APRESENTAÇÃO
Niraldo de Oliveira Santos
Membro da EBP/AMP
Diretor Geral da EBP-SP
Por que a Escola Brasileira de Psicanálise, Seção São Paulo, realiza suas Jornadas anuais?
Uma jornada, no singular, é uma marcha ou um percurso que se faz em um dia; é uma viagem por terra, uma caminhada, uma andada; pode ser também uma empreitada militar, uma campanha, uma expedição. É derivada da palavra viaticum: do latim, via, “caminho”, “estrada”; sendo “viagem” e “jornada”, sinônimos”[1]. No sentido figurado, também designa uma transição de um fato ou conjunto de fatos que digam respeito a uma ou mais pessoas[2].
Portanto, nossas Jornadas, no plural – pois serão feitas em dois dias – visam a passagem de um ponto ao outro, não só no tempo, mas também na finalidade. Trata-se de um caminho que não pretendemos realizar sozinhos. Podemos dizer que esta viagem terá seu ápice nos dias 27 e 28 de outubro, mas começam desde já. A proposta é a de fazermos o percurso inteiro inserindo o corpo nesta expedição; por isso, resolvemos fazê-la exclusivamente presencial.
Para estas Jornadas que agora se iniciam, a Diretoria da EBP-SP escolheu Gustavo Oliveira Menezes para a Coordenação Geral; Rômulo Ferreira da Silva, para a Coordenação da Comissão de Orientação; e Gustavo Stiglitz, AME, membro da EOL e da AMP, como nosso convidado internacional. Juntamente com uma ampla Comissão Organizadora traçamos um roteiro inusitado, servindo-nos dos mapas elaborados por Freud e Lacan – que são constantemente atualizados pelo Campo Freudiano – para nos lançarmos no território do R.I.S.o e sua (re)percussão no tratamento psicanalítico e na nossa civilização.
Por que escolhemos este tema? Podemos iniciar dizendo que ele já estava no meio de nós. Vez por outra, nas reuniões da então Diretoria Adjunta e nos intervalos das atividades de psicanálise neste último ano, o tema do Witz e do riso voltava, e nos causava desejo de empreender um trabalho de investigação coletiva. Como o riso se articula ao objeto a, tema de trabalho proposto pela Diretoria da EBP-SP neste biênio? Lidar com os restos de nossas fantasias pode levar ao riso?
Frequentemente o riso e o cômico são associados ao divertimento e a algo de pouco sério. É o caso do riso imotivado das crianças; dos idiotas, que riem com frequência e de modo barulhento; e dos deuses da mitologia, que gargalham da exuberância de suas ações. Este “pouco sério” do riso é suscetível de se tornar anti-sério, ou até mesmo, subversivo[3]. Diferentemente do sorriso, associado à estética do belo, do disciplinado e do comedido, o riso distorce a simetria facial e faz contorcer o corpo, leva-o à descompostura. Com seu efeito liberador, o riso pode ser uma via de transgressão do pacto de obediência do humano aos signos dos costumes na ordem social.
Por eclipsar nossa subjetividade, o riso, mesmo que apenas por um espaço de um instante, falseia o que Kant chamou de Compreensão. Essa peculiaridade dá má reputação ao riso, pois o coloca em uma vizinhança com a loucura[4].
O riso e o sério são conciliáveis? É possível fazer do território do riso um lugar de verificação dos conceitos fundamentais para a clínica psicanalítica em nossa época? O que faz rir e vibrar o corpo em uma sessão de análise?
No Seminário 5, Lacan referiu que a questão do riso se achava longe de ser resolvida[5]. E que, mesmo o fato de dizer que este é próprio do homem, não é absolutamente certo. Para ele, o riso vai além tanto do espirituoso quanto do cômico. Diz-nos Lacan:
Existe a simples comunicação do riso, o riso do riso. Há o riso ligado ao fato de que não convém rir. O riso incontido das crianças em certas situações também merece reter a atenção. Há ainda um riso de angústia e até o da ameaça iminente, o riso nervoso da vítima que de repente se sente ameaçada por algo que ultrapassa até mesmo os limites de sua expectativa, o riso do desespero. E há até o riso do luto do qual se é bruscamente informado[6].
Porém, Lacan nos adverte de que devemos ser prudentes e termos cautela neste campo, para não corrermos o risco de resvalar para uma fenomenologia ou uma psicologia do riso. Ele nos convoca a irmos além do conjunto dos fenômenos do prazer.
Neste momento de seu ensino, Lacan situa o riso do lado do imaginário, quando se produzem quedas de tensão decorrentes da libertação da imagem[7]. No âmbito do imaginário, Lacan expõe a vertente dual do riso. No Witz, termo que ele preferiu manter em alemão, fica explícita a estrutura linguística, fazendo com que um ternário seja necessário: aquele que fala, o outro e a linguagem. Mas é no final de seu ensino que Lacan indica mais precisamente a marca do Witz para além do chiste. Como o riso pode tocar o corpo, liberando-o dos domínios da verdade? Será que aqui o riso seria esse lado do Witz capaz de tocar o corpo para além do sentido? Qual a vertente real do riso?
Para Gustavo Stiglitz, “há um efeito de afeto no corpo, tratável pelo significante, e um excedente/faltante que localizamos com os conceitos de objeto, letra, borda de semblante, umbigo, sinthoma”. E o Witz, continua Stiglitz, “reenlaça esse impossível de dizer, a fim de que algo do excedente fique enodado para o ser falante”, destacando que, por ser fundado no equívoco, o Witz teria a propriedade de articular “o Um e o vazio onde se situa o faltante/excedente”[8].
Estas são algumas vias pelas quais pretendemos caminhar nestas Jornadas. De todo modo, o que sabemos de partida é que nossa intenção é a de fazermos este percurso deixando de lado a tristeza e a covardia. Escolhemos a via do gaio saber! Gaio, o que revela alegria de modo jovial, foi o nome que escolhemos para o Boletim destas Jornadas. “Com seu gaio saber, Lacan nos lembra: nisso pode-se também rir”[9].
Em nome da Diretoria da EBP-SP, agradeço desde já as Comissões Organizadoras destas Jornadas, ao tempo em que convido a todos para o trabalho de pesquisa, escrita e transmissão em torno do nosso tema.