ABERTURA
DA VERDADE AO RISO
Gustavo Oliveira Menezes
Membro da EBP/AMP
Coordenador Geral das XII Jornadas da EBP-SP
“Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade”[1]. Recorro a esta citação de Umberto Eco em O nome da rosa na tentativa de encontrar um ponto de conexão entre o que trabalhamos nas últimas jornadas sobre a verdade e o gozo, e aquilo que pretendemos explorar este ano com o tema do riso.
Assim como a verdade só pode ser semi-dita, o universal do riso não existe. Os sujeitos riem, mas não todos, e riem de diferentes modos[2]. Em qualquer tentativa de cingir o riso, algo resta. Ao mesmo tempo, há uma distância entre dizer a verdade e rir desta. Tomando pela oposição que Miller nos ensinou a ler entre inconsciente transferencial e real, podemos nos perguntar: há o riso que se molda na ficção e o riso do Um sozinho?
No ensino de Lacan, quanto mais a verdade aparece como semblante e se abre a orientação do real, a experiência passa a ser conduzida em direção ao encontro do gozo não negativizável. Na perspectiva do impossível de dizer, o efeito de verdade é uma elucubração de saber sobre a lalíngua do corpo falante, e “o lugar do Outro deve ser buscado no corpo e não na linguagem”[3] como superfície de inscrição. Nesta mesma via, o sinthoma de um falasser “é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo”[4] que resiste ao sentido.
A clínica que tem como princípio “Todo mundo é louco” não anula a clínica estrutural, mas vai além e apaga as fronteiras, pois o sinthoma é fora da norma e das classificações. A forma neurótica de amarração dos três registros – Real, Simbólico, Imaginário – baseada na crença do Nome-do-Pai, torna-se apenas um regime particular do sinthoma. O nó borromeano, como uma escrita, muda o sentido a cada uso. O saber passa a ser da ordem do legível, é um ler de outro modo. Não tendo mais uma supremacia do Simbólico, deve-se tomar os três registros como equivalentes e enodados.
A verdade dá lugar ao nó[5]. O que toma a frente é o corpo, o corpo que se tem.
Diante do sintoma freudiano, a resposta de Lacan é seu sinthoma real: falar em deciframento nos remete à noção de “verdade do sintoma”, ao passo que seu uso lógico levaria ao real. Ao separar sintoma e verdade, Lacan dá lugar ao gozo. Seria o riso, para além do deciframento do sintoma, uma via para o real do gozo? O último ensino é um ir-além do Pai. Não existindo o Outro, o que mantém juntos o R.I.S.?
Miller afirma que “ao deslocar a interpretação do enquadre edipiano para o enquadre borromeano, é o próprio funcionamento da interpretação que muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”[6]. Se equívoco, mal-entendido, silêncio, tornam-se chaves para a interpretação, poderia o riso também fazer surgir um real fora do sentido? No final, um falasser não mais “atormentado pela verdade”[7] encontraria no riso o limite de “uma satisfação que marca o fim da análise”[8]?
Em seu seminário sobre O sinthoma, Lacan se coloca ao lado de Joyce para dizer que ambos fizeram uma escolha herética. Ele convoca a palavra latina haeresis por sua homofonia a com pronúncia francesa dos termos R.S.I. Segundo Lacan, “é preciso escolher a via por onde tomar a verdade”[9]: a escolha de ser herético de uma boa maneira “é aquela que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”[10]. A escolha é entre o sinthoma “ortodoxo”, “elevado ao semblante”, e entre “o sinthoma desnudado em sua estrutura e em seu real”[11]. Nesse sentido, “a via herética do sinthoma abre menos a perspectiva de encontrar a verdade revelada como saber inconsciente recalcado e mais a do saber-fazer com o Real sem lei nem sentido”[12]. A heresia lacaniana, o R.S.I., o R.I.S.o, é uma escolha pela singularidade do sinthoma.
“O riso é satânico, ele é, assim, profundamente humano. Ele é no homem a consequência da ideia de sua própria superioridade”[13], nos diz Baudelaire. No século XIX, o riso era sinal da loucura dos homens, estes que se creem superiores a tudo, e tem sua origem no fim da inocência diante das nações corrompidas que inventam a comédia e “se colocam a rir diabolicamente”[14].
Hoje em dia, o riso se generalizou e tomou diferentes formas. Não apenas a comédia saiu dos palcos para as telas dos smartphones, para os momentos cotidianos e por vezes para os debates políticos, como sofreu mutações até chegar aos memes que invadem os grupos de mensagem. Porém, o riso, mais “normatizado”, também se mantém na mira da censura e do cancelamento. Diante da crença n’A verdade, do relativismo absoluto que leva ao pior, talvez o riso possa fazer tremer o caráter fictício deste sistema por vezes segregativo, vertical e racista. Se, frente à nova ordem simbólica, a psicanálise orientada sobre o real restitui que nem tudo é semblante, não poderia o psicanalista, nesta orientação, convocar o riso?
Agradeço à Diretoria da Seção São Paulo pela escolha do meu nome para coordenar essas XII Jornadas. Além disso, tenho a alegria de compartilhar o trabalho com Rômulo Ferreira da Silva, coordenador da comissão de orientação, e com nosso convidado Gustavo Stiglitz. Agradeço igualmente a todos que aceitaram o convite para comporem as comissões organizadoras.
Temos adiante um grande trabalho. Serão mais três preparatórias, cada uma sobre um dos eixos temáticos, além do lançamento mensal do boletim “Gaio” que contará com contribuições de nossos colegas do Campo freudiano e daqueles que circulam na Seção São Paulo. O evento ocorrerá exclusivamente em formato presencial no Hotel Meliá Paulista, local que já nos é familiar. Teremos uma programação especialmente pensada para esta aposta. Antecipo que as mesas simultâneas, as quais vêm ganhando vivacidade nas últimas Jornadas, terão um lugar de maior destaque este ano. Em breve vocês terão acesso às normas de envio de trabalho, bem como as informações para as inscrições. Enfatizo também o trabalho em cartel: a organização das Jornadas, juntamente com a Diretoria de Cartéis da Seção SP, incentiva a formação destes pequenos grupos em torno do tema. Os interessados podem escrever para o e-mail cartelebpsp@gmail.com.
Para encerrar, gostaria de chamar a atenção para a imagem do cartaz: Demócrito, conhecido como o filósofo que ri. Citado por diversos escritores que abordaram o riso, como Rabelais em “Pantagruel e Gargântua” e Erasmus de Rotterdam em “O elogio da loucura”, sua propensão a rir sem cessar de tudo e de viver isolado do mundo o fez ser considerado louco. Diz a lenda que Hipócrates, o médico, é convidado para avaliar o filósofo. Ao longo da conversa regrada por contínuos risos, Hipócrates fica encantado por ter conhecido alguém de tamanha sabedoria. No diálogo, Demócrito zomba da condição humana, do ridículo, da ganância e dos grandes vícios.
E você, ri do quê?
Que possamos escolher pelo R.I.S.o de uma boa maneira!