
“Jogos do amor, parcerias contemporâneas”
Marilsa Basso – Membro da EBP/AMP
Coordenadora Geral das XIII Jornadas da EBP-SP
Acompanhar a atualidade a partir do que aparece na clínica é fundamental para o exercício da psicanálise, e localizar a posição do sujeito, assim como seus modos de gozo e as novas manifestações sintomáticas, é uma maneira ética de responder às diversas situações que nos são apresentadas. O amor está em jogo o tempo todo, na vida e na análise, desde seu começo até o final. Quais são os significantes mestres hoje e quais são os discursos que enlaçam ou desenlaçam os sujeitos? Quais as parcerias sintomáticas na da vida amorosa na contemporaneidade?
Na Seção São Paulo, sete anos atrás, tratamos do tema “Amor e sexo em tempos de (des)conexões”[1] e, depois de uma trajetória em outras Jornadas, voltamos então ao tema do amor. Seria isso uma tentativa de extrair o que há de novo, não sem o resto que dali se escandiu e que retorna como questão?
Sempre se falou de amor, como disse Lacan: “O amor, há muito tempo que só se fala disso… o amor visa o ser, isto é, aquilo que, na linguagem, mais escapa”[2]. Fala-se de amor na poesia, na música, na literatura, na filosofia e, claro, na psicanálise desde Freud. Nestas Jornadas, “Jogos do amor, parcerias contemporâneas”, privilegiaremos falar da clínica, dos casos, do amor de transferência, dos descasos, do desamor, dos afetos e desafetos, do sofrimento, da dor, das perdas, das satisfações e insatisfações e dos novos arranjos.
O que na clínica escutamos sobre o amor? O que nas ruas se fala sobre o amor? O que nos laços há de amor e de ódio? O que do amor marca uma vida, faz nascer e morrer? Qual é o oposto do amor? Podemos dizer de novos “estatutos do amor”? O que no amor há de jogos, desejo e gozo? São questões que ecoam e que poderão ser exploradas nas Jornadas que hoje lançamos.
Lacan fala de amor em muitos momentos de seu ensino, a começar pelo amor narcísico, quando trabalha a questão da imagem, do estádio do espelho, em que o amado é o próprio eu, mas fala também do amor cortês, do amor místico e das paixões. Temos então um tempo em que o amor aparece como ideal e, agora, um momento em que discutimos o declínio do patriarcado, tempo no qual o amor aparece sem referência ao pai, numa horizontalidade, não mais numa verticalidade, o que não é sem consequência para as parcerias amorosas contemporâneas.
No seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan toma a questão do objeto no amor elevado à dignidade da Coisa[3], relacionando-a à questão da sublimação. Em 1960-61, ao abordar a transferência, ele afirma que “o amor é um sentimento cômico” e que “é dar o que não se tem”[4]. Depois, no seminário sobre a angústia, vai dizer que “o amor é um fato cultural”[5] e, ao contrário do desejo, visa o ser, e que “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”[6]. Deixando o tema ainda mais complexo, no Seminário 11 ele diz: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais que tu — o objeto a minúsculo —, eu te mutilo”[7]. Já em Mais-ainda, diz que o amor “é sempre recíproco”[8] e “o que vem em suplência à não relação sexual”[9].
A sexualidade sempre foi um tema para a psicanálise; falar disso não é nada contemporâneo. Mas o que gira em torno disso, sim: os novos discursos e as novas maneiras de lidar com o corpo próprio e com o corpo do outro. Abordaremos o que isso ecoa nas identidades, nos modos de fazer laços ou na revelação da ausência deles, na solidão, enfim, no amor que se dá pela parceria sintomática, desde o ideal de completude até seu avesso, passando pelo amor tóxico e pelo amor livre. Em Mais-ainda, ao tratar do tema do corpo, Lacan fala do amuro: “O amuro é o que aparece em signos bizarros do corpo”[10].
Hervé Castanet afirma: “O amor é ao mesmo tempo um laço e um gozo. Enquanto laço, quer dizer, enquanto discurso, ele responde à ordem caracterizando o mestre da época. Enquanto gozo, ele serve à desordem pela relação sexual que não existe”[11]. Complemento com Patrícia Bosquin-Caroz: “O amor não é somente relativo aos efeitos de discursos, que variam segundo a época, ele é também fato de estrutura”[12]. Quando falamos estrutura, nos remetemos também à questão do corpo, do corpo marcado pela linguagem, efeito mesmo do significante que o constitui e deste ao “corpo que se goza”, retomando Lacan em “A terceira”[13]. O discurso muda e as estruturas continuam as mesmas?
O que podemos localizar atualmente é que há um imperativo de gozo, uma disponibilidade e diversidade de objetos. Isso muda muita coisa em relação ao laço com o outro e com o mundo. Se o amor é o que faz suplência à não relação sexual, se ele é o que vem em resposta à não complementariedade, à incompletude inerente à formação psíquica, uma vez que a relação de objeto é o que marca a relação do sujeito com o outro, tende-se a ficar aí, seja no autoerotismo, seja na evitação do amor, exaltando assim a solidão e o isolamento? Ainda assim, os sujeitos se relacionam, buscam satisfações diversificadas, ainda que não mais pautados em fazer Um.
Observamos, por exemplo, que, em muitas relações amorosas do mundo virtual, o que há não é necessariamente a ausência de encontros, mas sim uma multiplicidade deles, que proliferam e se perdem pelo excesso, e que comportam, pela via das inúmeras possibilidades imaginárias, uma intolerância a qualquer coisa que falte, que aponte para a não-relação. Há aí uma evidência do excesso narcísico ou um não querer saber daquilo que no encontro causa desconforto. Com certa frequência, há uma evitação da angústia e repetições que arriscam cair na compulsão, na rigidez ou na inflexibilidade, como notamos nas relações tóxicas.
Quando é que uma relação se torna tóxica? Quando um se sobrepõe ao outro? Quando a gana do gozo mortífero prevalece? Quando se tem medo da perda ou da solidão? Quando uma identidade é frágil ao ponto de precisar extrair da relação um lugar e garanti-lo, mesmo que pela dor? Quando não se sabe o que ali no laço se vive, ou seja, na alienação cega ao outro imaginário? Como extrair disso a posição fantasmática que comporta um real que invade sem mediação simbólica, e fazer disso uma questão para análise? De toda maneira, há uma posição subjetiva e um gozo que devemos colocar em questão.
A dor é implícita ao amor. Quando nele algo de si é sacrificado em nome de uma possível relação em que um outro gozo prevalece. Do que se abre mão, aí nesse ponto, e o que se tem como troca? Aceder ao amor implica uma dor que pode ser sem medida. Tomo como palpite a frase de Marie-Hélène Brousse: “Sem dúvida porque o amor é uma paixão, tal como o ódio e a ignorância”[14].
Nas nossas Jornadas vamos tratar também dos casos de violência, dos casos terríveis, onde situamos as barbáries tal como o feminicídio, a perseguição, o crime passional, a manipulação, a transgressão, a obsessão, a violação de privacidade, o sadismo, e assim segue. Quando o amor se torna louco, ou seja, escapa a qualquer mediação simbólica possível, pode acontecer a passagem ao ato e arrisca-se até mesmo a vida.
Aguardamos os casos para nossas Jornadas Clínicas. Teremos como convidada Raquel Cors Ulloa, Membro da NEL/AMP. Para instigá-los um pouco mais, espero, termino com uma frase dela:
“Analisar-se, escutar o saber textual do inconsciente, ler os modos de amar, desejar, gozar, implica bordejar um furo, porque um furo se bordeja, senão não é um furo. Tentem com um lápis” (arriscando-se com casos de sua clínica) “ou ao fazer crochê… como queiram!”[15]
[1] VIII Jornadas da EBP/SP 2019.
[2] LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 55
[3] LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 167.
[4] LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 41.
[5] LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 198.
[6] Idem, 197.
[7] LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 249.
[8] LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit., p.12.
[9] Idem, p. 62.
[10] Idem, p. 13.
[11] CASTANET, H. Ordres et désordres amoreux au XXIe siècle. Paris: Economica, 2015, p. 7.
[12] BOSQUIN-CAROZ, P. Les amours douloureuses. In: Quarto 138, dez 2024, p. 45.
[13] LACAN, J. “A Terceira”. In: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 62. São Paulo, 2011.
[14] BROUSSE, M.-H. Quels excès dans l’amour? ASREEP/NLS, 5 jul, 2022. Disponível em: https://asreep-nls.ch/quels-exces-dans-lamour/.
[15] ULLOA, R. C. Amor à feminilidade, ódio ao feminino. Disponível em: https://www.encontrobrasileiro2020.com.br/amor-a-feminilidade-odio-ao-feminino/.