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A difícil tarefa do tornar-se e a adolescência como sintoma

Por Gabriel Caixeta
Fonte pixabay
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Da delicada escrita do escritor Fernando Sabino, em “O grande mentecapto”, poderíamos recortar o momento em que Geraldo Viramundo virou homem de repente e percebeu, minutos mais tarde, que não era mais menino, para discutir aquilo que Lacadée (2011) chamou de a mais delicada das transições. Esta, que diz respeito justamente à passagem da criança para o adulto, ao tornar-se homem ou mulher, e que envolve um árduo trabalho psíquico para o sujeito, uma vez que o que está em jogo aí é o próprio real que surge na puberdade.

Acompanhando os textos freudianos sobre a relação do sexual com a etiologia da neurose, fica evidente que o sexual deixa suas marcas ao ser falante. Na infância, diante de seu aparecimento, a criança, impossibilitada de acessar um saber sobre isso, formula suas teorias como tentativa de resposta. Na adolescência, com a irrupção da puberdade, esse novo, não tão novo assim, aparece fazendo com que o sujeito precise inventar um modo de se posicionar na partilha sexual, o que não é sem embaraços.

Para Miller (2020), quando se trata de pensar a adolescência, seria importante nos atermos a três questões: a saída da infância, a diferença dos sexos e a imiscuição do adulto na criança, o que coloca em questão os semblantes como aqueles que darão consistência à identificação sexual viril ou feminina (Roy, 2019), questões que são presentificadas na puberdade. Dessa forma, de acordo com Lacadée (2011) “a adolescência seria o momento lógico em que opera uma desconexão para o sujeito entre seu ser de criança e seu ser de homem ou de mulher” (p. 64). Nesse sentido, o termo “adolescência” seria um significante provindo do Outro que buscaria dar contorno a esse tempo que é para cada um (Lacadée, 2011).

Lacadée (2011) retoma a definição dada por Freud (1905/1996) “metamorfose da puberdade”, esclarecendo que há aí uma reatualização das escolhas da infância concernente aos objetos da pulsão, sejam eles hetero ou homossexuais, bem como à escolha de posição em relação ao sexo, o que deixa o sujeito dividido entre situar-se a serviço da pulsão parcial e se pôr a serviço da vontade de gozo (Lacadée, 2011, p. 68). Assim, se antes tínhamos o discurso, representado inclusive pela função da família, como algo importante e que poderia servir como suporte para o que do gozo agita os adolescentes, o que vemos hoje é que esse não consegue ajudá-los, e eles ficam imersos em seus significantes desconexos (Lacadée, 2011).

Aqui, seria possível afirmar que, quando dizemos que na puberdade tratar-se-ia de um despertar, dizemos de um despertar da pulsão que provoca estranheza ao adolescente, lançando-o ao          trabalho de construir alguma coisa que dê conta disso. Dessa forma, parece pertinente pensar, tal como Miller (2020) propõe em seu texto En dirección a la adolescencia, que, diante desse novo — o despertar da pulsão que convoca o sujeito a se haver com sua posição subjetiva diante da diferença sexual — é escancarado pelo real da puberdade, que a pensássemos como uma construção.

Tais formulações nos orientam a pensar menos a adolescência como uma fase ligada ao desenvolvimento, como a psicologia nos ensina, e mais como um arranjo, como um sintoma, que cada sujeito irá construir para dar conta da inexistência da resposta sobre a questão sexual. Assim, a adolescência seria uma nomeação livre de significação, e cada sujeito irá lhe dar substância a seu próprio modo. Diante do não saber sua posição sexuada, de não saber a escolha de objeto, a adolescência seria, nessa orientação, um sintoma, “a enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível encontrado na puberdade . . . Esse impossível é uma das fórmulas do real; essa ausência de saber, no real, quanto ao sexo; é a não relação sexual” (Stevens, 1998/2004, p. 31).

Nesse sentido, caberia menos dizer “A” adolescência, enquanto universal, para pensá-la no caso a caso, ou seja, enquanto adolescências, construída de forma singular por cada sujeito, o que nos leva, segundo Stevens (1998/2004), a considerar a clínica da adolescência mais próxima a uma clínica do sintoma por “tratar-se de uma resposta individual como escolha e resposta de um sujeito, levando-se em conta que há diferenças, conforme as escolhas já colocadas pelo sujeito, entre neurose e psicose” (p. 32).

Quanto ao real da puberdade, ao qual a adolescência vem como uma tentativa de resposta, Stevens (1998/2004) nos lembra que, mais do que a questão orgânica, trata-se do novo para o qual o sujeito não tem uma resposta pronta, ou seja, trata-se da eclosão, a qual a fantasia infantil falha em contornar, possibilitando que o sujeito possa construir sentidos e metáforas. É importante destacar que a fantasia, segundo nos ensinou Lacan (1967/2003, p. 259), seria uma “janela para o real”, aquilo que enquadraria o real, retirando um pouco da sua consistência avassaladora — na medida em que ele impõe o sem sentido e o vazio de significações — e servindo como anteparo para o sujeito, fixando-o no campo da realidade. É a fantasia, como o recurso que possibilita ao sujeito construir explicações para o que lhe acontece, que permitiria certa segurança diante da emergência desse novo.

Poderíamos localizar esse novo justamente na subjetivação do sexo, na relação do sujeito com seu corpo, com o Outro e com o gozo. Esse novo “mais do que o órgão, é o reaparecimento, para o sujeito, de sua falha de saber no real” (Stevens, 1998/2004, p. 33). E, quanto a esse real sobre o qual o saber falha, há sempre um saber a saber, que se constrói, por exemplo, no encontro com um analista. E, quando falamos disso, poderíamos dizer que, frente ao não saber no real, é cada um por si, não sem o encontro com um Outro, o analista, por exemplo.

É um novo que resiste ao enquadramento da fantasia, que surge da discordância entre o imaginário e o simbólico, encarnado na modificação da imagem que escancara o fato de que não se “é mais uma criança como as outras, mas que se vai tornar-se um homem ou mulher” (p. 34), deixando o sujeito à mercê do não saber “tornar-se”, que faz vacilar também as identificações sustentadas no laço com o Outro.

Lacadée (2011) toma a adolescência como uma transição, a mais delicada delas, e se serve desse significante “transição” para dizer daquilo que já encontramos em Freud 1905/1996) quanto à puberdade. Para Lacadée, a transição especifica “a mudança que advém na criança a partir de um real, mudança marcada pela dificuldade experimentada pelo sujeito em continuar se situando no discurso que, até então, dava a ele uma ideia de si mesmo” (p. 33). Tal comentário deixa como norteador o fato de que, quanto ao tornar-se, isso só se dá pela via da construção, de um lado do sintoma, e, do outro, dos semblantes possíveis quanto ao ser homem ou mulher, que são apreendidos da cultura e da relação do sujeito com o lado do adulto, no qual o gozo sexual se encontra solidário de um semblante (Roy, 2019). O que se evidencia é que não há um saber preexistente no qual cada sujeito pode se amparar, que diga inequivocadamente como “tornar-se” — não há um manual, portanto o que há é a não relação sexual.


Referências Bibliográficas
Sabino, F. (1979). O grande mentecapto. Record.
Lacadée, P. (2011). O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência (C. R. Guardado, & V. A. Ribeiro, Trad.). Contra Capa Livraria
Miller, J.-A. (2020). En dirección a la adolescencia. In J.-A. Miller, De la infancia a la adolescencia. Paidós.
Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (V. 7, pp. 117–217). Imago. (Trabalho original publicado em 1905.)
Stevens, A. (2004). Adolescência, sintoma da puberdade. Curinga, 20, 27–39. (Conferência original feita em 1998.)
Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 248–264). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1967.)
Roy, D. (2019). Quatro perspectivas sobre a diferença sexual. Cien Digital, 23. https://ciendigital.com.br/index.php/2019/11/17/quatro-perspectivas-sobre-a-diferenca-sexual/
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