Mesmo no século XXI, ainda é a partir da fala que a psicanálise opera
Teresinha N. Meirelles do Prado (EBP/AMP)
“Seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real”[1]
Para além do contexto em que foi pronunciado há sessenta e cinco anos – em que Lacan enunciava claramente seu desacordo com a prática dominante de uma IPA guiada prioritariamente por questões imaginárias, a ponto de retirar-se da Sociedade Psicanalítica de Paris e fundar, naquele mesmo ano, com outros colegas, a Sociedade Francesa de Psicanálise – o chamado “Discurso de Roma”, publicado nos Escritos com o título “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, continua a ser um texto fundamental na psicanálise.
Ainda que naquela época Lacan postulasse algumas formulações que mais tarde abandonaria (como a de intersubjetividade), o essencial da discussão por ele empreendida permanece atual: “quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente”[2]. E o cerne da função da fala na análise, destaca Lacan, reside no fato de que não há fala sem resposta, ainda que esta seja o silêncio. Se um analista ignora esse fundamento, tenderá a buscar além da fala uma realidade que preencha o vazio que pode se colocar ali. É aí que surge o risco de se equivocar na tentativa de analisar o que estaria para além da fala, um suposto comportamento elucidativo daquilo que o analisante não diz. Nesse escrito, Lacan critica enfaticamente as leituras equivocadas que podem acontecer quando não se leva em conta o cerne da psicanálise: a fala e sua função.
Em sua divergência com a prática preponderante na IPA, Lacan defendeu o papel crucial do corte da sessão, que “indiferente à trama do discurso”, desempenha o papel de “uma escansão que tem todo o valor de uma intervenção, precipitando os momentos conclusivos”[3]. Sua crítica, nesse contexto, à iniciativa de visar a um objeto para além da fala, refere-se ao seu estatuto imaginário nesse momento de seu ensino, o que lhe permitiu destacar, ao exemplificar com a ambiguidade da revelação do passado fornecida pela histérica no relato da cena traumática, que a questão não era de promover uma vacilação de conteúdo entre o imaginário e uma realidade, mas evidenciar nesse ato o ‘nascimento da verdade na fala’; algo que não é verdadeiro nem falso (vemos aqui o germe do que ele chamou mais tarde de ‘verdade mentirosa’, ao se referir à fantasia), mas cujo poder a fala atualiza. Nesse sentido, a rememoração não é mera evocação. Daí o efeito do que nesse momento Lacan denomina “fala plena”[4], cuja ação é de “reordenar as contingências passadas, dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes”[5]. Ou seja, se a fala (plena) cria uma verdade ao reordenar as contingências passadas, é porque a experiência em questão não pode prescindir da fala, na qual ela se dá.
Essa dimensão da fala passará por diversas reformulações, inclusive com relação ao que se pode chamar de comunicação, que nos últimos anos do ensino de Lacan converte-se em mal-entendido fundamental, e vai expondo cada vez mais seu caráter de ‘parasita’, mas não deixa de ser o único instrumento por meio do qual se dá uma análise: “(…) o Real só aparece por meio de um artifício ligado ao fato de que há fala e mesmo dizer. E o dizer concerne ao que chamamos de verdade. Exatamente por isso digo que a verdade, não podemos dizê-la”[6].
[1] LACAN, J. ““Função e campo da fala e da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[2] ________ Ibid. p. 248.
[3] ________ Ibid. p. 254.
[4] N.A.: Quase 10 anos depois, Lacan volta a esse termo no Seminário 18, para destacar que a fala plena “exerce a função da acoisa”, aquilo que “está ausente ali onde ocupa seu lugar”, tal como o objeto a, que, sendo aquilo que de real se pode apreender no simbólico, ocupa esse lugar e, desde modo, expõe o furo. LACAN, J. O seminário, livro 18, de um discurso que não fosse semblante. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2009. p. 71-72. Ver também: MILLER, J.-A. [23/05/07]. “Curso de Orientação Lacaniana”, inédito.
[5] LACAN, J., Op. Cit., p. 257.
[6] ________. [10/01/78]. “Momento de Concluir”. Inédito.