ele, o humeur não é um termo clínico, pois a psicanálise não o considera um afeto. Diferentemente da angústia que, por sua estreita relação com a verdade, “para o sujeito, não engana”. O diagnóstico de transtorno do humor pressupõe, para a psiquiatria, uma linha que balize e determine os efeitos de regulação do humeur. Um equívoco, segundo JAM: além de não ser afeto, caso fosse possível fazer essa regulação, deveria ser entendido como gozo. O humeur se situa na “base contínua da existência subjetiva ou, se quisermos, na junção mais íntima do sentimento de vida para cada um.”[10]
Essa variação é esclarecedora: há o riso como efeito do humour e de fenômenos de corpo. O humour se associa à vertente cômica do supereu, tocando o sujeito na miséria de sua impotência; provoca riso no Outro e pode ser um tipo de tratamento diante do supereu e da angústia de castração. Por outro lado, há o humeur, na vertente do gozo do corpo, à disposição de uma desregulação do temperamento. Neste, o riso “estaria fora de todo humor”[11]. Ao contrário daquele, este tipo de humor não faz laço, pois em se tratando do gozo do Um, exclui e segrega o Outro.
Atenção! Qual riso seria uma posição ética diante da angústia? O do humour ou o do humeur? |
- Usos do riso na clínica
A questão central deste eixo são os usos do riso na clínica. Vejamos:
6.1 Gustavo Stiglitz[12] apresenta, a partir do riso, duas vertentes do humor: a da evidência da não-relação sexual à possibilidade de tomar o supereu como “motor de orientação em direção ao outro sexo”. Com o riso sustentava a ilusão da existência da relação sexual, quando suas escolhas amorosas eram cristalizadas pelo traço materno: “um olhar triste”. “Fazer-se palhaço do Outro” permitia-lhe devolver “aquilo que escasseava no Outro”.
Associar o significante palhaço à figura do analista será o motor da transferência negativa em seu último segmento de análise. Na infância, o palhaço era um “objeto de horror, com suas bocas abertas, devoradoras, de risos estridentes.” O humor, antes do lado do supereu, adquire outra versão para encarar o desejo do analista. Na transformação do objeto-voz materno de imposição ao gozo, ocorre uma inversão: o humor no amor pôde se transformar em ahumor, sem abandonar aquilo que caracterizava o mais singular de sua existência: “as palavras engenhosas e as torções da língua”.
6.2 Oscar Ventura é claro ao falar sobre a irrupção de uma gargalhada após a surpresa da decomposição de um significante no sonho, quando “uma figura sem forma salta […] e se precipita no vazio”. Esse impacto produzia “um ruído seco, fulminante e fugaz”, seguido de silêncio, angústia, mas também curiosidade. Ele pergunta: “Quem é?” Uma voz anônima responde: “É sueco”[13]. Ao despertar, a operação realizada pelo pensamento decompõe “sueco” em “su-eco”, produzindo uma “gargalhada intempestiva” que toma o corpo, como na infância, “quando uma palavra estranha, sem significação alguma, ao ser dita, precipitava um ataque de riso, desses que não se pode parar e que deixam o corpo leve, preparado para a contingência da vida.”[14]
Neste caso, o riso, como um acontecimento de corpo, produziu um corte: a partir do equívoco, a metonímia cessa, restando a letra. Ao corpo que ri, não há sentidos a serem atribuídos, restando outra satisfação: menos “escravo da metonímia” e mais “buscador de letras”.
6.3 Esthela Solano[15] relata um episódio de sua análise. Como de costume, às seis da tarde, chegou à sessão. Alguns minutos depois, Lacan a faz entrar no consultório. Ela diz: “Sonhei com uma mulher que vinha [venait] a Paris”. Lacan responde: “É isso”. E corta. Em direção à saída, tão desconcertada como sempre, escutou de repente de outro modo o que havia dito: “Uma mulher que quer [veut] nascer [naître] em Paris.” Ela pensa: Eureka! E começa a rir às gargalhadas. Uma nova dimensão se abriu. A partir desse dia “pôde segurar o sintoma pelas orelhas, pois não estavam mais tampadas, fechadas pela circularidade das significações […]. O tampão do sentido soltou-se de repente liberando a lalíngua do envoltório da linguagem”. Note-se que ela nasceu em Córdoba, Argentina, fez análise com Lacan por seis anos em Paris, cidade onde vive e pratica a psicanálise. A produção abrupta de sentido a partir do “querer nascer em Paris”, provocou uma gargalhada em vez de uma amplificação significante. Um acontecimento de corpo, vinculado ao gozo e ao real.
6.4 “Quanto mais somos santos, mais rimos”[16], frase de Lacan que encerra um dos textos de Dalila Arpin.[17] Jovem séria e estudiosa, sempre a melhor aluna da classe, cheia de louvores e medalhas. Adulta, é a “mulher-orquestra”, escabelo no qual sobe para parecer bela. Porém, angústia, pusilanimidade e pensamentos “cinzas” a assaltam a cada prova. Sua certeza é de fracasso, mesmo obtendo a nota máxima. Malgrado o pessimismo eterno, exibe um sorriso de mascarada. Depois de duas análises, escuta do terceiro e último analista: “É a sua morosidade”. Tenta de todas as formas separar-se desse fundo triste, identificada à mãe e ao avô materno, depressivos. Por outro lado, o bom humor do pai respondia perfeitamente à seriedade da mãe. Assim, ela escolhe parceiros belos e tenebrosos. Depois do encontro com a imagem de um primo humorista célebre, esboça sua solução: o humor pode tratar a morosidade. É o traço de ligação com seu parceiro atual, jovem e bem-humorado. Em efeito retardado, esse sinthoma, o humor, retoma o acontecimento originário do encontro do corpo com o gozo: a alegria. O equívoco está na entrada, a interjeição “Que séria!” transforma-se em “Que se ria!”.
6.5 Na contracapa do Seminário 23, JAM escreve:
“Assim como Dante pegando a mão de Virgílio para avançar pelos círculos do Inferno, Lacan pegava a de James Joyce, o ilegível irlandês, e, seguindo esse franzino Comandante dos Incrédulos, entrava com um passo titubeante na zona incandescente onde ardem e se retorcem mulheres-sintomas e homens-devastações. […] Riam, meus caros! Por favor, zombem! Nossa ilusão cômica está aí para isso. Assim, não saberão nada do que se desenrola aos seus olhos arregalados: o questionamento mais meditado, mais lúcido, mais intrépido da arte sem similar que Freud inventou, e que conhecemos sob o pseudônimo de psicanálise”.[18]
Esse questionamento risível da psicanálise, feito por Lacan, torna-se evidente em O aturdito, escrito no qual encontramos um Lacan Joyceano, como na frase a seguir, alusiva ao sem-sentido e ao riso: “O que me aborrece é que os aforismos, que aliás contento-me em apresentar em botão, transformem em refletores os fossos da metafísica (porque o númeno [noumène] é a chacota, a subsistência fútil…). Digo que eles provarão ser o mais-de-nonsense [plus-de-nonsense] mais engraçados, numa palavra, do que aquilo que assim nos conduz [nous mène] …”[19]
O chiste de Lacan na frase acima, númeno – nós mesmos [noumène – nous mème] e a ressonância de mais-de-nonsense com mais-de-gozar, conforme destaca Marie-Claude Sureau,[20] são demonstrações do esp de nonsense que surge no fim da análise e pode fazer rir.
- Manutenção e cuidados
7.1 Qual riso interessa à psicanálise? Algum riso não interessaria?
– O riso é um afeto e pode tocar o real, já o humeur não é um afeto e está ligado ao gozo.
– O riso é o ridículo da verdade, por isso nos interessa.
– Há uma diferença entre riso-afeto e riso-acontecimento. O riso-acontecimento não é o riso no Outro, nem o gozo tal como trabalhado por JAM com o termo em francês Humeur.
– E quanto ao riso que seria a encarnação do supereu contemporâneo (Goze!)?
7.2 Georges Perec escreveu A vida modo de usar[21] em 1987. Um manual, uma bula para mostrar o impossível de normatizar a vida; acaba descrevendo, uma a uma, as vidas dos moradores de um edifício em Paris, cortado longitudinalmente, tornando o manual um quebra-cabeças irônico e sem padrões.
Este é o texto do eixo clínico: seu título, inspirado em Perec; seu produto, um antimanual.