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2020

LEITURAS EM CENA

Coordenação: Isabel do Rêgo Barros Duarte, Maricia Ciscato e Renata Martinez

O Leituras em Cena está em seu segundo ciclo de trabalho. O primeiro, encerrado em meados de 2019, teve como marca o estudo teórico em torno do tema da segregação, impulsionado pela viva parceria com a Cia. dos Atores e pela peça “Insetos”, de Jô Bilac. Essa parceria funcionou tão bem que decidimos dar continuidade a ela em um novo ciclo de estudo. Desta vez, estamos nos debruçando sobre a peça “Júlio César”, que está sendo adaptada pela Companhia para ser apresentada em meados de 2020. Essa peça de Shakespeare nos abriu novas portas de pesquisa, levantando questões atuais que vão desde o lugar do “Um do Pai” hoje até a multiplicidade que implica o “Um do corpo”.

2019

Apresentação Leituras em Cena

Renata Martinez
05/07/2019

Olá boa noite, é com imenso prazer que dou as boas vindas a todos hoje! Essa é uma noite especial para nós do “Leituras em Cena”. Nós abrimos nossas janelas para os Insetos, abrimos nossa casa, a seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise, para receber presenças tão importantes nessa trajetória que construímos até aqui.

Muitos sabem que esse evento estava marcado para a noite do 17 de maio, mas tivemos que adiá-lo pelo caos que se instalou após as chuvas que deixaram nossa cidade amputada. Confesso que hoje pela manhã me deu um certo friozinho na barriga… Esse adiamento inverteu uma ordem e fez com que apresentássemos o Leituras aqui na seção, numa noite de 2a feira, antes da própria Leitura ocorrer.

O projeto, acolhido fortemente pela atual Diretoria,  já tem uma estrada e acho importante situá-la rapidamente. Assim como apresentar os “coletivos” envolvidos e quem os sustenta.

Serei breve: começamos a nos reunir, Maricia Ciscato, Isabel do Rego Barros Duarte e eu, Renata Martinez,  em março de 2018. Em julho, juntaram-se a nós Dinah Kleve, Natasha Berditchevsky, Patricia Patterson e Thereza De Felice. O que nos uniu foi a angústia diante dos tempos atuais, diante de nossa clínica e dos acontecimentos a nossa volta, a sensação frequente de “fim do mundo”, ou melhor, do fim de um tipo de mundo em que acreditamos e apostamos. Brincávamos na época que éramos “corpos angustiados”…

Não me canso de repetir e novamente escolho o mesmo fato pra ilustrar o que estou dizendo: março de 2018, assassinato de Marielle Franco, comoção, indignação, mas também paralisia e frustração. Claro que, bem antes disso ou de lá pra cá, presenciamos muitos acontecimentos bizarros, muita coisa se passou… E o mal estar permaneceu ou mesmo cresceu. O “Leituras em cena” tem sido uma nova maneira de lidar com tudo isso.

A psicanálise, desde Freud, nos oferece ferramentas de leitura para o mal estar na civilização. Mas nossa ideia era explodir as fronteiras, queríamos trabalhar com outras línguas de tratamento do mal estar. A arte, mais especificamente o teatro, pelo impacto da palavra e pela presença dos corpos – atores e plateia – , nos pareceu um caminho a seguir e foi nessa busca que Insetos se apresentou pra nós.

Eu tinha assistido a peça no CCBB em maio e, em agosto, quando a Editora Cobogó lançou o livro, inserimos o texto em nossos encontros. Que potência de transmissão! A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida… Frase de Oscar Wilde que vocês poderão verificar daqui a pouco, ao ouvirem a leitura…

Nessa peça que comemora os 30 anos da Cia dos Atores, o texto de Jô Bilac, foi intensamente trabalho pelo diretor convidado, Rodrigo Portella, que não pode estar aqui hoje conosco, e pelos atores Cesar Augusto, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto e Marcelo Valle – esses maravilhosos que estão aqui -, e mais Susana Ribeiro, cuja ausência sentimos muito. Coletivamente, puseram a mão na massa e criaram os personagens e seu próprio texto adaptado para o espetáculo no palco.

A publicação de Insetos é linda e faz parte da coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, que tem hoje uma coleção enorme de teatro contemporâneo, são 58 títulos publicados! Se quiserem, vocês podem comprar o livro ali na casa 16. A edição traz as duas versões do texto lado a lado, é um trabalho muito delicado.  Queremos agradecer imensamente à Isabel Diegues, editora chefe da Cobogó que está aqui hoje pra participar da conversa e topou a parceira conosco com muita empolgação.

Essa é a terceira vez que nós nos encontramos para uma roda de conversa. Por “nós” quero dizer a Cia dos Atores, a editora Cobogó e o Leituras em Cena. Em dezembro, a convite da Cia dos Atores, estivemos no palco da Sede das Cias na Lapa após o espetáculo para uma conversa com diretor, atores, editora e a plateia. Em fevereiro, foi a vez de adentrarmos a Carpintaria, uma galeria de arte que aposta no diálogo com outras linguagens. Ali, numa conversa animada, nos misturarmos às artes plásticas e aos atores na exposição “Perdona que no te crea” cujas fronteiras se queriam mesmo borradas. Foram duas experiências intensas.

Agora, para esquentar nossa terceira conversa pública convidamos o psicanalista Marcus André Vieira e o escritor Luiz Eduardo Soares.

Marcus é de casa, psicanalista da EBP/AMP, conduz há dois anos um seminário intitulado “A psicanálise do fim do mundo”. Muitas das ideias que nos impulsionam a sustentar o “Leituras em Cena” foram retiradas desse seminário e não podíamos deixar de convidá-lo para estar aqui conosco.

O Luiz Eduardo além de cientista político, antropólogo e escritor é amante e conhecedor de teatro. O Luiz esteve em nosso 2o encontro na Carpintaria quando participou da leitura e da excelente conversa que tivemos lá. Apostamos que sua contribuição e suas ideias nos trarão força para seguirmos trabalhando.

Passemos então a leitura de cenas de Insetos e depois a conversa! Obrigada

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Comentário Noite de cartéis

Vicente Machado Gaglianone

Essa noite de cartéis foi um ponto de encontro, que pretendia produzir uma grande conversa a partir de algumas questões que ao longo do ano foram nos tocando e nos interrogando. Nós, do cartel da diretoria de cartéis, queríamos dividir com nossa comunidade esse interesse. Havia a provocação de Nohemi Brown que, em nossa última jornada, utilizou-se de uma controvertida citação de Miquel Bassols onde afirmava que na escola, cada membro deveria  experimentar-se na função de mais-um em relação ao grupo de analistas. Para além da impossível identificação do analista, resta o lugar do mais-um, como função que propicia o laço entre os membros do grupo, na medida em que sustenta o furo no saber: “o mais-um é precisamente aquele que deveria saber fazer aparecer o real no qual se funda o grupo para fazer dele sua bússola e saber tratar as miragens do imaginário e os impasses do simbólico”[1].

Havia também nossas inquietações em relação às proposições de Miller sobre a função do mais-um que provinham de nossas leituras das “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”, texto tão fundamental e que vinha nos colocando a trabalho. A partir das torções e articulações que Miller vai fazendo nos 4 discursos de Lacan, acaba por localizar o mais-um numa identificação possível, porque desconsistida da mestria, como um “provovocador-provocado” dando a essa função toda a complexidade e importância para a construção de uma escola que não fosse regida pela lógica de grupo sempre fadada à ortodoxia da qual Lacan tanto esforçou-se em descolar-se.

Foi então movidos por essas inquietações que convidamos Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, Marcia Zucchi, Paula Borsoi e Stella Jimenez para nos ajudarem a fazer ressoar as questões, a partir de suas experiências como mais-uns na escola, e o que se pode constatar no vídeo certamente ficará sedimentado como um grande esforço de transferência de trabalho na seção rio em torno dos cartéis.

[1]   Bassols, M.: A impossível identificação do analista. Correio 81, p. 28.
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Jornada de Cartéis

O Cartel é Escola                                                  

Jornada de Carteis da EBP- Seção Rio – 17/08/19

Ana Tereza Groisman

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”

Guimarães Rosa[1]

Como fala de abertura, farei uma breve apresentação a partir de duas formulações sobre o Cartel e a Jornada de Cartéis.

Parte 1: O cartel é Escola

Lacan, tanto no Ato de Fundação[2], quanto na Dissolução da Escola, aposta no Cartel como um dispositivo de trabalho que acompanha o que ele propõe como Escola de psicanálise (mesmo que em 1980 ele proponha nomear de Campo e não de Escola)[3].

Ele formula o Cartel como o órgão de base da Escola, seu coração pulsante, ou talvez o fígado que acolhe a bílis, restaura e desintoxica o organismo Escola. O Cartel é escola e o cartel faz Escola, tanto no sentido de fazê-la funcionar como lugar de ensino e transmissão, quanto como solução para lidar com o mal-estar Escola. Ele constitui seu corpo, um corpo meio aos pedaços, mas que por vezes se torna visível num conjunto dissonante. Hoje teremos notícias de um trabalho de Escola que vem se produzindo em nossa seção.

 “Quatro se escolhem para empreender um trabalho que deve ter seu produto. Esclareço: produto próprio a cada um e não coletivo”. [4]

Noutro ponto, porém, Lacan ressalta que se o produto é singular, sua produção conta com o apoio de um pequeno grupo, um pequeno grupo enlaçado pela transferência de trabalho e articulado a um grupo maior que chamamos Escola.

Nessa mesma aula, ao formalizar o Cartel, ele chama a atenção de que “não se espera do Cartel nenhum progresso além daquele de uma exposição periódica, uma exposição tanto dos resultados quanto das crises de trabalho”.[5] Esse é o objetivo dessa jornada: acolher essa produção singular, apoiada no pequeno grupo.

 Parte 2: O cartel como elaboração provocada

A jornada segue esse fluxo, é provocada pelos frutos recolhidos do cartel, ao mesmo tempo em que provoca uma certa precipitação de sua colheita. A jornada é também um meio do caminho, um percurso que começa bem antes de hoje e nos leva um pouco mais adiante. Ela articula um tempo passado, quando acontece o trabalho de cartel, e se bem-sucedida, um futuro que exigirá mais trabalho de cartel. Mas nesse meio do caminho paramos um pouco para recolher o que vimos até aqui, questões serão levantadas, sustentadas e discutidas para que o trabalho continue e algo se deposite como balizas que orientam o caminho.

Inspirada pela leitura de “Grande Sertão: Veredas”, meus votos para essa jornada é que ela se inclua no veio do rio e desague na formação que a Escola propicia a cada um de nós. Os carteis são veredas que desaguam e se misturam no grande leito de Rio que é nossa Escola, as vezes de aguas turbulentas, noutras turvas, mas felizmente tem seus momentos de calmaria, quando podemos desfrutar do prazer de mergulhos profundos ou de nos deixarmos levar por uma corrente amena e desembarcar em outras margens.

Acolhemos hoje todos os trabalhos que nos chegaram, alguns se precipitam logo no início do tempo de Cartel, outros se constituem como uma retomada de um longo percurso, e outros ainda como um resgate de algo precioso que precisou ser interrompido precocemente. Cada um parte de um ponto. Vamos ver onde nos levam…

A jornada é longa, não termina aqui e esperamos que possa se incluir no caminho de cada um como um momento de elaboração que ainda renderá outros frutos. Pensamos e organizamos essa jornada com o intuito de seguirmos o funcionamento de Cartel, uma elaboração provocada apoiada num grupo, nem tão pequeno assim, mas também reunido pela transferência de trabalho e os laços de confiança que propiciam que as questões levantadas por cada um possam encontrar boa acolhida. Contamos para isso com a participação de todos para que o trabalho de Escola aconteça e frutifique.

  1. Notícias dos bastidores:

Gostaria de falar também um pouquinho sobre nosso lindo cartaz, arte do nosso querido Lourenço. O cartaz dá um pouco a cara do evento, e quando estávamos na etapa de sua criação, várias ideias iam surgindo, vários significantes foram lançados para que Lourenço pudesse fazer sua arte, criando uma imagem que representaria nosso encontro: fronteira, caminho, travessia, dobradiça, cross-cap, banda de moebius, nós, enlaces, máquina de guerra, furo, turbilhão, bricolagem… Um enxame de significantes sintetizados nessa imagem de inúmeras dobradiças, de diversos calibres, pontos de apoio e tamanhos diferentes, gostei especialmente da ideia dos furos abertos, aqueles que possibilitam que a dobradiça cumpra sua função mecânica de dar passagem entre os espaços que se separam por portas, janelas ou pequenos alçapões, quanto mais furos tem uma dobradiça, maior é sua força e mais seguros ficamos de que ela cumpra sua função. Apoiamo-nos, portanto nos furos da dobradiça, confiando que hoje passaremos com ela de fora pra dentro ou de dentro pra fora numa pulsação vibrante.

A dobradiça se difere da porta de entrada, ela é o que movimenta e sustenta a porta que está por se construir por cada um ao seu tempo e ao seu modo. O cartel sem a Escola não faz sentido, assim como a Escola sem cartel não existe.[6]

Agradeço desde já a todos que nos confiaram seus trabalhos e aos colegas que aceitaram nosso convite a animar o debate de cada um deles. Agradeço também às minhas colegas de diretoria, Andréa Reis, Andréa Villanova e Renata Martinez, pelo apoio acolhedor e animado de sempre. À minha equipe maravilhosa que trabalhou muito para que esse evento pudesse acontecer, Francisca Menta, Lourenço Astua e Vicente Gaglianone, além de Clarisse Boechat que infelizmente não pode estar conosco hoje, mas que esteve presente em todas as etapas que antecederam a Jornada. E por fim, um agradecimento especial a Rodrigo Lyra e Nohemi Brown, respectivamente o ex e a atual diretora de Cartéis e intercâmbios da EBP. Considero um privilégio poder juntar os dois hoje aqui para conversarmos sobre Cartel e sobre o trabalho da diretoria de Cartéis na rotina de nossa Escola. Nohemi que veio de Curitiba é muito bem-vinda à nossa seção onde já é de casa!


[1] ROSA, G. J. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 52
[2] LACAN, J. 1964 : Ato de fundação, Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003
[3] LACAN, J. 1980. D’Écolage, in: Rocha, A.T. (org). Manual de Carteis. Minas Gerais: Scriptum / EBP-MG, 2010, p. 13-16.
[4] Op.cit, p.14
[5] Lacan, J. 1980: D’Écolage, in: Rocha, A.T. (org). Manual de Carteis. Minas Gerais: Scriptum / EBP-MG, 2010, p. 14.
[6] BRIOLE, G. “O cartel ensina?” in: Rocha, A.T. (org). Manual de Carteis. Minas Gerais: Scriptum / EBP-MG, 2010, p. 37-40.

A lucidez atual do cartel[1]

Rodrigo Lyra Carvalho

Eu recebi o convite para estar hoje nessa mesa como uma oportunidade de refletir sobre os dois anos em que fiz parte da diretoria da EBP, entre abril de 2017 e abril de 2019. Agradeço genuinamente à Diretoria da Seção Rio e especialmente à Ana Tereza Groisman, pois o convite me permite aproveitar duas dimensões muitos valiosas ao ato de reflexão: por um lado, o endereçamento e, por outro, uma certa distância temporal. Algumas das coisas que se decantaram na escrita desse trabalho não teriam acontecido sem a perspectiva de endereçar a vocês essas reflexões e sem a passagem de algum tempo desde o fim da função.

Tendo, portanto, vocês como meu Outro e alguns meses de esquecimento, busquei recordar a experiência na diretoria e comecei a me perguntar sobre como tinha sido estar “responsável” pelos cartéis na Escola. Logo estranhei essa pergunta e essa palavra. Alguém sentindo-se responsável pelos cartéis… Me veio à mente a preocupação com a realização de Jornadas de Cartéis nas Seções… Me lembrei, ainda, da atenção com o número de cartéis na Escola e a satisfação de terminar a diretoria vendo uma boa quantidade deles em funcionamento. Mais estranhamento…

Já um pouco distante do exercício da função na diretoria, não foi difícil interpretar a inquietude: eu experimentava perguntas e preocupações de mestre. Dito de outro modo, eu estava tomando os cartéis como objeto a partir de uma posição situada na hierarquia institucional, um lugar executivo, por assim dizer. Levando ao limite, poderíamos dizer que é exatamente o oposto daquilo que Lacan parecia almejar com a função do cartel.

Para situar essa ideia, um pouco de história. Se eu me vi tomado pelo discurso do mestre, então agora vamos ao discurso universitário. Mas vou tentar não perder o fio da meada, ou seja, aquilo que efetivamente me interroga sobre a Escola hoje, sobre meu desejo em relação a esse movimento.

O cartel foi inicialmente proposto por Lacan em 1964, no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris, que se seguiu ao que Lacan designou como sua “excomunhão” da IPA. Ali, ele menciona que a “execução do trabalho” [na Escola] se apoiará em um pequeno grupo, composto por entre três e cinco pessoas, mais um. “Após certo tempo de funcionamento”, aponta Lacan, “os componentes de um grupo verão ser-lhes proposta a permuta para outro” pequeno grupo (1964/2003, p. 235). Além disso, a própria “adesão [leia-se, a entrada] à Escola será feita mediante a apresentação a ela” desse pequeno grupo (1964/2003, p. 235).

Embora encontre-se aí a indicação de um lugar bastante central pensado por Lacan para a função do cartel na Escola, não parece que a ideia tenha sido efetivamente colocada em prática como tal. Pelo que eu pude pesquisar sobre os dezesseis anos de existência da EFP, houve experiências diversas com a ideia de grupos, com tamanhos e funcionamentos bem distintos, mas o cartel não chegou a funcionar com consistência, ao menos não na forma que o conhecemos hoje.

Aproximadamente dezesseis anos e várias crises institucionais depois, já no contexto de uma nova fundação (1980), Lacan retoma a proposta do cartel e fornece mais detalhes. É ali que a notória expressão órgão de base é usada para designar o cartel: “(…) dou partida à Causa Freudiana — e restauro em seu favor o órgão de base retomado da fundação da Escola — ou seja, o cartel” (1980)

É claro que essa não é uma ideia simples. Ela chama atenção e interroga, pois geralmente pensamos que a base deve ser o que há de mais sólido, mais consistente, mais duro; as fundações de um edifício, se fizermos uma aproximação com a construção civil, devem ser inteiras, não podem ter um furo que seja, sob o risco de tudo desabar. Ao propor o cartel como base de sua Escola, Lacan parece não acreditar muito na engenharia civil ou, pelo menos, não querer que a Escola dele seja um edifício muito alto. Ele não tem medo de que a Escola caia, ou talvez ache que a Escola vai ser melhor se estiver caindo o tempo todo.

Em seguida, nesse mesmo texto, Lacan “aprimora” a proposta inicial e descreve o seguinte funcionamento: os participantes se escolhem livremente, cada um deve ter um produto individual, ao mais-um compete a provocação ao trabalho, o período de um ano é o prazo desejado e dois anos é o limite. Além disso, Lacan ressalta que tanto os produtos do cartel quanto as crises pelas quais ele venha a passar devem ser tratados “a céu aberto” (1980).

As indicações de Lacan fornecidas nesses dois momentos de fundação de Escolas, somadas a outros dispositivos propostos e outras considerações institucionais, nos permitem depreender que Lacan vislumbrava uma Escola que funcionasse em torno e a partir da lógica dos cartéis.

Agora, de volta ao presente.

Talvez nem todos vocês saibam que apenas na Assembleia da EBP realizada em abril desse ano foi oficialmente criada, no nível nacional, uma Diretoria de Cartéis. Antes disso, era a Diretoria de Secretaria, que eu ocupei, que se encarregava dos temas relativos aos cartéis, ainda que muitos se referissem informalmente a essa função como Diretoria de Cartéis.

Pois bem, seguindo as palavras de Lacan sobre o cartel e o meu estranhamento com o caminho inicial das minhas reflexões de mestre, cheguei à ideia, uma ideia limite sem dúvida, feita apenas para provocar o pensamento, de que a existência de uma Diretoria de Cartéis revela, por si só, um fracasso na função dos cartéis.

Me permiti, então, embarcar um pouco mais nessa direção, ver aonde o pensamento me levaria e cheguei aqui: se o cartel é o órgão de base da Escola, como Lacan desejou, uma Jornada de Cartéis não deveria existir.

Ou seja, assim como a existência de uma Diretoria de Cartéis, a realização de uma Jornada de Cartéis também testemunharia um fracasso.

Me entendam bem: eu sempre tive a percepção de que a Jornadas de Cartéis eram bem-sucedidas. Durante meu tempo na diretoria, essa impressão se confirmou muitas vezes: as diversas Jornadas de Cartéis realizadas ao redor da Brasil, que eu pude acompanhar mais de perto, eram quase sempre vividas como ricas, espontâneas, com temas múltiplos, com intervenções mais pessoais e conversas francas sobre as dificuldades do dispositivo. Enfim, coisas muitos boas, mas, de algum modo, emparedadas dentro desse espaço específico, um espaço “de cartéis”, como se essa fosse uma das muitas salas na grande casa que é a Escola.

Ocorre que o cartel não foi criado para ter um espaço específico dentro da Escola, senão para funcionar como a sua base e para furar a hierarquia. Por isso, justamente, a ideia de que o sucesso e a afirmação dos espaços “de cartéis” podem ser, ao mesmo tempo, pensados como seu fracasso.

Eu estava às voltas com esse tipo de pensamento quando me veio à mente um chiste cujo autor desconheço: “Não podemos deixar o fracasso subir à cabeça!”.

O chiste cai aqui como uma luva. Apontar o fracasso do cartel não significa afirmar que tudo está errado, que tudo deveria ser diferente, que tudo precisa ser corrigido. Isso seria, afinal, tomar o fracasso na perspectiva do mestre. Bem, mas se o discurso do mestre é a raiz do problema, logo ele não poderia ser também a solução.

Estamos diante de um fracasso que é, em sua raiz, inevitável. Dos cartéis, nesse sentido, não se espera que anulem essa tendência, mas sim que sejam capazes de a tensionar. Esse fracasso, portanto, que eu chamaria de um fracasso estrutural, não demanda ser corrigido, mas sim ser continuamente interpretado.

É isso que eu gostaria de tentar fazer, como eu puder, nos próximos minutos, a partir da ideia de que tensionar o discurso do mestre, embora seja uma função permanente do cartel, toma formas muitas distintas a cada contexto institucional, a cada momento da civilização e mesmo a cada visada singular sobre essa função. A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: se o cartel foi criado como um antídoto permanente à instalação do discurso do mestre, como podemos pensar essa função no contexto atual da cultura e da Escola?

Para pensar isso, vou recorrer novamente à história e vou seguir o fio da expressão “a céu aberto”[2], muito marcante no momento em que Lacan propõe o cartel como órgão de base da Escola que ele estava fundando. Essa expressão certamente não é casual; na verdade, me parece ser central para compreender de que modos Lacan via o discurso do mestre operar na instituição àquela época e como desejava subvertê-lo.

O surgimento dessa expressão em 1980 sugere que os dezesseis anos de existência da Escola Freudiana de Paris não foram suficientes para enfrentar um dos maiores problemas que Lacan enxergava no funcionamento das Sociedades de Psicanálise e que ele havia descrito com acidez e irreverência – como mencionei em um trabalho anterior – no texto “A situação da psicanálise em 1956” (1956/1998), onde ele cria verdadeiros personagens de teatro para elucidar a estrutura que regia o funcionamento da IPA. É um texto importante para situar a posterior criação dos cartéis na medida em que ali se detalha o cenário que deveria ser evitado.

Lacan buscava combater um modo de constituição e de funcionamento da Escola pautado pela fetichização da hierarquia, pelo carisma improdutivo, pelo silêncio das sumidades. A essas figuras com que convivia na IPA, Lacan chamou ironicamente de “Suficiências” e assim as descreveu: “A suficiência em si encontra-se para-além de qualquer comprovação. Não tem que bastar para nada, já que basta para si mesma” (2008/1956, p. 478)”. Sob elas, na hierarquia institucional, encontram-se os “Sapatinhos apertados”, que tampouco têm algo dizer, uma vez que “um bom analisando não faz perguntas” (1956/1998). Justamente numa Sociedade, “cuja incumbência é manter um certo discurso”, diz Lacan, “o silêncio impera soberano” (1956/1998).

Nesse sentido, a proposta do cartel visa afastar sua Escola do trabalho de “cooptação de doutos” (1967/2008) para inscrevê-la num movimento contínuo de elaboração em torno de um ponto de impossível, ao qual todo e qualquer membro está submetido.

Esse desejo de Lacan fica ainda mais evidente quando notamos que ele não se restringia à proposta do cartel. Penso por exemplo em Scilicet, a publicação lançada por Lacan em 1968, em cuja capa ele quis que estivesse estampada a seguinte frase “Você pode saber o que pensa a Escola Freudiana de Paris”. Ou no dispositivo do passe, que embora não tenha tido, assim como o cartel, a aceitação que Lacan desejava durante os dezesseis anos de existência da EFP, visava igualmente à colocação a céu aberto das experiências de fim de análise e passagem à analista.

Desse modo, a invenção do cartel, a proposta do passe e a capa de Scilicet, somadas à descrição que Lacan faz do funcionamento da IPA, oferecem um certo retrato da paisagem institucional e refletem também, certamente, algo do contexto da época.

Creio que podemos encontrar essa dobradiça justamente no retrato que Lacan faz da Sociedade de Psicanálise em 1956. Embora ele dê grande destaque à prevalência do imaginário nesse funcionamento institucional[3], marcado pela enfatuação e pelo carisma improdutivo, trata-se de uma modalidade específica de manifestação do imaginário, própria a um contexto onde o simbólico ainda se sustenta na eficácia do pai. Não é à toa que Lacan, nesse mesmo texto, descreve o funcionamento da IPA de um modo congruente com a estrutura dos grupos artificias observados por Freud[4]. Afinal, apenas quando a aura do pai ressoa na cultura, é possível fazer crer que, por trás do silêncio e da enfatuação, está secretamente guardado o saber sobre o que é ser psicanalista

Era exatamente nesse ponto, portanto, que incidia a interpretação de Lacan: se a relação da Sociedade tanto consiga mesmo, quanto com a cultura era de retenção, produzindo uma vertente imaginária da suposição de saber, Lacan convocava sua Escola ao saber exposto, um verdadeiro antídoto contra a enfatuação.

Era em relação a isso que o cartel, em grande parte, se situava.

Ocorre que o saber exposto que, naquele momento, agiu como uma interpretação é, agora, o mandamento do mestre. Hoje, parece improvável que o silêncio seja capaz de produzir o carisma e a suposição de saber. Pelo contrário, em meio à fragilização do patriarcado, vemos uma busca ininterrupta pela demonstração da autoridade que, no limite, precisa ser construída a cada vez e no próprio momento em que se enuncia uma mensagem, em que se toma a palavra. Se o silêncio poderia simular a guarda de um segredo e conferir valor ao seu suposto detentor, hoje, quem não aparece desaparece.

A diferença da civilização a respeito desse ponto é tão grande que podemos encontrar um cenário quase invertido. Ele se revela, por exemplo, no texto “O nosso sujeito suposto saber” de Miller, onde ele afirma: “Quando o mestre, hoje, exige transparência e rastreabilidade, o que podemos alegar senão a opacidade necessária à nossa prática? (2007, p. 6)”.

Ou seja, hoje é o próprio mestre quem exige que tudo, tudo mesmo, esteja a céu aberto. Há inúmeras formas de ilustrar esse fenômeno, mas ele pode ser bem resumido, me parece, se observamos, por um lado, o quanto o discurso científico aliado à lógica da avaliação avançou sobre incontáveis esferas subjetivas e sociais e, por outro, o quanto a lógica da exposição permanente passou a ditar o modo de construção de identidades e das interações no grande campo da internet.

É notável a diferença com relação ao regime de saber que imperava, segundo Lacan, em uma IPA onde o argumento de autoridade era antes sustentado pelo silêncio das Suficiências.

Durante a preparação para o Encontro Brasileiro, escrevi um pequeno texto em que comparava, com algum humor, a frase de capa de Scilicet (“Você pode saber o que pensa a Escola Freudiana de Paris”) com a frase de capa do Facebook, No que você está pensando?”, que nos convida permanentemente a publicar o que nos vem à mente. Hoje, você pode saber o que pensam não apenas a Escola Freudiana de Paris, mas também os mais de 2 bilhões de seres falantes que se servem da rede social. Estimular o “céu aberto’ está longe de ser, por si só, uma subversão do espírito do tempo.

Estamos, portanto, nessa dobradiça, em que o cartel se depara, por um lado, com a Escola e, por outro, com a civilização.

Essa ideia, aliás, de que o cartel é a dobradiça entre a Escola e a civilização pode ganhar uma importante dimensão no nosso momento institucional, afinal, não apenas temos explorado há muitos anos a ideia da presença no analista no tecido social (a expressão analista-cidadão, de Laurent, é uma marca disso), como fomos instigados, mais recentemente, por Jacques-Alain Miller a levar a psicanálise à política e a recusar, uma vez mais, a tentadora posição de extra territorialidade.

Mas em um mundo infestado de manuais, técnicas, coachs, depoimentos, como não diluir a psicanálise ao a oferecer como uma técnica a mais? Como não ser enfeitiçado pela lógica da avaliação e dos likes? Como ir ao campo político sem ser tragado pelas paixões partidárias e pelo reino das opiniões? Se tudo está a céu aberto, a lógica do cartel ainda nos serve?

É claro que não há como fornecer respostas imediatas e prontas a essas questões. Elas são permanentes e precisam ser enfrentadas a cada vez, a cada situação. Elas nos conduzem, no entanto, a uma pergunta anterior: de que modo nossa Escola pode lidar com elas?

Uma hipótese, quase lógica, poderia se amparar nessa mesma retomada histórica que eu fiz e concluir: bem, Lacan criou o cartel (uma estrutura, pequena, instável, sem líder, provisória) para enfrentar uma forma oposta a essa, ou seja, uma pirâmide grupal forte e hierarquizada.

Pois então, diante de um mundo caótico, desregulado, verborrágico e acelerado, não deveríamos apostar em um formato lento, controlado, ponderado e silenciado?

Faria todo o sentido, mas infelizmente não faz nenhum.

Diante da tarefa que temos diante de nós, que pode ser enunciada de muitas formas, mas que pode ser resumida na forte expressão recente de Miller, a de “inscrever para sempre o ensino de Lacan no discurso universal” (2017), o melhor caminho, me parece, é renovar nossa aposta no cartel.

Podemos fazer isso sabendo que o cartel, hoje, de fato se parece com o mundo lá fora, ao invés de antagonizá-lo. Pequenos grupos, reunidos por um interesse, com duração instável, sem hierarquia… Em um relatório elaborado sobre os cartéis, Ram Mandil fez uma afirmação muito precisa sobre essa questão: “Vemos nitidamente que as novas formas de manifestação ou de organização do laço social buscam negar o lugar do líder, como se o nivelamento dos semblantes fosse a melhor maneira de abordar o real em jogo” (2018).

A partir da análise que faz Ram Mandil, podemos encontrar uma nova versão do que eu chamaria de a lucidez do cartel diante do laço social: a quebra hierárquica que ele promove não caminha na direção de uma desordem precipitada ou de um questionamento histérico. O cartel “sabe”, se vocês me permitem essa personalização, que o nivelamento dos semblantes não é, por si só, resposta a nada, seja do ponto vista institucional, seja do ponto de vista da civilização.

Ou seja, embora em aparência o cartel seja homologo ao tipo de reunião promovida de forma mais corriqueira nos laços sociais atuais – instável, temático, provisório, sem hierarquia -, ele preserva sua potência subversiva na medida em que nos aponta um modo de fazer rede capaz de preservar e apoiar a narrativa das diferenças.

É uma tarefa atualíssima. Como afirma Romildo do Rêgo Barros,

Se é verdade que nossa civilização se caracteriza por uma não resposta do outro (…) então é preciso que haja grupos que saibam manejar a ligação horizontal entre os iguais. É preciso uma nova estruturação simbólica que parta não da adesão de cada um ao chefe e sim da ligação horizontal, sem que isso se dê pela via de um “todos iguais”, que tende a restabelecer o Um sob a forma do pior (2008, p. 58)

Nesse sentido, o produto de um cartel será feito em nome próprio, sim, pois o saber não é anônimo, mas nem por isso ele será a revelação daquilo que reside na mente isolada de psicanalista. O produto de um cartel é a narrativa de uma experiência de interação, de enredamento, das conexões que se fizeram ao longo dos encontros desse dispositivo.

O cartel é hoje nossa grande referência, nosso campo de estudos, sobre os modos possíveis estar no tecido social e, ainda assim, produzir textos que não sejam imediatamente absorvidos, vendidos e manipulados. Ele não é apenas um dispositivo que favorece o estudo e as atividades institucionais, ele é a pesquisa, em ato, de um novo modo de tecer o laço e fazer a Escola. Por isso, ele pode ser subversivo, mesmo sendo parecido com o mundo lá fora.

Quando a Escola se lança com mais vigor rumo ao desejo de conversar com sua época, nenhum dispositivo é mais pertinente que o seu bom e velho órgão de base.


Lacan, J. (1956/1998) “A situação da psicanálise em 1956” in Escritos. Rio de Janeiro: JZE, p. 478.
Lacan, J. (1964/2003) “Ato de Fundação” in Outro Escritos. Rio de Janeiro: JZE.
Lacan (1980) D’Écolage. Retirado de
https://www.wapol.org/pt/las_escuelas/TemplateArticulo.asp?intTipoPagina=4&intEdicion=1&intIdiomaPublicacion=1&intArticulo=159&intIdiomaArticulo=5&intPublicacion=10
Mandil, R. “Relatório da Secretaria de Cartéis da AMP: efeitos das mutações dos vínculos socias sobre os cartéis”, 2018.
Miller, J.-A. (2007) « Notre sujet supposé savoir » in La Lettre mensuelle n. 254. Paris : ECF.
MILLER, J.-A. Campo Freudiano, ano zero. Lacan Quotidien n. 718, Paris, 11/07 2017.
Rego Barros, R. (2008) “Da massa freudiana ao pequeno grupo lacaniano” in Machado, O.; Grova, T. (Org.) Psicanálise na favela Projeto Digaí-Maré: a clínica dos grupos. 1 ed. Rio de Janeiro: Digaí, p. 25-35
[1] Apresentado durante as Jornadas de Cartéis da Seção Rio da EBP, em agosto de 2018.
[2] Esse trecho retoma partes de um pequeno texto chamado “Sobre o falo, o saber e as redes sociais” escrito para o Boletim Preparatório ao XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
[3] A identificação ao analista como direção do tratamento seria análoga a uma instituição onde a suposta transmissão da posição analítica se dá por “uma reprodução imaginária, que por uma modalidade de fac-símile análoga à impressão, permite sua tiragem num certo número de exemplares” (ibid, p.479).
[4] Na Sociedade, diz Lacan, “é por uma linha individual, na identificação coletiva, que os sujeitos são informados; essa informação só é comum por ser idêntica em sua fonte. Freud enfatizou o fato de que essa é a identidade que a idealização narcísica traz em si (…)” (E 482).
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O cartel e seu funcionamento na lógica de Escola

Nohemí Brown

Agradeço o convite feito por Ana Tereza para estar hoje na Seção RJ, agradeço a diretoria da Seção pela oportunidade de conversar sobre a importância do cartel para o funcionamento da Escola e sobre o trabalho da Diretoria geral na orientação desse trabalho.

Já são três momentos nos quais acompanho os cartéis na EBP. Em um primeiro momento, de forma mais distante, quando Fernanda Otoni era “Diretora secretária” e eu fazia parte da comissão Ação Dobradiça; depois mais diretamente com Rodrigo Lyra, “Diretor secretário” até abril deste ano (a quem reitero o agradecimento pela parceria de trabalho) e, agora, como “Diretora de cartéis e intercâmbio” propriamente, uma mudança que foi feita recentemente na configuração da Diretoria da EBP.

Especialmente a Rodrigo lhe agradeço o sutil forçamento que fez quando eu duvidava em aceitar cuidar do catálogo dos cartéis da EBP. Função que hoje Ana Tereza realiza. Inicialmente me resisti, pois o considerava uma atividade “burocrática”, sublinho burocrática, que é a de registrar e retirar os cartéis no catálogo online. Mas para minha surpresa Rodrigo muito sutilmente me questionou sobre isso, o que de alguma maneira “provocou certa elaboração”, a partir de minha participação como cartelizante ou Mais-um em alguns cartéis, e abriu meu interesse pela função do catálogo. Ficar na ordem da burocracia, podemos dizer, é a melhor forma de matar o desejo. O que me pareceu interessante foi acompanhar o valor da inscrição do cartel no catálogo. A inscrição implica, no melhor dos casos, um tempo e um ato, isto é, um cálculo sobre o momento da inscrição e, no final das contas, um ato realizado pelo Mais-um que pode ter efeitos importantes para o cartel e que é fundamental recolher e saber ler. Essa dimensão do tempo e do ato não estão apenas na inscrição, mas também na dissolução. Portanto, considerar a inscrição e a dissolução deste modo, implica localizar outra lógica diferente da do simples registro automático dos cartéis. Ao contrário, isso vai contra a lógica própria do cartel. Há algo no cartel de inapreensível, de anti-burocrático. Como coloca Diana Wolodarsky da EOL “…o trabalho de um cartel pode se tornar burocrático quando a cada vez que se reúne não se circunscreva alguma construção do saber do que não se sabe”.[1]

Se bem podemos dizer que existe um automaton que há que preservar no cartel, porém não é o mesmo que a burocracia. Porque o que interessa é que seja sério, no sentido de que constituía serie: série de encontros, serie de leituras, série de questionamentos, etc. mas sempre aberto à contingencia, ou seja a um não saber central.

Há a burocracia como instrumento de gestão, necessário para o estabelecimento de um funcionamento institucional, mas não pode se confundir com uma burocracia do saber. Ela não é necessária no seio do cartel. Neste sentido, a apresentação de trabalhos e a assistência às jornadas de cartéis é algo desejável. É algo da ordem do desejo, que as vezes há que provocar.

Inclusive, partindo da lógica de trabalho do cartel várias sutilezas podem ser consideradas através do catalogo já que é uma maneira como a Diretoria Nacional de Cartéis, pode acompanhar de forma mais próxima junto com os Diretores das Seções a formação dos cartéis, os impasses, os não funcionamentos, os usos ou as particularidades dos cartéis em cada lugar.

Na EBP, onde há uma tendência a dispersão, como já disse Miller em determinado momento, o catálogo de alguma forma tem uma função de Um no múltiplo da nossa Escola.

Precariedade e o real dos grupos

Considerando a questão do funcionamento do cartel, cabe destacar que parece haver sempre algo da ordem de uma precariedade. Uma precariedade não no sentido pejorativo do termo. E me parece que esse é um ponto interessante. Como diz uma colega, quando o cartel não funciona é quando nos fazemos perguntas, quando ele funciona o achamos natural. Assim, que quando há algo no cartel que não funciona, e é bem frequente, resulta relevante, pois nos coloca a trabalho.

Sobre a precariedade, Franco Berardi, filosofo italiano, no livro Depois do futuro[2], faz uma reflexão e coloca a precariedade como um modo de vida muito atual, fruto do desapontamento com a ideia da progressão do conhecimento da ciência para governar mais completamente o universo. As premissas filosóficas, estéticas e sociais que desenharam a expectativa de futuro dos modernos se desfizeram, produzindo a dissolução da credibilidade de um modelo progressivo de futuro. O que resta disso, segundo ele, é uma paralisia da vontade, que é um outro modo de dizer precariedade. A precariedade se torna uma forma geral da relação social e afeta a composição social.

Neste sentido, me chamou a atenção que Lacan, na formalização que ele fez do cartel, no texto Decolage, parte de um questionamento da ideia de progresso. Ele diz que do cartel “não se espera nenhum progresso além daquele de uma exposição periódica, tanto dos resultados quando das crises de trabalho”.[3]  O cartel não se coloca em uma linha de progresso, senão de efeitos, de restos, de momentos, de um tempo um tanto precário poderíamos dizer. Mas um precário que dá lugar ao desejo de cada um e pode produzir efeitos de formação e não de devastação que é ao que se refere Franco Bernardi. Para isso, é importante que o cartel se sustente em suas coordenadas precisas:  tempo limitado, permutação, número específico de participantes, e não hierárquico.

O cartel, aberto às contingencias, mas não disperso.

Não há O cartel. Há cartéis, singulares. Quando participamos em algum sempre é diferente do outro. Tanto como cartelizante ou como Mais-um. Inclusive as vezes parece haver um desejo de cartel mais forte do que outras. E há o que Miller coloca, não há a tendência ao trabalho, há a tendência à preguiça. Daí que a elaboração seja “provocada” e o Mais-um tem que saber fazer com isso, provocar, inventar, desde sua singularidade um certo “despertar”. Quando se identifica ao lugar do saber se amortece o desejo e todos dormem.

Neste sentido se poderia pensar a precariedade da que falava antes do lado da contingencia.

Portanto, o cartel é um dispositivo de trabalho onde cada um coloca algo de si, vai contra a paralisia da vontade. Tem coordenadas precisas, mas é aberto às contingencias.

  1. Há um tempo limitado, no máximo dois anos. Como já coloquei em outro lugar, a questão do tempo no cartel pode ser problematizada, desde a dimensão da pressa que pode precipitar a elaboração ou pode precipitar impasses. Também pode ser pensada desde o tempo lógico: do instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. E me parece importante nos interrogarmos sobre os chamados cartéis relâmpagos. Carteis de uma reunião só, por exemplo. São usos do cartel que podem renová-lo, mas também banalizá-lo. Não se trata de fazer uma doxa do cartel, como nos lembra M. Brousse, mais bem, respeitar seus princípios, fazer dele um instrumento de trabalho da psicanálise que pode ter efeitos de formação. Essa parece-me uma boa direção.
    Mauricio Tarrab faz uma observação importante, neste sentido. Ele coloca: Trata-se de colocar a prova os dispositivos inventados por Lacan, não de acreditar neles. Trata-se de colocar a prova a política que implica a orientação ao real e suas consequências em nível do grupo. Trata-se de colocar a prova o cartel, como dispositivo para verificar para que nos serve na Escola e que usos fazemos dele[4]. Este me parece ser um desafio importante se queremos pensar sobre o funcionamento do cartel na EBP.
  2. Como sabemos também implica um número limitado de participantes. Não é o anonimato da massa que está em jogo; cada um está ali em nome próprio e implicado desde sua questão.
    Ram Mandil[5] destacou uma frase de Lacan, depois consegui o texto, mas essa frase ficou ressoando: “em um cartel, há uma ligação entre o pequeno número de seus membros e o fato de que cada membro desse pequeno grupo porta seu próprio nome” (Ele essa retira afirmação de uma intervenção de Lacan durante a Jornada de Cartéis da EFP em 1975).
    Essa frase me parece muito interessante, pois não se trata do regime do anonimato, senão de portar o próprio nome. Do um a um, incluindo o Mais-um. O cartel leva em conta a enunciação e o engajamento que é algo da ordem do incomparável que se faz presente para cada um dos membros no trabalho no cartel.
    Se os cartéis tem como fundamento uma estrutura não hierárquica e permutativa, isso se dá na medida em que buscam favorecer a elaboração do saber de cada um de seus membros, decorrente de sua experiência com o real a partir do discurso analítico. 
  3. Em certo sentido, o cartel é um grupo muito contemporâneo, sem líder, sem hierarquias. O que particulariza o cartel dos grupos atuais? Porque não se confunde com as formações grupais contemporâneas?
    Se pensamos no funcionamento do cartel, as reuniões de cartel implicam uma certa precarização, não estão marcadas por uma centralidade absoluta em uma doutrina ou ideologia.
    Com seu funcionamento, o cartel torna-se um dispositivo que provoca a elaboração que a hierarquia ou a burocracia de uma instituição tendem a silenciar.
    Podemos dizer que o cartel é um grupo muito contemporâneo, sem líder, sem hierarquias, mas não todos são iguais. É na função do Mais-um onde podemos encontrar a particularidade. Como diz Sergio de Castro, o cartel pode vir como: “um sopro fresco e um antídoto ao aggiornamento de massa que vemos ocorrer hoje em dia.”
  4. Há uma dimensão de grupo. São principalmente 4 que se reúnem entorno de um tema e convidam ao Mais-um. Esse mais-um é alguém, não é qualquer um, mas alguém que é e não é do grupo. Gosto do termo Mais-um porque é uma forma de dizer que ele também tem uma questão e faz parte do grupo, mas por outro lado não é do grupo, é um a mais desse grupo e dali se deriva sua função.

No cartel se trata de provocar o trabalho, que é sob a forma de elaboração. O Mais-um encarna, principalmente, a função de provocar a elaboração. Mas ele também está provocado no cartel. Não fica no “silêncio das suficiências” como ironicamente Lacan chamava a posição do ‘analista’ da IPA em sua relação com o saber. No cartel, fica como um provocador – provocado[6], como o chama Miller. Entendo isso como alguém que não só convoca a elaboração, mas também está fisgado pelo tema, pela questão, se sente convocado. Desde este lugar entendo a afirmação de Miller quando diz que “o ensino de Lacan, não pode se transmitir de um sujeito ao outro, senão pelas vias de uma transferência de trabalho.”

Trata-se não mais de um saber Suposto, senão de um saber a produzir. E mais do que um produzir um saber, trata-se de produzir uma mudança de posição com relação ao saber. Esta me parece uma orientação fundamental.

Além disso, a relação com o saber no cartel implica certa satisfação. Uma relação “alegre” com o saber, e então, pode durar até que é divertido. Quando deixa de ser ‘divertido’ pode se tornar outra coisa.

Se o cartel é uma invenção artificial para tratar os efeitos de grupo, como vimos o cartel é um dispositivo privilegiado para considerar o real em jogo.

E, neste ponto, se dizemos que na formação há um real, como Lacan situa na Proposição… o cartel é um dispositivo que toma em conta o real em jogo na formação[7].

Primeiro, participar de fato de um cartel, implica um consentimento com sua lógica de trabalho e funcionamento. Com essa “precariedade”. É um dispositivo com o qual há que consentir. Ram, nesse relatório, diz algo que me parece muito pertinente. Ele coloca que no cartel “a palavra é colocada em função e é importante que os corpos possam consentir em se deslocar”. A palavra é colocada em função, no cartel funciona. E o deslocar não só no sentido físico.

Isso por um lado. Por outro, o real em jogo no cartel pode se manifestar, também, nos impasses com relação ao saber de cada um de seus membros, inclusive na forma como ele se constitui, no funcionamento do grupo, na elaboração do produto, nas dificuldades de dissolução ou permutação, etc.

No cartel, nos diferentes momentos há um real em jogo. A forma como pode se servir do cartel, não só nos aspectos epistêmicos, mas também considerando os impasses, podem se produzir efeitos de formação.

A partir deste ponto, podemos pensar o cartel como um dispositivo privilegiado, não só um dispositivo de produção de saber, mas especialmente, é um espaço privilegiado que implica as contingências. Me parece que a precariedade no cartel a podemos pensar a partir dessa abertura as contingencias.

Entre o íntimo e o coletivo

No cartel há algo entre o íntimo e o coletivo. Neste sentido o cartel como Dobradiça entre algo da ordem do íntimo, do interior e o exterior, o coletivo. Este dispositivo tem uma relação de dobradiça com a questão mais singular que move a cada um que participa dele e que o enlaça ao coletivo.

Porém, para que funcione como dobradiça, a função do Mais-um, como já vimos, é fundamental para que se sustente a diferença, a alteridade e possibilite a elaboração singular do que é causa para cada cartelizante. A função do Mais-um, não com um Um que unifica, senão com Um que mantem a diferença, a dimensão irredutível da solidão com a própria causa, mas que abre a possibilidade de enlaçamento com o Outro com quem se possa manter uma interlocução.

Neste ponto acho interessante a ampliação que M. Bassols faz da função do Mais-um no marco da Escola. Ele coloca: “O mais-um é precisamente aquele que deveria saber fazer aparecer o real no qual se funda o grupo para fazer dele sua bússola e saber tratar as miragens do imaginário e os impasses do simbólico… Que cada um chegue a ser “mais um” de uma experiência tal de Escola é o melhor traço de identidade que podemos esperar de “cada um” de seus membros, analistas e não analistas”.[8]

Neste sentido o cartel tem uma função de borda. Mas de borda também com a Escola. Não é um dentro e fora da Escola. E aqui a figura do cartel como “Porta de Entrada” se torna relevante: “porta de entrada inclusive para os próprios membros, uma entrada desde o interior. Uma relação de trabalho. Uma relação com o saber”.

Podemos destacar algo de uma dimensão de solidão não sem outros que implica o laço de trabalho entre o funcionamento do cartel, a formação do analista e a Escola, além dos formalismos institucionais. Essa função de Dobradiça do cartel.


[1] Woldodarsky, D. “Una ética del cartel”. In: El caldero de la Escuela, n. 81, outubro de 2000, p. 58-9.
[2] Berardi, F. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019.
[3] Lacan, J. D’Écolage. In: Manual de cartéis. Belo horizonte: EBP e Scriptum, p. 14.
[4] Tarrab, M.  Una política por el cartel, entre ideal y Wirklichkeit “realidade efectiva”. Disponível em: http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/etextos/carteles/textos/tarrab.html
[5] Mandil, R., Relatório da Secretária de Cartéis da AMP (2017)
[6] Miller, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In: Manual de cartéis. Op. Cit., p. 55-61.
[7] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003, p. 249.
[8] Bassols, M. “A impossível identificação do analista”. In: Correo. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 81. Dezembro, 2017, p. 48.
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