Revisitando a função da fala em psicanálise
Sandra Arruda Grostein (AME EBP/AMP)
O texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” publicado como relatório em 1953 e como livro em 1966, apresenta os fundamentos da releitura lacaniana do inconsciente freudiano, tornando o estudo do mesmo imperativo para quem se propõe a uma formação em psicanálise. Nele, a proposta do “inconsciente estruturado como uma linguagem” é bastante aprofundada e bem ao estilo de Lacan, a partir da crítica à psicanálise de sua época, crítica que funciona como contraponto aos seus fundamentos. Dessa forma, Lacan avança em sua formulação, num momento de cisão institucional, ao tratar das consequências clínicas e políticas das diferenças de entendimento dos conceitos psicanalíticos. Neste contexto, Lacan propõe:
“Afirmamos, quanto a nós, que a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada, quando se desconhece os conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala”¹.
Esta afirmação é válida até os dias de hoje, pois o campo da linguagem continua sendo o norte para os conceitos psicanalíticos, mesmo este campo já tendo sido revisitado inúmeras vezes tanto por Lacan quanto por outros autores. No entanto, quanto à função da fala, podemos localizar mudanças visando uma ampliação conceitual.
Retomamos o texto parceiro de “Função e campo…”, conhecido como “Discurso de Roma”, onde Lacan claramente define que o objetivo da análise como um tratamento do inconsciente não visa “(…) passar de um patamar inconsciente, mergulhado na obscuridade, para o patamar da consciência, sede da clareza, através de sabe-se lá que misterioso elevador”², mas “trata-se, com efeito, não de passagem para a consciência, mas de passagem para a fala, a despeito daqueles que se obstinam a permanecer fechados a ela e é preciso que a fala seja ouvida por alguém ali onde não podia nem sequer ser lida por ninguém, uma mensagem cujo código perdeu-se ou cujo destinatário morreu. A letra da mensagem é importante e para apreendê-la, é preciso nos determos por um instante no caráter fundamentalmente ambíguo da fala, na medida em que a função é tanto de velar quanto de desvelar. Mas mesmo nos restringindo ao que ela dá a conhecer, a natureza da linguagem não permite separá-la das ressonâncias que sempre recomendam lê-la com diversos alcances. É esta partição inerente à ambiguidade da linguagem a única a explicar a multiplicidade de acessos possíveis ao segredo da fala. Persiste o fato de que há apenas um texto em que se pode ler, ao mesmo tempo, tanto o que ela diz quanto o que ela não diz e que é a esse texto que se ligam os sintomas tão intimamente quanto um rebus se liga à frase que o representa”³.
Não se ignora, evidentemente, que há mensagem na fala que possa ser lida nos sintomas, porém nem todos eles se prestam a esta decifração, isto é, sabe-se hoje que a fala não se restringe a veicular uma mensagem. Lacan acrescenta, a partir do Seminário XX, Mais, ainda, esta outra função da fala: “Aonde isto fala, isto goza e nada sabe”⁴.
Portanto, cabe aos analistas de hoje bem fundamentarem o que Freud havia abandonado no desafio de “tornar consciente o inconsciente” e que Lacan retomou e aprimorou quanto à relação do inconsciente com a linguagem. Logo, não se trata de decifrar ou de adquirir um saber sobre os sintomas, mas de isolar o gozo associado a eles, para posteriormente reduzi-lo, não sem se valer da ambiguidade da linguagem, a única a explicar a multiplicidade de acessos possíveis ao segredo da fala.
- LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 247.
- ____________ “Discurso de Roma”. In: Outros Escritos: Op. Cit., 2003, p. 146.
- __________ Ibid.
- __________ “Do Barroco”. In: O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Op. Cit., 1982, p. 142