Breve comentário tecido, a convite da Diretoria da Seção-Rio, sobre os textos de Romildo do…
NOTA DA DIRETORIA
Caros colegas,
Há duas semanas vocês receberam uma edição extra do Letrear com o calendário completo das atividades da diretoria e dos seminários por conta e risco que vão acontecer em 2019. Agora, no primeiro número do nosso boletim, estamos trazendo notícias mais detalhadas sobre cada atividade e um breve resumo de como cada participante da nova diretoria (Renata Martinez, Ana Tereza Groisman e Andréa Vilanova), pretende conduzir seus trabalhos. Logo abaixo, o texto de apresentação da diretoria geral que foi lido na assembleia de membros da Seção Rio na última sexta feira, dia 29 de março:
Apresentação da diretoria geral da Seção Rio 2019/2020
Quero apresentar em linhas gerais um projeto de trabalho que de certa forma já começou há algum tempo. É assim que fazemos na Escola: a permutação acontece a cada dois anos e o segundo ano de cada gestão é compartilhado com a gestão seguinte. Por isso, durante o ano de 2018, estivemos acompanhando de perto o dia a dia da diretoria e aprendendo muito com essa parceria. Agradeço à Angela Bernardes, Ana Tereza Groisman, Elisa Monteiro e Rachel Amin pela acolhida e por tudo o que nos ensinaram ao longo desse período. Agradeço especialmente a Ana Tereza que aceitou continuar por mais dois anos, desta vez na diretoria de cartéis, e que tem sido uma presença que faz muita diferença no processo de transição entre as duas gestões. Agradeço muito à Sandra Landim que em parceria com a diretoria de secretaria e tesouraria, coordena o amplo trabalho da comissão de divulgação, mídias e audiovisual da Seção Rio. [Leia +]
Em paralelo a esse trabalho, formamos um cartel com as participantes da nova diretoria e com Paulo Vidal como mais-um. É um cartel dedicado à leitura de textos institucionais de Lacan, que busca neles uma orientação para lidar com as novas funções que estamos assumindo, levando em conta o que de seu ensino está em jogo nesse funcionamento institucional. Isso não é uma novidade, já foi feito em outras diretorias, e tem a função de evitar que sejamos absorvidas pela rotina do trabalho esquecendo a causa que está no horizonte da Escola.
Uma Escola de psicanálise de orientação lacaniana não é uma instituição como outras porque busca funcionar a partir de uma lógica coletiva muito peculiar. No texto sobre a teoria de Turim[1], (com o qual abrimos os trabalhos da Seção em fevereiro desse ano na conversação de membros organizada em uma parceria entre as duas diretorias) Miller fala da Escola como uma invenção de Lacan para se arranjar com o grupo dos analistas de uma forma muito diferente daquela que Freud criou e insiste no seu caráter paradoxal: ela é um jeito de funcionar em grupo, é uma formação coletiva, no entanto, o que está em primeiro plano, o que deve prevalecer é a solidão subjetiva. Ele fala de um jeito bonito da Escola, como algo muito diferente de uma associação profissional, onde todos se reúnem em torno de uma prática comum, de um modelo de profissional a ser compartilhado. Fala da Escola como um conjunto logicamente inconsistente porque apesar de não dispensar o ideal, o que o seu coração abriga não são os ideais, e sim o que ele chama de “solidões incomparáveis”. Fala disso usando expressões contundentes como invenção, experiência inaugural, ruptura.
Nesse mundo onde tudo tende a coletivizar, burocratizar, uniformizar, a escola é um lugar onde essa tendência deve ser reduzida ao mínimo e onde o que deve prevalecer é a ordem do analítico, do que dá lugar à solidão incomparável. Miller retoma o termo enclave, ou refúgio, usado por Lacan pra falar desse talento da Escola de conseguir articular coletivo e singular. A Escola como refúgio é um lugar ao mesmo tempo dentro e fora do mundo.
É justamente esse caráter da Escola que lhe permite abrigar um tipo muito especial de relação com o saber, que não se pretende completo, que inclui o furo, que não pode ser coletivizável. É um saber que se transmite entre uns e outros, porém, somente a partir da relação única e singular que cada um estabelece com a Escola. É algo semelhante ao que acontece em uma análise, quando o mais íntimo e o mais estranho se apresentam ao mesmo tempo na figura do analista. É o que chamamos transferência, condição da análise e também da transmissão que buscamos fazer na Escola.
O exemplo mais vivo desse tipo de transmissão é o passe. Não é fácil explicar como acontece, mas todos os que assistiram testemunhos de passe provavelmente experimentaram as consequências dessa presença da solidão no meio do universal. Não é por acaso que Miller destaca o efeito radical do lugar que Lacan deu ao dispositivo do passe na sua Escola. Fala disso usando outra imagem forte: a da Escola morcego, Escola como um ser ambíguo, que tem asas analíticas como um pássaro, e patas sociais como um mamífero, e que constitui uma dupla postulação, uma para o discurso analítico e outra para o discurso do mestre [2].
Ele diz que a presença do passe faz da escola uma comunidade muito especial em que o mal- estar é coisa natural[3]. Entendo o mal estar como essa tensão permanente entre coletivo e singular, que no passe ganha toda a sua potência, mas que também habita a Escola desde seu órgão de base, o cartel, assim como em outros dispositivos.
Funcionar dando lugar ao mal estar. Como isso é difícil! Todos aqui sabem o quanto. Não só os muitos que já estiveram ocupando cargos nas instâncias da Escola – quando algumas dificuldades e também um certo mal-estar se apresentam de forma mais direta, mais evidente – mas todos os que nos diferentes momentos da sua formação, participam da Escola, e que de uma maneira ou de outra precisam se arranjar com essa tensão permanente entre um ideal comum que reúne e oferece abrigo no sentimento de uma língua compartilhada, de estar entre pares, e aquele tanto de si que cada um carrega e que não tem como fazer funcionar bem no grupo. Como a relação disso com o coletivo não se arranja de uma vez por todas – precisa ser refeita a cada vez –, a Escola está em constante mutação, e é isso que lhe dá vida. É porque ela se refaz que pode existir no mundo mantendo seu vigor. Esse é o seu valor.
Em um mundo que não para de mudar e que às vezes muda tanto a ponto de não sabermos se podemos continuar a chamar de mundo o que resta disso que nos acostumamos a entender como o nosso mundo, a Escola, pelo menos como conceito, é aquela que pode trazer pra si a conversa sobre o horizonte de sua época. Cabe a nós não engessá-la demais para que isso tenha chance de acontecer. Que novas ferramentas ou que novo uso podemos fazer das ferramentas que já conhecemos para seguir em frente diante de impasses inéditos trazidos pelas constantes reconfigurações das formas de existir e de estar no mundo? Assim como não há um analista confortavelmente estabelecido de uma vez por todas, a Escola no sentido que Lacan deu a ela, habita o nosso horizonte como uma experiência radical que vivemos em seu paradoxo.
Ou seja, pensar na Escola como algo vivo, incluindo o mal-estar, soma de solidões, é o que nos dá a possibilidade de estar à altura do nosso tempo, de buscar responder à subjetividade da época. O que esse tempo exige de nós? É um desassossego, uma desacomodação permanente.
A pergunta com a qual pretendemos orientar o trabalho dessa diretoria é menos como fazer para se estabelecer de forma estável em um discurso, e sim, como, em cada atividade, em cada situação, podemos fazer prevalecer um modo de funcionamento que favoreça a psicanálise, que seja coletivo e ao mesmo tempo traga a forma singular de transmitir, é isso que creio poder produzir verdadeiramente acontecimento.
Foi a partir dessa lógica que pensamos em organizar as atividades, sempre que possível, seguindo o que estamos chamando de um “esforço de conversação”. Apesar da conversação ter sido usada inicialmente para debater casos clínicos, os efeitos desse formato ultrapassam o campo da clínica. Ela é um modo de operar com o saber que visa dar o máximo de tempo à reflexão, ao comentário, e menos à escuta passiva. Miller compara a conversação, quando ela funciona, a um tipo de associação livre coletivizada, da qual esperamos certo efeito de saber. Ele diz assim: “Quando a coisa acontece a mim, os significantes de outros me dão ideias, me ajudam, e finalmente, acontece, às vezes, algo novo, um ângulo novo, perspectivas inéditas”[4].
Criar perspectivas inéditas, fazer acontecer, não é pouca coisa. Precisamos muito de perspectivas inéditas para lidar com situações inéditas. Como se servir da experiência de cada um com sua análise e no trabalho da Escola de modo a “fazer acontecer”, quando algumas ferramentas que já foram tão eficientes para produzir acontecimento, hoje se mostram quase sem serventia? A conversação é uma das que têm conseguido alcançar uma certa desacomodação produtiva, é um forçamento na direção da Escola como experiência, e certamente não é a única maneira. Esperamos sustentar alguma desacomodação que permita produzir outras experiências durante esses dois anos que passam tão rápido. A conferir.
Usar o conceito de Escola no seu sentido mais vivo depende de manter essa pergunta na ordem do dia. Recentemente dois colegas nossos, Maricia Ciscato e Paulo Vidal, trouxeram a figura do oásis, no sentido que Hanna Arendt[5] dá a ele, para pensar o nosso modo de funcionar no mundo quando ele se apresenta na sua face desértica. Eles falam de produzir e manter oásis em meio ao deserto, não como espaços que permitiriam algum tipo de adaptação, mas como fontes que permitem viver sem tomar o deserto como norma. Eles usam imagens muito potentes para falar desses espaços, como cantos que pulsam, que têm o poder de inverter a lógica mortífera, a lógica da segregação, e que conseguem “inventar vida” [6], “criar mundos nesse mundo”[7].
É demais pensar em uma Escola que cria oásis, sonhar com uma Escola que consegue sustentar acontecimentos capazes de criar mundos nesse mundo?
Atualmente é muito difícil encontrar lugares capazes de produzir esse efeito de refúgio paradoxal. Lugares que funcionem na lógica de ser dentro e fora do mundo ao mesmo tempo e que sirvam de abrigo, onde seja possível se instalar por um tempo. Gosto de pensar no efeito da Escola menos como espaço e sim como tempo, como momentos, momentos de respiro, um tempinho roubado, um descanso do tempo do mundo, que pode durar alguns instantes. Acho que esse já é o nosso jeito de fazer oásis. Quando uma conversação funciona, isso acontece, é uma maneira de criar oásis. Acontece também muitas vezes no cartel. Quem nunca teve o sentimento de pausar a bagunça do mundo quando vai correndo para um cartel e encontra lá um respiro? Acredito que nosso oásis de base é o cartel. Mas não como um domínio exclusivo. Esse respiro, tempo roubado, acontece muitas vezes nos testemunhos de passe, em uma ou outra conversação, em alguns dos grandes eventos que nos mobilizam tanto, que desacomodam pra valer, como no último Encontro Brasileiro, mas também no dia a dia das atividades da Escola, em um novo ângulo de leitura de um seminário já conhecido, na fala de um convidado que consegue transmitir em um dialeto que não é nosso como a arte nos ensina (como já aconteceu, por exemplo, em encontros no Raízes Literárias) e em outras tantas situações que quando funcionam assim, nos convidam a ficar um tempinho a mais na calçada em frente à casa da nossa Seção, antes de voltar pra bagunça do mundo. Conversas na calçada em uma cidade onde esse hábito caiu em desuso há tanto tempo.
Cada um experimenta esses efeitos à sua maneira e em momentos diferentes. Espero que nos próximos anos as atividades que estamos programando junto com vocês, os nossos seminários das segundas-feiras, a psicanálise no cinema, os projetos da diretoria de biblioteca: Leituras em Cena, Leituras Contemporâneas, a presença forte do cartel e também as nossas Jornadas sobre o sonho, consigam, às vezes, criar oásis, mundos no mundo, um tempinho de respiro roubado pra muitos de nós. Vamos ao trabalho e contamos com vocês.
Andréa Reis Santos
[1] MILLER, Jacques-Alain. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. Em: Opção Lacaniana Online, Ano 7, Número 21: Novembro de 2016. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf>. Último acesso em: 28/03/2019.
[2] MILLER, Jacques-Alain. Questão de Escola: Proposta sobre a Garantia. Em: Opção Lacaniana Online, Ano 8, Número 23: Julho de 2017. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/Questao_de_Escola.pdf>. Último acesso em: 28/03/2019.
[3] MILLER, Jacques-Alain. Política Lacaniana. Buenos Aires: Coleção Diva, 2017.
[4] MILLER, Jacques-Alain et al. La pareja e el amor: conversaciones clinicas com Jacques Alain-Miller em Barcelona. 1ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2005.
[5] ARENDT, H. De deserto e de Oásis. Em: O que é Política? – Fragmentos das Obras Póstumas Compilados por Úrsula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
[6] CISCATO, Marícia. Os oásis nossos de cada dia. Disponível em: <https://loucuraseamores2017.wordpress.com/2017/10/31/os-oasis-nossos-de-cada-dia/>. Último acesso em: 28/03/2019.
[7] VIDAL, Paulo. Provocado pelo Corpo Elétrico. Disponível em: <https://loucuraseamores2017.wordpress.com/2017/11/08/provocado-pelo-corpo-eletrico/>. Último acesso em: 28/03/2019.
Diretoria de secretaria e tesouraria:
Renata Martinez
Num primeiro olhar, o que se espera da diretoria de secretaria e tesouraria são de fato tarefas práticas e cotidianas: administrar o dinheiro, cuidar nos mínimos detalhes da casa e de toda a estrutura que a envolve, zelar pelo andamento e funcionamento das diversas atividades que a Seção Rio comporta. Entretanto, não deixar essa empreitada na ordem do automaton é nossa aposta! Aposta na potência do encontro, na riqueza do trabalho de Escola e, sem dúvida, no avanço da prática e da teoria – marcas da relação viva de cada um com a causa analítica.
A transferência de trabalho nos move. Aprender a proporção e o ritmo do trabalho solitário e entre pares será um exercício diário e, certamente, não sem consequências. Vamos caminhar, dando contorno aos impasses que surgirem, para que nossa sede possa acolher Escola e Instituto, cada um a sua medida, em suas produções e sustentações do delicado laço entre clínica, política e episteme. Mãos à obra!
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