Editorial
Ariel Bogochvol
Diretor de Cartéis e Intercâmbio da EBP-SP
Em 24 de junho de 2017 realizou-se mais uma Jornada de Cartéis da EBP-SP.
O tema de abertura Cartéis Standards e não Standards foi abordado por Luiz Fernando Carrijo da Cunha, Diretor da EBP, e por Ram Mandil, Secretário de Cartéis da AMP. Luiz Fernando analisou as características essenciais do cartel, retomando o texto Ato de Fundação da EFP, de 1964, onde a proposta de cartéis foi formulada por Lacan pela primeira vez. Ram Mandil discutiu o relatório apresentado à AMP em dezembro de 2016 em que analisou os efeitos das mutações dos laços sociais sobre os cartéis mostrando a situação atual desse dispositivo nas Escolas associadas à AMP. Em seguida, foram apresentados 18 trabalhos de cartelizantes, agrupados segundo grandes temas – “Psicoses ordinárias, extraordinárias e debilidades”, “Arte, cultura, economia, política”, “Direções do Tratamento”, “Desejo do analista, de cartel, de ensino e de transmissão” – e debatidos em quatro conversações.
A Carta de SP on line publica uma resenha do relatório de Ram Mandil e cinco trabalhos apresentados na Jornada em diferentes mesas, excluídos trabalhos clínicos com relatos de caso em função da exigência de sigilo. São produtos do trabalho de cartelizantes com diferentes percursos e formações, alguns membros da EBP e da AMP, outros não membros. Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri analisa a relação entre o conceito marxista de “mais valia” e o conceito lacaniano de “mais de gozar”. Carmen Cervelatti discute a relação entre a “transferência de trabalho” e a “indução” do desejo de saber na transmissão da psicanálise. Fabíola Ramon retoma o conceito de “sublimação” interrogando a existência de uma mudança do paradigma da “transgressão” ao paradigma da “manipulação”. Elisângela Miras discute o “desejo do analista” e sua posição como “objeto a” no tratamento. Jovita Lima problematiza sua experiência em um “cartel de amigos”.
Esperamos que a leitura desses trabalhos contribua para uma reflexão sobre os cartéis, sua atualidade e seus produtos.
SOBRE CARTÉIS
Ariel Bogochvol (EBP/AMP)
Do relatório da Secretaria de Cartéis da AMP, “Efeitos das mutações dos vínculos sociais sobre os cartéis”, apresentado por Ram Mandil em dezembro de 2016, e exposto na abertura da Jornada de Cartéis da EBP-SP dedicada aos Cartéis Standards e não Standards, destaco dois aspectos:
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Mutações dos cartéis
Os cartéis foram afetados pelas mutações dos vínculos sociais ocorridas desde o tempo de sua formulação no Ato de Fundação da EFP em 1964. Embora conservem a forma primordial proposta por Lacan – quatro participantes, cada um trabalhando a partir de suas questões, mais-um escolhido com a função de provocar as elaborações de cada membro, duração pré-determinada, permutação – há modificações.
Há mudanças nas modalidades dos encontros, como os cartéis-on-line (via email, skype, whatsapp) e no número de participantes, como os cartéis-ampliados e os cartéis-públicos (número indefinido de participantes). Há mudanças na forma de início como nos cartéis que não surgem a partir de afinidades, mas de convidados para executarem uma tarefa específica; no tempo de duração, como nos cartéis-flash, relâmpagos, fulgurantes que manifestam uma tendência “à redução ou aceleração temporal, aproximando o instante de ver do momento de concluir”. Pergunta-se: o que “no cartel é passível de variação e o que deve ser uma constante?”
CARTÉIS E SEUS PRODUTOS
Minha experiência em um “cartel de amigos”[1]
Jovita Carneiro de Lima
Anunciado no “Ato de fundação”[2] como “órgão de base da Escola”, o cartel tem sua última formalização por Lacan no texto “D’Écolage”, em 1980:[3]
“Primeiro – Quatro se escolhem para empreender um trabalho que deve ter seu produto. Esclareço: produto próprio a cada um e não coletivo.
Segundo: A conjunção dos quatro se faz em torno do Mais-um, que, se ele é qualquer um, deve ser alguém. Cabe a ele a tarefa de velar pelos efeitos internos à empreitada e de provocar nela a elaboração”.
Quatro amigos decidem se reunir em um cartel para estudar um tema de interesse comum: o desejo do analista. O Mais-um convidado não é qualquer um, é mais uma amiga. A ideia de que aquele seria um “cartel de amigos” não sobrevive às primeiras reuniões, pois o que me convoca a comparecer aos encontros quinzenais vai além da identificação entre iguais tão comum aos grupos.
“O desejo do analista é o de obter a diferença absoluta”[1], baliza o surgimento da questão de cada um. Então, o desejo do analista é sem o Outro?
O DESEJO DO ANALISTA[1]
Elisangela Miras
Pensar o conceito do desejo do analista requer a implicação do desejo inédito de Freud, que, segundo Jacques-Alain Miller, serviu de inspiração para outros sujeitos e foi objeto de transmissão.
Muito se especula sobre o analista e sua posição. Chegou-se a compará-lo com o ator e o xamã. Lévi-Strauss equivale a cura xamanística à psicanalítica. No entanto, diferentemente do analista, o xamã fala e constrói o mito para o doente, enquanto o analista escuta. O xamã é um prodígio cuja função é a de cura e a mitologia falada por ele tem seu crédito por fazer parte da sociedade na qual ele se constitui como tal.
O xamã, no teatro primitivo, era considerado ator, espécie de dançarino mascarado que dava vida ao mito social do qual todos participavam obedecendo ao mesmo comando.
Um analista não constrói personagens: faz semblante no discurso do analista onde ocupa o lugar de objeto, um semblante cuja natureza ocupa toda espécie de discurso. Lacan adverte que os analistas não devem se sentir obrigados a parecerem importantes quando procurados para uma análise; diz claramente que eles devem ser mais naturais.
TRANSFERÊNCIA DE TRABALHO E INDUÇÃO[1]
Carmen Silvia Cervelatti (EBP/AMP)
“O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho”[2], anunciou Lacan no “Ato de Fundação” de sua Escola, em 1964.
Transferimos trabalho. De qual trabalho se trata? De que maneira? A psicanálise em extensão, via da transferência de trabalho pelo saber exposto, difere da psicanálise em intensão, campo da transferência analítica e do saber suposto.
Na psicanálise a transferência se dá um a um, no laço de um com outro e não com a massa; é somente desde esta perspectiva que a psicanálise é competente[3]. Também se dá no trabalho com o ensino de Lacan, algo se passa, um a um, é passe de trabalho[4] num outro laço social. Num curso de psicanálise, cujo objetivo é transmitir um conteúdo dado por um programa de ensino, transfere-se, e o que se transfere é trabalho.
“Ao se oferecer um ensino o discurso do analista leva o psicanalista à posição do psicanalisante,”[5], ou seja, se faz do mesmo modo que o trabalho analisante, porém não se trata de amor nem de gozo da fala, nem mesmo de ser interpretado.
LACAN, MARX – MAIS VALIA, MAIS DE GOZAR[1]
Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri (EBP/AMP)
Para Lacan[2] o sujeito é “apagado, no mesmo instante em que aparece (…) não pode reunir-se em seu representante de significante, sem que se produza (…) o objeto a”. Marx[3] decifrou, enfocando a economia, que o sujeito do valor de troca é representado perante o valor de uso, produzindo-se na brecha entre ambos a “mais-valia” – perda para o proletário e ganho para o capital. A perda importa para a Psicanálise pois, se o sujeito não é idêntico a si mesmo, não goza – aí se perde o “mais-de-gozar”.
Não há novidade na renúncia ao gozo na relação com o trabalho, mas é inédito o discurso que Marx faz o capitalista pronunciar. Este se queixa de nada receber pelo capital que emprega, e ri quando se lhe revela a essência da “mais-valia”, momento em que propõe ao operário o contrato de trabalho. A proposta encobre a apropriação da “mais-valia” extraída da força, do corpo do proletário, o que enriquece o capitalista, além de ser o motor do sistema como um todo. Ele então “… recobrou com um sorriso alegre sua fisionomia anterior. Ele troçou de nós com toda essa ladainha. (…) Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir”[4].
PERCURSO DE FORMULAÇÃO DE UMA QUESTÃO DE CARTEL: SUBLIMAÇÃO, DO PARADIGMA DA TRANSGRESSÃO AO DA MANIPULAÇÃO[1]
Fabiola Ramon (correspondente EBP-SP)
Apresento um recorte da minha formulação de questão do cartel, iniciado há dois meses. Ela partiu da clínica, mas configura-se conceitualmente: pretendo fazer um percurso da Sublimação orientada pelo gozo e o significante e a relação entre eles nos Seminários 7 e 23.
Há anos me interessa a articulação entre arte e psicanálise. Inicialmente essa articulação ia no sentido de buscar elementos conceituais na psicanálise que me permitisse fruição e saber na relação com as obras. A relação com a ideia de sublimação não era clínica. O olhar e a escuta aguçados pelo campo da arte, depositaram efeitos na clínica, efeitos que busco formalizar atualmente. Casos clínicos me reenviam de outra maneira para o “problema da sublimação”. Casos nos quais, tal como uma instalação de arte contemporânea, o falasser traz para o trabalho analítico arranjos criativos, que me fazem perguntar: “do que se trata? invenção? artifício”? Essas “invenções” comportam algo da sublimação? Até que ponto a sublimação é um conceito clinicamente operável?