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2020

SEMINÁRIO DE ORIENTAÇÃO LACANIANA

Coordenação: Conselho da EBP Seção Rio

“Prática da Psicanálise em tempos de pandemia” é o título geral do Seminário de Orientação Lacaniana, no qual o Conselho da Seção trabalhará o curso O Lugar e o Laço (2000-2001) de Jacques-Alain Miller.
O encontro do dia 25 de maio se dedicará ao tema “Reinvenção da psicanálise e lugar analítico”. Tentaremos esclarecer por que a reinvenção é uma exigência feita ao analista diante das transformações ocorridas na cultura e como tal exigência se apresenta em tempos de pandemia. São questões que envolvem uma abordagem própria sobre a relação espaço-tempo, sobre o lugar analítico e sua possibilidade de fazer laço.

O analista e a prática da poesia

Por: Maria Silvia G. F Hanna
Seminário de Orientação Lacaniana – 07/12
  1. Sobre O SOL e o ano pandêmico.

Hoje caberá a Angélica Bastos e a mim trazermos algo do que extraímos a partir da leitura do Curso de J.-A Miller: El lugar y el laço (2000-2001),[1] capítulo 20, intitulado: A prática da poesia. Logo depois conversaremos com todos aqueles que se animem. Lembro que O seminário de Orientação Lacaniana teve um primeiro encontro no mês de março na sede da Seção sobre o curso de Miller: Extimidade. Logo veio o confinamento.

Mudamos nossa escolha de curso de Miller e passamos a trabalhar na leitura de alguns capítulos do El lugar y el lazo, curso sugerido pelo conselho da EBP, como um modo de acolher os questionamentos que surgiram e ainda surgem na nossa práxis a partir do confinamento. Todos em casa, atendendo via on-line. Essa foi a forma possível de continuar o trabalho das análises que conduzíamos ou fazíamos.

Os atendimentos online trouxeram uma serie de dúvidas e perguntas:

É possível fazer análise através do telefone?

O que nos autoriza a realizar essa prática?

Essa forma digital degrada a psicanálise e pode vir a transformá-la em uma psicoterapia?

Creio que ainda tudo isto está vivo em nós, nos fazendo pensar, elaborar.

Alguns dias atrás ouvi uma colega com muito percurso analítico dizer: “Era como se estivesse iniciando novamente”.

Certamente essa ideia tem sua pertinência. O espaço que habitávamos desapareceu e outro surgiu no lugar. O espaço físico, o espaço geográfico se transformou em um espaço virtual, digital. Algo inédito!

  1. Algumas marcas do Seminário de Orientação Lacaniana.

Destaco a seguir alguns significantes que me tocaram e permitiram que fizesse um certo percorrido durante este ano de seminário. Esses significantes resultaram da leitura de alguns capítulos do curso e fundamentalmente depois de ter ouvido as elaborações apresentadas por Ondina Machado, Angélica Bastos, Ana Tereza Groisman, Angela Batista e Rodrigo Lyra.

Lembro aqui alguns:

– A distinção entre lugar e posição do analista, o laço e discurso;

– a experiência analítica e seus princípios, a função do desejo do analista;

– a importância dos testemunhos do passe que encaminham a pergunta: como se faz um analista?

– Os novos tempos, a pressa, a necessidade de ver resultados e a virtualidade como elementos a considerar para o estabelecimento de uma transferência analítica;

– A psicanálise carrega seu próprio antidoto. O Sentido e o fora-de-sentido.

– Pensando com os pés.

  1. Teoria e prática: O ensino de J. Lacan

Desejo apresentar alguns comentários de j. -A Miller que me parecem interessantes sobre o tema do ensino de J. Lacan que permitem situar algumas relações entre teoria e prática e prática e teoria.

Em primeiro lugar, J. Lacan não fez um tratado de sua obra; ao contrário encontramos várias construções ao longo de sua caminhada. Várias teorias, podemos dizer? Cada uma responde a um certo tempo onde a prática do analista questiona a teoria.

É Freud quem dá o passo inicial inaugurando uma nova disciplina que sofrerá modificações, dentre as quais citamos a primeira e segunda tópica, a primeira e a segunda teoria das pulsões.

J. Lacan, leitor de Freud, percebe que as elaborações mudam, que elas são um verdadeiro work in progress e passa a se referir a suas construções, como “Seu ensino”. Ele se autoriza de si mesmo e com os outros. Ele diz: Meu ensino.

Assim, seus alunos, seus leitores e comentadores dividiram seu ensino em tempos: primeiro ensino, segundo ensino, último ensino. Nesses tempos as elaborações mudam, mas não se superpõem. Elas respondem a questões diferentes. Esse fato permite afirmar que há algo entre teoria e prática que não se adequa, algo frouxo entre o que se pensa e aquilo que está em jogo na psicanálise[2].

Cabe interrogar se a cada modificação na teoria a prática recebe seus efeitos. Certamente não fazemos hoje como se fazia na época de Freud, nem na época de Lacan. J. A Miller prefere não responder pelo sim ou pelo não, propondo deixar a resposta em aberto para gerar uma fenda na qual ele localiza uma des-amarração entre teoria e prática. Algo que resiste ao pensamento. Daí as teorias no campo da psicanálise levarem a marca do recalque. A marca do Não quero pensá-lo. Há uma permanente insatisfação com as construções que fazemos. Ausência de harmonia; no fim há ausência de relação sexual. Isto é já algo que se apresenta como um fora-do-sentido. É com isso que caminhamos. Esse fora-do-sentido gera a opacidade necessária para fazer os percursos, seja como analisantes ou como ensinantes.

Assim J. Miller define o ensino de J. Lacan como uma modalidade de fala que faz eco e que responde à fala analisante. Eco e fala analisante. Guardemos esses dois termos que me parecem interessantes para debater.

A fala analisante é correlata da fala interpretativa e da interpretação na experiência analítica. Já a fala ensinante se desprende dessas duas como uma terceira modalidade. A fala ensinante participa da fala analisante: lembremos que J. Lacan falava em posição de analisante, isto é, uma fala que se produz dirigida ao sujeito suposto saber. Nesse sentido essa fala ensinante é proferida desde uma posição analisante, causada por um “eu não sei”. Seria uma fala apaixonada pelo seu não saber. Bonito!

A fala ensinante também participa de uma fala interpretativa na medida em que revela ao sujeito suposto saber que ele não sabe o que diz. J. Lacan dizia isso aos praticantes que frequentavam seu seminário: “Vocês não têm a menor ideia, devem ser mais verdadeiros mais autênticos, mais realistas para poder extrair algo de sua pratica.”

Sobre o eco da fala……

E nós conseguimos extrair algo de nossa prática? Às vezes sim, às vezes não.

  1. O analista e a prática da poesia

No sentido geral, entendemos a prática de poesia como aquela que realizam os poetas: fazem poesia. Mas a expressão não é de poesia e sim da poesia. Esse pequeno detalhe nos coloca em uma posição diferente dos poetas.

Os poetas fazem poemas ou poesias e o analista conduz análise. O que permite que falemos em pratica da poesia?  Ambos estão no campo da linguagem e da fala, e portanto fazem um uso do significante. Guardemos essa ideia. É isso!

O significante tal como foi elaborado por J. Lacan, nada significa. Para ele promover algum valor, algum sentido, precisa se articular com outros significantes (importância do contexto). Além disso, o significante é veículo de gozo[3].

O que se espera de uma psicanálise? Dificilmente alguém vai a um psicanalista para fazer poesia. Pode ser que alguém inibido que queira fazer poesia e não consiga procure um analista. O que encontramos com mais frequência no início de uma análise é alguém que goza de uma maneira que lhe traz muito sofrimento e frente a isto decida ir a um analista. Por isso o sujeito que procura espera algum alivio para seus sintomas ou angústia que dão testemunho de uma modalidade de gozar.

Assim temos uma sequência – prática da poesia: operar sobre o uso do significante, que incidirá no gozo alojado ai.

A propósito do significante, cabe incluir o que Miller relata sobre sua identificação com um personagem de um conto de Borges, Pierre Menard. Trata-se de um escritor que reproduz palavra por palavra o Dom Quixote de Cervantes no século XX e se consagra como um grande escritor.

Esse exemplo serve para demonstrar que o mesmo texto se transforma em outro texto quando se desloca o significante para outro contexto, ganhando um novo sentido.

J.-A. Miller, assim como Pierre Menard, se coloca como um repetidor: repete Lacan como um grande ensinante da psicanálise, e produz em torno de sua orientação lacaniana um grande movimento no campo da psicanálise.

O significante pode ser repetido, traduzido, perder o sentido, ecoar, reverberar em seu aspecto fônico, ganhar um novo sentido. Sobre esse trabalho do significante, encontramos em Freud textos  importantíssimos, tais como: A Interpretação dos sonhos, A Psicopatologia da vida cotidiana, O Chiste e sua relação com o inconsciente. Mas J. Lacan Joyceano, em seu último ensino, levará isto até as ultimas consequências, produzindo explosões com dinamite pura e soltando pedaços, que permitem ir além do inconsciente definido como uma elucubração de saber (inconsciente freudiano) para cernir um inconsciente real.

J. -A Miller retoma o exemplo da dupla tradução de J. Lacan do termo Unbewust, no nível do sentido e no nível do som. Nesse caso J. Lacan reconstitui um sentido em francês a partir do som em alemão. Parece um método louco! Mistura de línguas – J. Lacan se deixa ensinar por J. Joyce, especialmente por seu livro Finnegans Wake.

Isso permitirá reafirmar com todas as letras que o inconsciente só se apreende no equívoco, “no pisar na bola”, naquilo que escapa ao domínio. Nesse sentido, a associação livre, única regra analítica, propicia esse deixar de lado o domínio, para dar lugar a àquilo que fala em cada um sem saber. Isso que é o real.

A tradução fônica de Unbewust proposta por Lacan faz o exercício de equivocar o significante, forçar uma ultrapassagem.  O mesmo sentido é deslocado de uma língua para outra gerando um sentido diferente.

J.-A Miller diz que no último ensino há um privilégio da poesia, que joga com o sentido sempre duplo do significante, sentido próprio e figurado, lexical e contextual, realizando uma violência sobre o uso comum da língua. Esse é o terreno da poesia.

  1. Para concluir

No final de seu ensino J. Lacan não abandona a lógica da psicanálise e sim promove uma relativização, na medida em que leva a sério a força da autonomia do significante pleno de gozo.

O analista na prática da poesia realiza uma certa violência sobre o significante que veicula o gozo do sujeito, torcendo-o, o retorcendo-o, ao ponto de fazê-lo dizer nada. Nesse ponto, o analisante poderá experimentar um flash de seu inconsciente real. O sujeito, ao fazer a experiência do “fora-de-sentido”, vai um pouco além do inconsciente definido como uma elucubração de saber, tocando algo de sua lalingua, e operando o gozo dolorido e mortífero. Depois de percorrer muitas vezes esse circuito, sempre sincopado, poderá se abrir para o analisante a possibilidade de inventar um outro significante, um significante novo ou renovado que veicule algo do gozo impossível de eliminar. Se assim acontecer será uma Alegria!!!! Vamos para o debate.

 


[1] Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013.
[2] Idem.
[3] Lacan. J. O seminário, livro 20: Mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

Prática e esforço de poesia.

Por Angélica Bastos

Neste último encontro do ano de 2020 do Seminário de Orientação Lacaniana  “Prática da Psicanálise em tempos de Pandemia”, agradeço especialmente a Maria Sílvia, companheira de Conselho, interlocutora e parceira na apresentação de hoje, e a Ruth Cohen, que gentilmente aceitou a incumbência de coordenar a mesa.

Transcorridos vários meses dos tempos pandemia, alguns pontos foram interrogados: o dispositivo, a presença do analista, o desejo do analista, o ensino, o sinthoma. Eles convergem para uma questão fundamental, bem viva, no coração de qualquer outra de que tenhamos tratado: o que fazemos quando fazemos psicanálise?

Por mais transitórias, provisórias que sejam as condições em que a praticamos hoje, essa questão sempre viva se recoloca com a volta das sessões aos consultórios e clínicas. Com o retorno das sessões presenciais, com a retomada de análises que foram suspensas, com a continuidade das análises que se iniciaram on-line, etc, começamos a recolher as consequências de um encontro com o real que se impôs de forma irreversível.

Este último encontro do ano parte da lição Uma prática da poesia, lição XXI do seminário de 2000-2001, O lugar e o laço, de Jacques-Alain Miller[1].

Aqui o termo ‘prática’ recobre várias ideias exploradas ao longo do seminário: prática no sentido de reunir psicanálise pura e psicanálise aplicada, prática que se dessolidariza dos conceitos freudianos. Como não poderia enumerar todas, destaco prática enquanto o fazer prevalece sobre o saber e, o que me parece mais decisivo para nosso trabalho de hoje, prática que busca levar o inconsciente ao nível do real fora-do-sentido.

Pouco mais de um ano depois dessa lição XXI, Miller dedica um seminário inteiro ao tema: o seminário “Um esforço de poesia”, de 2002-2003.[2] Primeiro ‘prática’ e, em seguida, ‘esforço’ são os dois significantes – não sei se os únicos – a que o termo poesia vem se agregar. Para mim, esse termo ‘esforço’, em seguida à ‘prática’, foi importante e vou tentar dizer por quê.

Conforme foi divulgado na chamada para esse encontro, nos termos de Miller, o que é chamado de ensino de Lacan é uma fala ensinante, portanto uma palavra em ato. Ela faz eco à fala analisante e responde a ela. Lacan considerava que seu ensino stricto sensu era proferido nos seminários e que ali falava enquanto analisante. Seus escritos seriam partes caducas, resíduos desse ensino. Na fala ensinante, portanto, “um analista toma a palavra e o faz sob a forma de ensino: aí se inscreve o ensino de Lacan”[3].

A fala ensinante não é a fala analisante – dizer o que vem à cabeça – mas retoma a fala analisante a partir da posição de sujeito. Dessa posição, a partir dela, a fala ensinante desdobra-se numa palavra movida, guiada por um Eu não sei, ao qual o sujeito barrado é devolvido de forma recorrente. Miller fala disso de uma maneira interessante: essa fala se desenrola em relação ao sujeito suposto saber, “enamorada de seu não saber”.[4] Se tento articular o que leio a partir da experiência e em torno do não-sabido, não poderia expor uma teoria ou uma sequência de teorias.

Digo teorias, no plural, porque a prática instituída pela concepção freudiana de inconsciente leva retroativamente a refundar a teoria de tempos em tempos.  A teoria se multiplica, até o ponto em que, ao inconsciente enquanto elucubração freudiana e também ao inconsciente ‘o nosso’ (quer dizer, o de Lacan em 1964, já distinto do freudiano), acrescenta-se o inconsciente real. Lacan o introduz com a exigência de não permanecermos no nível das ficções, da história, o que só reforça a necessidade de uma prática que faça a partilha entre o sentido e o real que o exclui, sempre prontos à nova mescla.

O ensino de Lacan se distingue do que recebe este nome em outros campos e disciplinas. O ensinante fala a praticantes da psicanálise que sabem, pois estão experimentados em matéria de transferência e interpretação. Se o ensino se dirige aos que sabem, sua relação com o saber não consiste em veiculá-lo, nem em fazer com que se translade de quem ensina a quem supostamente aprende.

Só que na experiência analítica há uma outra fala que também responde à fala analisante e que é a interpretação, a fala interpretativa[5].

Essa fala interpretativa, sabemos, não é acionada como instrumento de bem-estar, assim como não se propõe à fala analisante que se coloque a serviço da homeostase do princípio do prazer. Isso subtrairia da fala sua função de verdade, eludiria sua função gozo, para convertê-la em fator de equilíbrio psíquico. A compreensão, o domínio do gozo pelo saber, pelo ensino, ficam consequentemente descartados.

Enquanto a fala ensinante participa da interpretativa, ela revela ao sujeito suposto saber não aquilo que ele não sabe, mas sim que ele não sabe o que diz. Nesse sentido, não substitui opacidade por transparência.

Logo de saída, duas questões surgiram para mim.

  • POR QUE poesia? A expressão “uma prática da poesia” faz mais do que invocá-la. Afirma a psicanálise como prática da poesia.
  • COMO a poesia participa da experiência da análise? Como situar isso nas falas analisante e interpretativa?

Não viso responder a essas perguntas, mas explorar alguns caminhos e mantê-las abertas.

Para a primeira pergunta – “por que poesia?” – os seminários que mencionei (O Lugar e o Laço e Um Esforço de Poesia) esboçam um panorama da modernidade para nele situar os destinos da poesia. Não caberia retomar isso aqui. Limito-me a lembrar que a modernidade não se mostrou compatível com a poesia, não se revelou afeita a ela. Os poetas vão conclamar a um esforço de preservação da poesia, rechaçada da vida moderna por obra do discurso da ciência, que vem banir vários saberes e o que havia de poético nos saberes existentes no Renascimento.

Baudelaire[6] fala do poeta que se depara com um mundo chato, enfadonho, desencantado. Nesse mundo o poeta (de acordo com seu poema) entraria como uma espécie de sol, que acende e ilumina, uma chama que aquece a cidade.

Bem, a psicanálise surge nesse contexto discursivo em que o imperativo de univocidade da linguagem proposto pela ciência é o que ameaça sua dimensão poética. Em seu nascimento, a psicanálise renova, alimenta o jogo de palavras, o equívoco, o gaio saber, que estavam em declínio enquanto o império do útil adquiria cada vez mais hegemonia.

Acontece que a fala na análise também tende a se tornar comum, banal.  Nos termos de Miller[7], a interpretação se torna prosaica, perde seu caráter oracular.

Eis o problema: a fala se torna pouco propícia a fazer alvo no inconsciente, a produzir certo tipo de efeito, a dar lugar ao novo na análise.

Para a segunda pergunta – “como a prática da poesia participa da análise?” – temos uma indicação, a de tomar a poesia pelo uso não unívoco e não útil que ela faz da linguagem. O equívoco no lugar do unívoco, o jogo de palavras e o gaio saber ao invés da utilidade direta me parecem ser as condições dessa prática com a língua, seja na escuta da fala analisante, seja na interpretação.

Sobre a interpretação é preciso considerar que a posição enunciativa do analista repousa em um modo de dizer que escapa, evita o modo de dizer comum, sendo assim uma enunciação terceira. Esse modo de dizer próprio à interpretação implica um caráter lúdico, capaz de reconduzir a linguagem a jogos possíveis na língua. Daí o chiste, que traz uma satisfação, um gozo que não está sob o império do útil.

Tentando trabalhar o que seria essa prática da poesia a partir da experiência, o termo ‘esforço’ foi importante não tanto por parecer menos exigente, mais modesto, ou por remeter à tarefa que o poeta assume de reencantar o mundo, mas sobretudo, por sugerir  um movimento sustentado pelo desejo.

Esse esforço se circunscreve na sessão analítica, nos parênteses que se abrem na vida de cada um – tenha ela um ritmo alucinado, moroso ou mesmo monótono. Em algum momento do dia, esses parênteses para vir falar ao analista se abrem para um esforço de falar a alguém que é aquele ou aquela, sem que se saiba, entretanto, muito bem o quê e para quê.

Agora cito Miller[8]: “Quando tem lugar sob a forma de sessão analítica, poesia significa não se preocupar com a exatidão, com a concordância entre o que digo e aquilo em que os outros crêem, nem tampouco com o que posso transmitir-lhes”.

A sessão de análise é, portanto, um intervalo que tem sua temporalidade específica em uma vida dominada pela utilidade direta. Ela busca escapar ao que é ditado no laço de discurso que prevalece fora da sessão para oferecer à escuta um trabalho com o significante e seu nonsense, um trabalho que toque o gozo e o real fora do sentido. Volto a Miller[9]: “Uma sessão de análise é sempre um esforço de poesia, um espaço de poesia que o sujeito se reserva …”.

Poesia para nós não é, portanto, uma questão de talento com as letras e nem de beleza. A prática da poesia não coloca o analista no lugar do poeta, tampouco coloca o analisante nesse lugar, embora alguns analisantes o sejam e outros cheguem eventualmente a fazer poesia, em alguns casos a partir da própria análise. Miller[10] usa a expressão: “habitar a psicanálise como poeta”, o que não se confunde com habitar a literatura enquanto poeta.

Lacan é bem explícito em relação a isso: “Não temos nada de belo para dizer. Trata-se de uma outra ressonância, a ser fundada sobre o dito espirituoso. O chiste não é bonito, ele se sustenta por um equívoco”[11].

Como extrair essa outra ressonânca? Trata-se de servir-se da palavra para um outro uso, que não aquele para o qual ela está designada, de propiciar isso, apesar de as palavras serem recebidas e não forjadas por nós. Essa outra ressonância faz surgir “um significante, por exemplo, que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido […] nisso consiste o dito espirituoso”[12]. Há uma forma de chiste, ou aproximação a ele – assim entendo – quando se joga com o não-sentido fundamental de todo uso do significante.

Lacan[13] evoca o familionário, que envolve o não-sentido, abolição de sentido, para  um passo de sentido, acrescentando que no chiste a palavra é um pouco amassada, amarrotada. Esse termo foi comentado pelo próprio Lacan vinte anos antes a propósito da girafa amassada do pequeno Hans. Nessa ocasião, ele adverte contra fazer a pequena girafa amassada corresponder univocamente à mãe. Não, ela é sucessivamente a mãe, a criança, o falo da mãe, o que evidencia que é um significante. Mas é bem nesse amasso, nesse amarfanhado, que reside o efeito operatório do significante, que mostra como a psicanálise, do ponto de vista do uso do significante, pode estar no mesmo phylum, proceder do mesmo tronco, que a poesia ou a literatura.

Da poesia interessa, portanto, o duplo efeito de sentido e de furo. Menciono uma fala analisante: “Tentou fugir do Caio e caiu”, que brinca com as palavras, com o efeito de sentido e de furo em seu uso lúdico, de modo próximo ao chiste.

A prática da poesia prioriza a ressonância, aquilo de que se serve uma análise, não prioriza para que serve uma análise. A cura vem por acréscimo, tal como a utilidade da poesia, que é sempre secundária.

Que a psicanálise seja uma prática da poesia torna, de um lado, ainda mais delicada a tarefa ensinante, e de outro, aponta para inadequação entre o pensamento e aquilo que está em jogo no fazer do analista, pois nele há algo que resiste a ser pensado, justamente o real.

Recorro a um fragmento mínimo de relato de passe.

Debora Rabinovich traz um significante que me pareceu amassado, amarrotado, senão triturado: o rinoceronte com o qual ela sonha.

Serviu-se do rinoceronte para dizer: Ri – no sé – zero honte. Com esse significante, alojou seu não saber sintomático, o “no sé”, entre o riso, “ri”, e o “zero honte”, a vergonha. O sonho não é interpretado, mas esse significante é lido por ela com as ressonâncias de lalíngua feita de espanhol e francês.

 


[1] Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013.
[2] Miller, J. A. Un esfuerzo de poesia. Buenos Aires: Paidós, 2016.
[3] Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Op. Cit., p. 403.
[4] Idem, ibidem.
[5] Cf. Idem, ibidem.
[6] Baudelaire, C.. Les fleurs du mal. Paris: Éditions Jean-Claude Lattès, [1857]1987.
[7] Cf. Miller, J.-A. Un esfuerzo de poesia, Op.Cit.
[8] Idem, p. 160.
[9] Idem, Ibidem.
[10] Miller, J.-A. El lugar y el lazo, Op.Cit., p.415.
[11] Lacan, J. Seminário 24: Línsu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), (seminário inédito), lição de 19 de abril de 1977.
[12] Idem, lição de 17 de maio de 1977.
[13] Idem, Ibidem.
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O Passo do passe: Do desejo à invenção

Por Ana Tereza Groisman
Seminário de Orientação Lacaniana – 05/10

Introdução

Continuamos com nossa leitura do curso de Miller: O lugar e o laço, de 2000. Dessa vez nos dedicamos apenas a uma lição do curso: a aula XIX: “As três versões do passe” que, como vocês puderam ler, dá margem a inúmeras abordagens e leituras, Angela escolheu se dedicar a falar do passe do falasser e do entusiasmo que se espera ao final da análise. Eu, a partir da leitura, fui fisgada pela pergunta que inspirou o título da nossa atividade de hoje: “Em que medida a Escola, como conceito, segue o passo do passe?”[1] Na tradução em português, me parece que o jogo de palavras entre passo e passe foi perdido, sendo traduzido por: “estaria à altura do passe”. Decidi manter o jogo proposto na versão em espanhol por considerar importante esse passo que constitui um ato que define um novo horizonte para a psicanálise desde então.

Nesse texto, Miller vai priorizar sobretudo dois momentos de virada que o passe produz na Escola, primeiro quando foi proposto, em 1967, e depois a partir de sua experiência nove anos depois. Uma primeira questão se coloca: em que cada um desses momentos interferiu na Escola e na formação que ela dispensa?

Essa pergunta pode ser mais facilmente respondida se estamos apoiados no que Miller chamou de primeira versão do passe, a proposição de Lacan sobre o psicanalista da Escola de 1967. Em relação à ultima versão de 1976 (a segunda para Miller ou a terceira para Marie Hélène Roch), no entanto, me pareceu mais difícil entender sua incidência no conceito Escola. “A invenção do passe de Lacan vetorializa grande parte de seu ensino.”[2]  E eu parto do principio de que desde sua criação intervém na Escola e na orientação de seu ensino, mas nem sempre é possível circunscrever como isso se dá. Contarei então com a contribuição de vocês para avançarmos em relação a isso…

No início da lição, Miller estabelece um diálogo com Marie Hélène Roch, analista da Escola recém nomeada, que retoma um texto intitulado “as duas versões do passe”. A partir dele, ela propõe uma terceira versão baseada no texto de Lacan de 1973 intitulado “A nota Italiana”. A primeira versão se baseia na proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista na Escola e a segunda (ou terceira) se apoia no escrito: “Prefácio à edição inglesa do seminário XI”, quando Lacan propõe o inconsciente real e o passe como a Histoeria de uma análise. Duas versões que incidem diretamente na orientação do ensino e da transmissão da psicanálise na Escola de Lacan.

Miller já nomeou de diferentes formas estas duas versões do passe: passe saber e passe verdade, travessia da fantasia e identificação ao Sinthoma, passe do sujeito e passe do falasser, etc.

Aqui, ele retoma estas duas versões, interpondo entre elas a que Marie Hélène nomeia como a terceira versão do passe de 1973. Da dita terceira versão, nos interessa destacar que Lacan localiza o analista como o rebotalho da humanidade: ele carrega essa marca que pode ser reconhecida por seus congêneres. Desse lugar, ele é animado por um desejo de saber inédito. Há também um deslocamento no que diz respeito à relação com o saber, que será melhor definido nos textos posteriores, mas já ali Lacan enuncia que o analista que terminou sua análise deve ter circunscrito a causa de seu horror ao saber, e propõe pela primeira vez que em relação ao Real não há saber a ser descoberto, há que inventá-lo. Marie Hélène considera esse texto o prenúncio da versão do passe escrito no texto de 1976.

Primeiro passo: A primeira versão do passe traz uma proposta de ruptura com as “pretensas sociedades” psicanalíticas.

Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola: neste texto, 3 anos após o ato de fundação da Escola freudiana de Paris, Lacan propõe a revolução “Passe”, um ato que terá consequências fundamentais para a orientação da Escola de Lacan até hoje.

A subversão proposta: admitir o analista a partir de sua experiência de análise e não de sua experiência como analista traz consequências diretas para a relação com o saber e com a transmissão da psicanálise. Miller nos lembra que a primeira versão do passe é uma proposição, que ainda não havia passado pela prova da experiência. Ela é inventada no bojo de uma construção teórica consistente: dois seminários e um escrito dão subsídios à aposta de Lacan num dispositivo que subverte a lógica de admissão das sociedades em funcionamento na época, inclusive a que ajudou a fundar. O passe é concebido como um projeto que se alinha com sua proposta de Escola: fazer vigorar para os analistas o que funciona para a psicanálise.

Até 1967 o analista era qualificado por sua prática enquanto analista; a partir da proposição ele passa a ser qualificado sobretudo por sua experiência de analise pessoal.

O passe introduz uma via nova para receber o titulo de analista. Para além da sigla irônica reservada àqueles que são reconhecidos pela Escola, o AE é nomeado por testemunhar seu percurso analisante, independente de sua prática enquanto analista. Em outro texto, Miller lembra que não é nem mesmo necessário que ele a tenha. O AE é o resultado de uma aposta radical de que é nas análises que se formam os analistas e não no saber clinico ou epistêmico que se presta à apreciação pública. O passe enquanto projeto e enquanto prática produz uma ruptura, algo novo que não está em continuidade com o que se propunha até então. A criação do passe é atualizada a cada vez pela invenção no passe.

O passe em sua primeira versão supunha reconhecer um sabido, o analisado seria aquele capaz de reconhecer a causa de seu desejo. É um saber sobre a causa de seu desejo, orientado pela via da fantasia como resposta ao enigma do desejo. Mas o analisado está um passo a frente em relação a esse saber construído, pois é de fora da teia fantasmática que num retorno é possível decifrá-la. O que animava sua vida já não cabe mais em si: constitui-se então o que Lacan chamou de “Um saber vão sobre um ser que se subtrai”: o sujeito analisado sabe o que é, mas sabe que já não o é. O passe é então o luto desse ser que já não é, desse ser anterior que não se sabia a causa. Para Miller, o passe o captura antes de seu completo desaparecimento, por isso a importância do frescor do testemunho e do limite temporal da nomeação de AE.

Segundo passo: Passada a prova da experiência, o passe muda e a psicanálise muda com ele, embora a proposta de partir do analisante/analisado para dali recolher o analista como o substrato de seu ato permaneça com força e siga sendo o fio condutor do ensino de Lacan.

A segunda versão do passe, destacada por Miller, se apóia no texto: o prefácio a edição inglesa do seminário XI de 1976. Se a primeira versão era acompanhada por um arcabouço teórico consistente, essa se escreve em 3 folhas. Já não se trata mais do passe como proposta e sim como fato. Que consequências podemos extrair da experiência passe para a escola de Lacan?

Se a primeira versão se baseava na falha do SsS, a segunda aponta para os limites da magia da palavra e da potência do simbólico.

O deslocamento que se efetua entre as primeiras versões do passe e a última versão diz respeito a tirar definitivamente o real do campo do sentido; não há verdade sobre o real.

O único saber sobre a verdade consiste em saber desembaraçar-se dela, o que abre caminho para a invenção de saber. Miller sinaliza que não teria nenhum sentido falar em invenção de saber se seguíssemos acreditando na verdade. O que dá sentido à invenção de saber é deixarmos de estar capturados nas armadilhas da verdade. Se a verdade existe é questão de descobri-la, mas se o assunto é inventar um saber, já não estamos no regime do descobrimento da verdade.

O passe é o momento oportuno de converter a busca da verdade numa história que se conta, nossa histoeria ou para retomar o final da aula IX desse curso, o passe é a última história que contamos sobre o real.  Mas ao contrário do que poderíamos supor, ele não é o triunfo da ficção, mas antes o que atesta seus limites, O real resiste ao sentido da histoeria.

Uma conclusão provisória e uma questão que persiste:

Em 2008, Miller[3] é ainda mais radical em relação à importância do passe para a Escola de Lacan e para a formação do analista: ele fala de um retorno à singularidade em oposição a um retorno à clínica. O desejo de saber e a invenção de saber sobre o real desfazem o ideal do clínico experiente que se assegura num saber fazer que não inclui o real em jogo na experiência de análise.

E hoje, em que ponto estamos em relação ao passe e à formação do analista?

Nesse mesmo texto, ao falar da análise finita e infinita, Miller[4] diz que: se Lacan quis que o passe levasse à obtenção não do titulo de analisante, mas de analista da Escola, foi justamente para marcar que não é analisando os outros que alguém se torna analista, e sim se analisando a si mesmo, se assim posso dizer, pois é justamente o sí (soi) que assim se abala. No fundo, a qualidade de psicanalista nada tem a ver com a profissão de psicanalista.

Porém, um pouco inspirada pelo tema de nosso próximo encontro de membros: Psicanálise: os fins, os princípios e os meios…, pergunto-me se o passe será suficiente para balizar seus princípios e seus fins quando os meios para tal foram tão afetados pelo contágio pandêmico que nos assola. Não estaríamos de novo em posição de atualizar os conceitos fundamentais da psicanálise a partir de nossa prática como analistas? Podemos extrair consequências da experiência que atravessamos e que ainda não sabemos onde nos levará?

Boa Noite!

 


[1] Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 369.
[2] Miller, J.-A. Coisas de Fineza em Psicanálise, 2009, 8a lição, p. 112.
[3] Miller, J.-A. “Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI” (2008). Em: Aposta no passe, Opção lacaniana n.º 14. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2018, p.81.
[4] Idem, p. 82.

“Versão do Passe na perspectiva do Sinthoma”

Angela Batista

“Com o último ensino, trata-se de inventar um escrito que possa servir.” Miller[1]

“O Tango é um pensamento triste que se pode  dançar” Discépolo Deluchi[2]

Inicialmente tomo essas duas frases para pensar o que é um psicanalista a partir da versão do Passe no Último ensino de Lacan.

Pergunto, então, sobre o parceiro do psicanalista, com quem ele joga uma partida chamada psicanálise. Nesse sentido, o que chamamos de clínica é o real como impossível de suportar[3].

O tema do final de análise foi de grande importância para a comunidade analítica – terminável ou interminável, finita ou infinita, com Freud e com Lacan, as análises têm um destino.

Freud se preocupou com essa questão desde o início de sua obra, já que os obstáculos à conclusão sempre indicavam um tropeço irredutível[4], que chamou de rochedo de castração, compulsão á repetição, masoquismo, supereu, reação terapêutica negativa, ou seja, os limites do analisável.

Para Lacan, esse tema adquiriu especial interesse a partir do momento em que ele propôs um novo dispositivo de transmissão a fim de que os analistas testemunhassem a passagem de analisante a analista. Trata-se de um retorno à questão do fim de análise, ao que Lacan chamou de Passe, apresentando o percurso em sua formação pela travessia da fantasia e pela identificação ao sinthoma. Lacan, assim, propõe em uma doutrina do final de análise na aposta pelo Passe.

Assim, dos dispositivos instituídos na Escola, o do Passe é um modo de dar uma forma de elaboração e transmissão do que foi o percurso de uma análise em duas perspectivas diferentes: a do sujeito suposto saber, no  campo de desejo e a de uma elucubração sobre a doutrina do gozo. Clínica do sinthoma.

Em sua Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan, o Passe foi proposto  com a finalidade de  teorizar sobre o final de análise e a produção de um analista.

A Escola será testemunha de uma garantia, ou seja, a psicanálise em intensão deverá ser verificada pela Escola em sua função de extensão, quer dizer transmissão.  Assim a garantia da Escola não está excluída, porém Lacan diz que não é com essa garantia que o analista opera.  Penso ser esse o sentido do Passe como transmissão daquilo que se tornou incurável  e que possibilitou um novo modo de laço com a vida e com a psicanálise.

O Passe nesse sentido é mais um corte com a verdade como história e mais uma invenção que possibilitou uma transmissão (continuidade).  O Passe então tem a estrutura de corte e continuidade.

Com a leitura da lição XIX de Miller destaco um ponto importante: O que é um psicanalista na versão do Passe no último ensino?

Como dar lugar ao que não muda, com o limite da interpretação no final de uma análise?

Dois modos de concluir se apresentam: a travessia da fantasia e identificação ao sinthoma, entre a travessia(fratura) da fantasia, Inconsistência do Outro, e a invenção sinthomática.

Para seguir essas perguntas penso ser importante situar as versões do Passe propostas por Miller no Seminário “O lugar e o laço”.[5]

O Passe é o dispositivo para verificar o que pode o analisante inventar com o que “fracassou”, ou seja, com aquilo que  é seu modo singular de viver a pulsão e como isso pode encontrar um destino de bem dizer seu sinthoma.

Acho importante sublinhar que Lacan coloca o Passe como princípio de uma transformação na Escola Freudiana de Paris – EFP, primeiro com a Proposição em 1967, depois em 1973, em sua” Nota Italiana”, onde afirma que se trata de uma ruptura e uma nova formalização do que é um psicanalista. O psicanalista a partir da proposição está concernido a uma Escola

A primeira versão de 1967 foi concebida por Lacan como produto de seu Seminário “A lógica da fantasia” e antes de começar o Seminário sobre o ”Ato analítico”.

O primeiro ensino de Lacan, seus primeiros 10 Seminários, celebra a dominância do Outro; o segundo, O Outro e o objeto a; e o último ensino, o singular do sinthoma.

O Passe na primeira versão é um saber referido ao desejo que tem uma solução. No final de análise há um saber e esse saber se refere ao desejo, o sintoma como um problema a ser solucionado; quer dizer sobre seu impasse que considera um problema e sua solução a nível do desejo. Quem sou? O que quer o Outro de mim? Com isso introduz o -fi da castração e o objeto a. Retificação subjetiva, destituição enfim. O Passe é um luto por quem fomos no sentido do desejo.

A segunda versão do Passe em 1973 introduz a ex-istência do objeto a correlativa à não-relação sexual. Aqui o saber que está em jogo não é apenas um saber do desconhecimento da verdade do seu desejo, mas um saber situado no registro do real. Ha uma desvalorização dos amores para com o saber enquanto verdade revelada. O final de análise estaria referido ao real. Uma ruptura entre verdade e real, o real exclui o sentido e assim passamos ao campo da invenção, o saber que se inventa.

Nesse ponto, destaco o texto de Lacan “Nota aos Italianos” (1973) para recuperar os termos verdade e invenção. Trata-se nele do acento posto na transmissão da psicanálise. Nesse texto, Lacan situa uma articulação entre saber e real e sublinha que o saber de que se trata na psicanálise é preciso inventá-lo, já que não passa pela dimensão da verdade. Há uma grande desvalorização da verdade.

O último ensino de Lacan se posiciona a partir de deslocamentos importantes que vão do Outro ao Um, do Ser à Existência, do simbólico ao Real. Assim seguimos uma clínica diferencial apoiada no nó borromeano.

A terceira versão de 1976 refere-se ao prefácio da edição inglesa e aborda o fim de análise não mais referido à verdade, mas à satisfação, quando estamos no sem sentido da interpretação, no inconsciente real.

Lacan, em seu Seminário RSI, modifica o sentido do sintoma, como mensagem cifrada articulada à cadeia significante, dando uma nova versão também ao Pai. O pai não é a única garantia dessa referência advinda da clínica estrutural quanto ao enigma do desejo da mãe. Ser Pai é ter um desejo orientado para uma mulher-causa. Nesse sentido é que o Nome do-Pai se desloca para o múltiplo. Nesse sentido, o que é destacado no Passe seria um real distinto das ficções do inconsciente, do campo da fantasia referida ao desejo do Outro.

O nó borromeano,  com o efeito de amarração das consistências RSI, está a serviço de uma versão do Passe, diferente do Passe que considera as  identificações  da fantasia e segue a direção de uma nova prática que pensa o sintoma de outra maneira.

Nesse sentido, a travessia da fantasia é, no passe, a descrição de vários momentos onde se evidencia a fratura da consistência do Outro e o testemunho de como se pôde viver a separação do que supôs ser como objeto, no desejo do Outro. O passe referido á dimensão do saber.

Com a clínica borromeana, a verdade é um sonho de Freud e o final de análise será definido como o Passe satisfação.  Miller desenvolve essa passagem muito bem no curso de 2011, “O SER e o UM”. Miller comenta duas versões distintas de análise e sublinha que, em 1976, Lacan se desprende da magia das palavras e da potência do simbólico. Demonstra a passagem do inconsciente como saber transferencial e do inconsciente como gozo sem sentido à construção do sinthoma (inconsciente real).

O Sinthoma é a forma civilizada que cada AE encontra para permanecer no laço social, no coletivo da  Escola. Nesse sentido a experiência analítica conduz aos limites do simbólico.

Romulo Ferreira da Silva, em sua apresentação recente na noite do Conselho da EBP-São Paulo, nos disse algo muito importante sobre o trajeto de uma analise que é o de deixar de ser analisante para se tornar analista de sua própria experiência, ao demonstrar como pode se “virar” com os elementos heterogêneos que constituem o falasser na vida e na pratica clínica desde a sua deslocalização (fratura na fantasia) no mundo dos semblantes. Se tem algo que é incurável, o passe demonstra um certo fracasso que fala de um gozo impossível de negativar e que, ainda assim, faz laço. Lacan dá ao Sinthoma um outro nome para o inconsciente irredutível inanalisável, inconsciente real.

Assim, o passe está vinculado ao corpo e à pulsão. Enquanto o passe transferencial permite demarcar o objeto da pulsão e nomear o sintoma, o passe real é extraído do Um -Corps- de pedaços de real, de buracos no saber e no corpo que correspondem à nomeação do sinthoma. O sinthoma como gozo nos remete para uma maneira de viver a pulsão como avesso do trauma, pois implica em ter acesso a um gozo-satisfação possível, que não pode ser demonstrado, gozo no corpo, um afeto que ressoa além do sentido.

Se Lacan faz do sinthoma de Joyce um paradigma do final de análise, é porque para o falasser o corpo é sempre estranho. Um corpo que equivale á pulsão obedecendo a uma lógica diferente S1-S2 do primeiro ensino, demonstrando que a análise é uma experiência com o corpo.

É precisamente a partir de Joyce que Lacan vai separar sinthoma e inconsciente, ao formular o sinthoma como um real não analisável, como resto.  Miller, em sua elaboração da disjunção entre saber e gozo, é levado a pensar a palavra não enquanto ela se endereça ao Outro, como veículo de comunicação, mas enquanto veículo de gozo.

O Sinthoma só se pode apreender pelo que se revela de gozo, de um gozo distinto da linguagem, “Gozo Opaco” que exclui o sentido. Gozo que demonstra o que o sujeito tem de mais singular. A identificação ao sinthoma é a perspectiva de um final de análise, que é identificar-se ao seu sinthoma, seu ser de gozo, quer dizer ao que ele tem de mais real e próprio.

Da Proposição de 1967 ao último ensino, mais especificamente ao texto “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”[6], Lacan oferece outra perspectiva sobre o passe e o final de análise. Inicialmente o conceito de saber é posto à prova.  O saber não está mais na ordem da verdade, mas de elucubração sobre lalíngua, dos efeitos de real sobre o simbólico. Nesse sentido, o Passe pode ser uma demonstração de como a transferência produz um novo laço com o Outro não mais restrito à fantasia.

Sendo assim o analista da doutrina clássica é suposto dar um testemunho de um saber, ao passo que quando está elaborando o conceito de sinthoma, o campo do gozo demonstra um saber sobre a verdade mentirosa.

O sinthoma como um gozo não recoberto pela estrutura da fantasia, contingente, não previsto. O inconsciente se modifica abrindo espaço para o acontecimento de corpo distinto do acontecimento verdade. Acontecimento fora do sentido equivalente ao “gozo feminino”, gozo do Um, opaco, que vem de uma mudança no falasser da sua relação com o inconsciente depois de uma análise.

O conceito de sinthoma muda a perspectiva de um final de análise, pela identificação ao sinthoma, pois o sinthoma “funciona” a partir de uma travessia onde podemos destacar uma satisfação. Assim, temos o inconsciente na primeira clínica como enigma e na segunda como modo de gozo. O inconsciente se articula ao pulsional, inconsciente real.

Então, uma psicanálise é uma experiência que consiste em construir uma ficção e depois sua desconstrução. Um analista na perspectiva do sinthoma teria conseguido de demonstrar a impossibilidade da “hystorização” quando demonstra a defasagem entre a verdade e o real.

O passe do falasser não é o testemunho de um sucesso, mas o testemunho de um certo modo de fracassar que pode levar a uma invenção para o que resta e insiste de incurável no seu sinthoma.

Como situar o incurável no final de análise? O que conduziu um sujeito á destituição subjetiva e o desejo de transmitir no passe esse percurso?

Lacan qualifica esse desejo de advertido, de assumir um resto sintomático para si mesmo e depois transmiti-lo para um Outro. Essa seria a forma de identificação ao sinthoma, que pode ser resumida assim: ”o que mais repeles em ti, tu o és, e tem sido sempre”. Cada vez que um tratamento termina (de boa maneira), o analista vai se encontrar com o seu próprio impossível, seu incurável.

O último ensino de Lacan se orienta com outra bussola que chamamos sinthoma, com o enunciado, existe o UM. Aqui ele rompe os amores com a verdade do inconsciente interpretável mas regido por uma letra equivalente ao que não se inscreve, dos restos sintomáticos. Podemos pensar que esse gozo não é possível de ser eliminado, mas que, com o Passe do falasser, possa ter valor de transmissão.  O entusiasmo é um afeto digno do fim de análise, equivalente a uma satisfação  alcançada  ao incluir um real que se torna parceiro de vida.

O psicanalista é com quem se joga a partida através de sua paradoxal posição no sentido que Lacan lhe dá: ele só pode ganhar a partida com a condição de perdê-la, de fazer o parceiro-sujeito ganhá-la. Autorizar-se não é auto ritualizar-se. O inconsciente é menos um saber que não se sabe e mais um saber-fazer com, como efeito da inexistência do Outro.

Primeiro a fantasia, como cena da vida feita dos encontros e desencontros com o Outro, as marcas que tecem uma ficção – fixidez, a verdade mentirosa; depois,   Lacan chamou de ”acontecimento de corpo”,  o gozo do sinthoma, uma maneira de arrumar o traumático da não relação. Há uma passagem do Nome do Pai único para os nomes múltiplos como alingua, corpo e falasser. O inconsciente como Corpo falante é quando o falasser se depara com o acontecimento fora do sentido. Em Psicanálise dizemos que o corpo sintomatiza porque está submetido à linguagem, escrita do significante, marcas que representam o corpo sintoma, assim como também marca do gozo.

Podemos ver o percurso de Lacan da instancia da letra à escrita da fantasia. Nos dois momentos do ensino de Lacan o sintoma sempre está referido ao corpo, variando apenas o conceito de conexão: sintoma como metáfora, como gozo e como letra. Três versões do sinthoma no Passe.

“Um tango é um pensamento triste que se pode dançar”. Uma análise tem na sua conclusão uma solidão que diz respeito a uma mudança na consistência do Outro (fratura da fantasia) abrindo caminho para a identificação ao sinthoma frente ao gozo impossível de negativar. Um trabalho que considera a pragmática do sinthoma e o manejo da prática. Cito Bassols, para concluir: Quando o Outro se esvazia do gozo sentido, o que fica é a função do objeto em que o outro se reduziu e que é idêntico ao ser do sujeito mesmo.[7]

O sinthoma é o produto de uma análise; com ele inventamos uma dança para o que se repete com a letra da música de cantor, ao dizer que o que ”mata e o que cura está fora da lei”. Não seria essa a direção de um saber, fazer com aquilo que resta de incurável e que é mais singular? Não seria essa satisfação produto de uma nova aliança com o gozo que faz a vida mais nobre e o amor mais digno?

 


[1] Miller-J A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan.  Rio de Janeiro: Zahar, 2011.  Lição 7.
[2] Enrique Santos Discépolo Deluchi – Cambalache-Compositor de tango argentino conhecido como “filosofo do tango”.
[3] Miller,j-A. Os circuitos de desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra capa, 2000, p. 161.
[4] Miller -J-A. “A favor do Passe ou dialética do desejo e fixidez da fantasia”. Em: Aposta no Passe: seguido de 15 testemunhos de análises da Escola, membros da EBP. Rio de Janeiro: Contracapa, 2019, p.13.
[5] Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013, Lição XIX, p. 361.
[6] LACAN, J-. “Prefacio á Edição inglesa do seminário 11” (1976). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
[7] BASSOLS, M. O Sintoma-Charlatão. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 136
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“Repetição e morosidade na prática analítica”

Angela Batista

Inicialmente gostaria de localizar os pontos que pretendo abordar: A partir do curso de Miller “O Lugar e o laço,” [i]pretendo conversar com  vocês sobre  algumas questões sobre o final das análises em Freud e em Lacan, para situar  um novo manejo do lugar da transferência e de um saber -fazer com o traumático do real pulsional que surpreende sempre.

Nesse sentido, uma sessão analítica sempre  acontece entre o esperado e a surpresa, podemos dizer que algo está em espera da oportunidade, porque não dizer da boa contingência. Uma sessão é única, e nela podemos ver diferentes tempos de uma análise. Uma trajetória que vai do Sintoma ao Sinthoma,  sempre no horizonte do real que escapa ao laço.

O tema da repetição do sintoma é um tema da nossa prática, do cotidiano da clínica e que nos implica como analistas, sempre. Desde Freud  temos um Rochedo a atravessar quando se trata de concluir uma análise.

Com essas considerações iniciais, pergunto:

1- Em que a repetição do Sintoma em Freud (compulsão a repetição), se assemelha ao Incurável do sinthoma em Lacan?

2-  A repetição em uma análise depende do que o analista faz com a “morosidade do sintoma”?  Vejamos:

Miller em seu curso“ O lugar e o laço”,  abre uma nova época na orientação lacaniana que tem consequências na nossa prática sinalizando um novo modo de tratamento dado ao real. Quero também ressaltar a importância dos cursos de Miller, pois eles sustentam a transferência no Campo Freudiano assim como a psicanálise, como uma experiencia. Esse curso faz parte de uma trilogia: Donc, Sutilezas, e Lugar e o Laço, que tratam a questão do Passe e do final de análise, orientados pelo último ensino de Lacan. Não por acaso, a capa do seminário, vemos o desenho de Palas Atena, indicando o Nó Borromeu de Botitteli, que responde a “não relação”,  com o laço  que une RSI,  que faz nó . O curso tenta elucidar qual o real da psicanálise no início do sec. XXI.

No início do Curso, sinaliza vários axiomas que propõe trabalhar. O ponto de partida é o parceiro – psicanálise, que se diferencia das psicoterapias por relação ao axioma “não há relação sexual”, ou seja, uma elucidação do lugar do analista  diante do sintoma como satisfação , enquanto fora do sentido, no campo do real.  Essas lições portanto, trabalham o último ensino de Lacan , a dissolução dos conceitos freudianos, a desordem simbólica e a trajetória de Lacan.

A partir da lição IX e XV, resumo três momentos do ensino de Lacan: O primeiro a autonomia do simbólico, e o inconsciente é o discurso do Outro; o segundo ensino dedicado à articulação entre o Outro e o objeto a; e o último ensino, parte do Inconsciente real nomeando o singular do falasser.

Ao retornar aos fundamentos da clínica, destaca o real sem lei, um real desatado do saber e do sentido.  Importante destacar essa passagem da ordenação estruturalista, da ordem simbólica para confrontar com o que a linguagem produz no corpo, os efeitos de discurso que afeta o corpo, onde temos o paradigma do gozo do UM que não se reporta ao Outro. O significante não tem apenas efeito de  significado, mas efeitos sobre o corpo. Aqui a referência aos quatros discursos se desloca para dar lugar ao que não é articulável na cadeia significante.  Se o sintoma freudiano é interpretável, mesmo quando esbarra no limite, com o conceito de sinthoma, o sinthoma é gozo, que tem a fixidez fantasmática tributária de uma inércia imaginaria ilimitada.

A substituição da verdade, pelo gozo, no Seminário “Mais ainda”[ii], faz deslocar a linguagem enquanto comunicação, e temos o gozo de lalingua. Nesse sentido temos que diferenciar o inconsciente. O Inconsciente da articulação transferencial e o ”da letra” que não faz cadeia, Inconsciente real.  Aqui destaca-se a disjunção entre inconsciente e interpretação. O que se acredita saber da articulação do inconsciente é posto em dúvida pela letra sem sentido do gozo.

Gostaria de sublinhar que o “lugar e o laço analítico” depende do laço do analista com a psicanálise. A importância dos testemunhos de Passe são modos de laço e que mostram como cada um pode fazer laço, no caminho do sintoma ao sinthoma.

Nesse sentido é que uma análise pode ajudar a tecer esse quarto elo, que mantém os demais unidos. Nesse sentido, os arranjos sinthomáticos são invenções que permitem uma nova maneira do sujeito viver a pulsão.  Uma direção para bom uso de uma pragmática, quer dizer há que manejar o indomável pulsional.

Lacan situa seu último ensino com um dizer que equivoca e que sugere “Pensar com os pês” quer dizer com a escrita borromeana. Temos que pensar de outro modo quando  esbarramos com o estancamento da fixidez pulsional. Nesse sentido , o inconsciente real é o sinthoma, e o Nó borromeano é a consequência teórica do que chamou de “não relação sexual”. O sinthoma é o resultado desse percurso.

Dessa forma, o parceiro sintoma não é o Outro, mas o Um do gozo. Não há Outro e o sintoma “gira em círculos”. Disso resulta que  em relação ao nó borromeano a referência não é o sujeito do  inconsciente  que inclui o Outro, mas o falasser.  Entre as voltas do sintoma enquanto mensagem endereçada ao analista (sintoma – recalque) e a repetição do mesmo (sintoma modo de gozo), uma análise acontece.

Miller então, em sua trajetória, observa que a repetição da satisfação pulsional  traz dificuldade no manejo da transferência que oscila entre interpretar e perturbar as defesas.

Chama de “morosidade” o afeto que se opõe ao deciframento e que pode levar o analista a  fazer uma parceria com o analisando em  uma zona  de uma “intimidade indecente”. Trata-se de uma certa inércia que nomeou de “estancamento” do sintoma , daquilo que não muda que gira em círculos. (não há conflito). O sintoma nesse aspeto comporta em si um gozo que satisfaz e não apela ao Outro.

Como então “mudar “ esse ponto de fixidez que não demanda interpretação, nem Outro?

Destaco uma passagem importante nesse Seminário, na lição XV, quanto a desordem do simbólico, descentrando o sonho estruturalista, do “Universo das regras”, de Levi Strauss, do simbólico como ordem, para a ideia do simbólico como desordem.

Miller destaca que, a partir do último ensino, o simbólico é rebaixado à uma potência da desordem.  Sendo assim, observamos uma ruptura na maneira de enlaçar RSI. O simbólico se desloca para o corpo vivo, para o corpo que fala, uma substituição da referência à sociologia por uma referência à biologia. No lugar da ordem, o Traumatismo. O que leva Miller acrescentar que uma análise é uma experiência com o corpo.

Gostaria de pensar esse ponto quanto ao que muda no ensino de Lacan, que permite rearrumar o lugar da Psicanálise oferecendo novas possibilidades de leitura em direção aquilo que não se deixa significantizar.

Com a epidemia do Covid 19 estamos diante de um real sem precedentes, desalojando o sujeito do seu Lugar no Outro e alterando seu laço. Penso que o atendimento on line não modifica o sentido dos sintomas e o caminho de  sua formação , lembrando Freud. Há algo do sintoma que estanca , que é um obstáculo e que no atendimento on line , temos o mesmo sujeito. Mas podemos nos indagar sobre a” morosidade do sintoma” no atendimento on line.

Esse curso renova a questão do Passe de Lacan em 1967, que produz uma mudança do Passe como verdade relacionada ao saber, para o Passe do último ensino de Lacan ,  renovado por Miller como satisfação , de um saber-fazer como Sinthoma. Penso ser diferente a satisfação da pulsão, como gozo ,da  satisfação, quando podemos concluir uma análise, que implica em um saber- fazer com aquilo que não muda em uma vida.

Um salto importante, pois muda o sentido do sintoma, visto não mais como mensagem cifrada articulada à cadeia significante.  O sintoma se torna desarticulado da cadeia significante, repetição de uma satisfação pulsional – gozo. Nesse sentido o que muda é o sentido do sintoma a partir da leitura daquilo que não faz cadeia, pensado a partir do que está fora da cadeia do sentido significante, mais além da repetição significante. O Inconsciente  real aparece como sem sentido e opaco . O essencial é que nesse nível não há conflito. Há sofrimento, mas não conflito propriamente dito. O último ensino subtrai de certa forma essa perspectiva e privilegia o real da satisfação.

O real sem lei ganha destaque por ser um real fora do sentido e também fora do saber. O nó borromeano é então o paradigma do “saber – fazer”, sublinhando mais o” fazer” do que o “saber”. O neologismo sinthoma vai se referir a uma nova forma de gozar do inconsciente e a suplência será a uma maneira singular construída em análise que possa alojar a “estranheza” singular de cada um.

Uma passagem que vai da ordem simbólica ao modo de gozo. Deslocamento que modifica o lugar do psicanalista quanto a interpretação, o pois o que era dado como recalque é substituído pelo conceito de defesa. Uma clínica orientada para o traumático da “não- relação”.

Em lugar da ordem, o traumatismo . No lugar da” não- relação”, o laço, como invenção. Nesse contexto surge a importância do Passe, como um dispositivo que verifica o final de análise. A psicanálise para se manter viva precisa  ter uma transmissão de como as análises foram concluídas, como   cada um pode chegar ao seu ponto de  incurável.

Com a clínica borromena,  podemos aprender enlaçar os três registros, articular elementos dispersos e opostos, sem articulação, peças – soltas. Dar lugar para o sem nome pulsional onde o objeto pode aparecer como uma invenção do sujeito onde psicanalista ocupa um lugar de semblante necessário à desordem do real.

Podemos pensar que a” repetição morosa do sintoma”  do lado do analista?   Talvez aqui seja válida a sugestão de Lacan para se orientar :” Pensar com os pês”  Lacan disse que o discurso analítico devia trazer a novidade, e que  só assim podemos dizer que mudamos de discurso.

Lacan diz: “O inconsciente é que, em suma, se fala (…) sozinho. Fala-se sozinho, porque fala-se apenas uma única e mesma coisa – exceto se nos abrirmos para dialogar com um psicanalista. Não há meios de se fazer diferente, a não ser ao receber de um psicanalista o que perturba sua defesa”.

Com o último ensino não somos os mesmos analistas; clínica se renova e giramos diferentes. Aprendemos a ser menos ingênuos a desapegarmos da rotina e estamos mais espertos por relação ao que nos adormece. Isso tem consequência na direção do tratamento, nas análises que conduzimos e em nossas vidas. Aprendemos com Freud Algo sobre o “Kairos” da interpretação: o leão só salta uma vez.

[i] Miller, J-Alain- El lugar Y El Laço- Ed. Paidós – 2013.
 Lacan ,J- O Seminário livro 20 ,“Mais ainda” ( 1972-73) Ed Zahaar.

Encontro Seminário de Orientação Lacaniana

 “Repetição e morosidade na pratica analítica”

Comentários sobre o debate
Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna

O trabalhos apresentados por Angela Batista e Rodrigo Lyra durante o último encontro do Seminário de Orientação Lacaniana tiveram como ponto de partida, a leitura das lições IX e XV do Curso de J. A Miller, O Lugar e o laço, a partir da qual cada um destacou o aspecto que o interroga.

O título escolhido: A repetição e a morosidade na prática analítica, versa sobre a temporalidade do sintoma. Esses dois aspectos fazem parte da análise, impossíveis de serem esquecidos pelo analista porque estão presentes em seu cotidiano e apelam a um saber fazer que não se contamine com a exigência de aceleração, muito presente no discurso de hoje.

Angela e Rodrigo tomaram como ponto de partida a chave de leitura oferecida por J. A Miller, distinguindo as diferentes elaborações ao longo do ensino de J. Lacan, – da ordem simbólica ao real sem lei-, apresentando as questões próprias que os colocam a trabalhar.

Angela situou seu ponto de interrogação sobre o final da análise, especialmente sobre o caminho que vai do sintoma ao sinthoma se perguntando por essa temporalidade da morosidade do sintoma e a resposta do analista frente a isso. Ela propõe o analista suprendedor como aquele que acolhe a contingência em sua operação, para manejar o que anda em círculos, ou seja, o gozo.

Rodrigo recortou seu ponto de interesse na morosidade do sintoma e sua relação com os tempos atuais, com um discurso no qual regem os ideais de aceleração, de transparência entre outros. Incluiu também o tema da morosidade do sintoma no atendimento on-line.

O debate tocou em vários pontos:

  1. Como a posição do analista é afetada pela morosidade do sintoma já que o analista faz parte do sintoma?
  2. Foi apresentado um dos riscos que o analista corre, que é de ficar em um posição de intimidade indecente frente a aquilo que não muda, ou demora a mudar.
  3. A orientação de J. Lacan de que o analista deve “pensar com os pés”, frase enigmática que introduz algo de um impossível. Seria essa uma orientação para o analista se situar frente ao gozo do sintoma?
  4. O que ancora a resposta do analista ? O desejo do analista e os princípios da análise seriam as balizas?
  5. O exemplo trazido por Rodrigo, relatou uma situação que se repete atualmente nos atendimentos online, quando o analisante pergunta: Você está aí? Isto permitiu conversar um pouco mais sobre como o sintoma emerge em sua dimensão morosa, sua dimensão opaca.

Para concluir, posso dizer que os dois trabalhos trazidos pelos colegas foram muito ricos e permitiram elucidar um pouco mais sobre a repetição e a morosidade, duas versões do mesmo que denominamos de gozo.

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Seminário de Orientação Lacaniana

O que ancora o fazer do analista?

Maria Silvia G. F Hanna

Agradeço hoje a presença de todos: aos colegas da Diretoria pela organização, e do Conselho, com quem divido a tarefa de organizar este seminário de Orientação Lacaniana. Especialmente agradeço a Ana Teresa com quem tive uma troca muito rica durante esta preparação e a Rodrigo Lyra por coordenar este encontro.

Hoje é o segundo encontro do Seminário de Orientação Lacaniana via online.

Para aqueles que estão conosco pela primeira vez lembro que o trabalho do Seminário tem como texto de orientação o Curso de Miller: El lugar y el lazo (2000-2001). Retomarei alguns elementos presentes na lição 6 para abrir uma troca de ideias com vocês. A seguir ouvirão um trabalho in progress e será necessária a contribuição de vocês para continuá-lo.

Creio que temos uma boa pergunta: O que ancora o fazer do analista?

Nela encontro a ideia de ancoragem, de sustentação e o fazer do analista. Ela permitirá indagar: onde o fazer se ancora? Isto nos situa no tema do lugar. Cabe lembrar que o desdobramento de uma análise depende não só, mas primordialmente de como se ocupa o lugar de ouvinte, de depositário da linguagem e da palavra.

O analista em sua prática clínica.

Considero que esta pergunta e sua resposta  podem servir de bússola para orientar nosso trabalho de analistas, hoje, justamente em um tempo de pandemia, onde se faz necessário o confinamento como freio para a disseminação do vírus Covid 19, durante o qual fomos  obrigados a nos deslocar de nossos consultórios para o celular.

O celular e todas as tecnologias que se desprendem daí ofereceram um espaço para dar continuidade a nossa prática de analistas e de ensinantes/docentes.

Nesse sentido percebemos que as barreiras impostas pela geografia (bairros, cidades, países) foram ultrapassadas. O espaço físico se transformou! Habitamos em um espaço digital! Algo inédito. Não nos encontramos fisicamente, o máximo que podemos fazer é ouvir a voz do outro e ver sua imagem. Os cheiros, os pequenos gestos, os movimentos corporais, entre outros ficaram de fora ou muito apagados. Mas também apareceram outros fenômenos, novos ruídos (dos microfones, dos fios), silêncios que fazem duvidar se o outro continua aí ou não, comunicações que se interrompem por falta de internet, presença de elementos dos ambientes onde estamos, crianças que falam, animais domésticos e outros, compondo novos cenários.

Tudo bastante estranho em um primeiro momento, o que levou a muitos colegas a dizerem “não, não vai ser possível fazer psicanalise assim”. Aqueles que aceitaram o desafio, o fizeram com muita cautela. Nos perguntamos: Essa forma digital degrada a psicanálise? Será que a psicanálise corre o risco de ser transformada em uma psicoterapia? É possível fazer análise sob essas condições?

Nessa conjuntura penso que a elaboração proposta na lição 6 do curso de J. -A Miller, onde diferencia a psicanalise pura, a psicanalise aplicada à terapêutica e a psicoterapia, pode ser bastante propiciadora para elencar alguns aspectos de nosso cotidiano de hoje.  Nos serviremos desses elementos acrescentando outros e fazendo nossa caminhada.

Lembro aqui o título do escrito de J. Lacan: A direção do tratamento e os princípios de seu poder,[1] onde a prática da psicanalise se relaciona com os princípios que esclarecem e dirigem os procedimentos.[2]

Sabemos que Lacan foi contra qualquer standard para definir a psicanálise e sua elaboração deu lugar à formulação dos princípios da psicanalise. É com eles que podemos contar para nos orientar. Essa seria uma primeira pontuação que deixo aqui feita para ser retomada na conversa com vocês.

Psicanálise e psicoterapia

Encontramos na lição 6 uma proposta de J. -A Miller para tratar o tema da diferença entre a psicanálise pura e aplicada à terapêutica visando ultrapassar as classificações, colocando o foco na prática da psicanálise. A abordagem permite sair da oposição entre puro e o aplicado, que segundo o autor comenta tinha gerado “falsos problemas e falsas soluções”. Dessa maneira encaminha sua elaboração para a distinção entre a psicanalise enquanto prática, quer dizer, sempre impura – lembremos que o puro na filosofia quer dizer um a priori, e na ciência, teoria-especulação -, e a psicoterapia.

Ao longo da lição 6 encontramos duas respostas para construir essa diferença de autoria de J. A Miller e a terceira que é uma retomada da resposta de J. Lacan presente no escrito Televisão.[3]

Escolho iniciar pela resposta de J. Lacan para em um segundo momento articulá-la com as construídas por J. A Miller que são muito interessantes. Minha hipótese é que a partir da resposta de J. Lacan podemos entender melhor as propostas por J. A Miller. Se bem não é essa sequência que ele faz na aula. Ele inicia com as suas para no final retomar a de J. Lacan.

A pergunta no escrito Televisão é: “…Permita-me formular assim a pergunta: psicanalise e psicoterapia, as duas só agem por meio de palavras. No entanto, elas se opõem. Em que?”

Sua resposta não demora e aponta que na psicoterapia é privilegiada a vertente do sentido. Acrescentando que o patente, o que grita é que o sentido se situa aí onde não há sentido nenhum, onde não há relação. Dessa forma o sentido funciona como aquilo que vela a ausência de relação, de relação sexual.

A psicoterapia se mantém nesse registro que podemos denominar como o registro da realidade coletiva, do senso comum, do campo dos ideais. A psicoterapia utiliza a palavra no registro do sentido.

A psicanalise, sendo também uma disciplina que se insere no campo da palavra e da linguagem, tem outro ponto de mira: ela introduz o real como o nome positivo do fora-de-sentido[4].

Para elucidar um pouco mais essa resposta sobre a distinção entre o campo da psicanálise e da psicoterapia, J. A. Miller se serve do grafo do desejo, indicando que a psicoterapia se reduz ao primeiro andar do mesmo, ficando aprisionada no campo das significações.

A abertura para o segundo andar é operada pela presença do desejo do analista. Nesse sentido podemos dizer com todas as letras que a psicanálise depende de que o analista ocupe seu lugar e promova um trabalho a partir do desejo. Mas não é qualquer desejo.

A instancia do desejo do analista se baseia na abstinência a utilizar a onipotência que o lugar de ouvinte lhe oferece. Essa abstenção mesma é o desejo do analista que abre um trajeto mais além, que terá como efeito a queda de algumas identificações e o surgimento de outras, permitindo articular palavra e pulsão, ou seja, incluindo a problemática do gozo. Assim o desejo do analista tem como resultado a emergência de um Outro inconsistente à diferença da psicoterapia, que preserva a onipotência do Outro.

Há um outro encaminhamento oferecido por J. A Miller para responder à pergunta pela diferencia entre psicoterapia e psicanalise, inserindo a primeira no predomínio do discurso do mestre.

Frente a angústia do sujeito que procura a psicoterapia, o psicoterapeuta oferece, de forma imediata e permanente, um significante para se estabilizar. Isto provoca um aborto da fantasia, já que no discurso do mestre o sujeito dividido e o objeto ficam impossibilitados de se relacionar. Nesse sentido a psicoterapia fica como o reverso da psicanálise.

Voltando sobre o desejo do analista.

Penso que aí temos a chave para encaminhar, ainda que de maneira fragmentaria, a resposta à nossa pergunta inicial: O que ancora o fazer do analista?

Dissemos que o desejo do analista implica que o analista se abstenha de ocupar o lugar do mestre, o lugar da direção e assim se deixe habitar pelo furo que implica fazer o semblante de objeto pequeno a.

  1. Lacan diz que o desejo do analista não é um desejo puro. Entendo assim: que não se trata de algo teórico nem especulativo, nem um a priori e sim o resultado de uma relação muito especial com a causa, com aquilo que falta, que faz furo, com aquilo que manca, encarnada na psicanalise. Esse desejo é de obter algo. O quê? Uma diferença absoluta, destaco o termo diferença, que por um lado remete ao significante e seu funcionamento, e por outro o termo absoluto, que indica que não há relação sexual onde se o fora-do-sentido.

O analista, para ancorar seu fazer, precisa dos princípios que lhe orientem na sua operação e de uma relação com a causa, a causa do inconsciente, a causa da psicanalise. Nesse sentido o fazer do analista pode vir a gerar algo novo, algo inédito, que acolhe três elementos anormais, muito anormais que denominamos a verdade, o desejo e o gozo. Aí vocês têm algo do ponto onde cheguei para retomar do ponto onde vocês estão. Aguardo.

Obrigada


[1] Lacan, J. (1958b) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
[2] Brodsky, Graciela. A solução do Sintoma. In Opção Lacaniana 34. SP. Edições Eólia. Outubro 2002.
[3] Lacan, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed.,2003. P.508.
[4] Miller, J. A El lugar y el lazo. Buenos Aires: Buenos Aires. 2001. P.116.

Onde se ancora o fazer do analista? A psicanálise e seu ensino.

Ana Tereza Groisman

“Ler o que escrevi mesmo sem compreender muito bem faz efeito, prende, interessa. Não se tem tanto a impressão de se estar lendo um escrito premido por algo urgente e dirigido a pessoas que têm alguma coisa para fazer, alguma coisa que não é cômoda de fazer.” (Lacan, 2006) [1]

Quando começamos a trabalhar no curso de Miller “o lugar e o laço”, encontramos diversas passagens que nos ajudaram a pensar sobre a psicanálise em tempos de Pandemia, tema que tem orientado nosso estudo.

A tarefa desse seminário é fazer ressoar as pérolas que encontramos ao longo do texto. Por isso não seguimos os capítulos em sua ordem, nem pretendemos dar uma aula sobre o texto de Miller. Mas me parece importante situar o porquê de eu escolher comentar essa aula: no final da 7, Miller localiza no último ensino de Lacan uma disjunção radical entre o simbólico e o real, uma disjunção que não será abarcada pela construção da fantasia. Há uma possibilidade de articulação, mas não pela via do sentido da fantasia e sim pela via do artifício do Sinthoma. É pelo mal-entendido que o real se apresenta. Trata-se então de fazer ressoar os efeitos desse mal-entendido, e não apenas ficcioná-lo pela construção fantasmática.

Ele termina a aula 7 assim: “O método do qual se trata consiste em buscar o real em tudo. Procurar o real, tentar passar sob o sentido, tentar dispersar as construções, mesmo elegantes, mesmo convincentes, sobretudo se são elegantes. É isso que Lacan assume e demonstra em seu ensino. Trata-se de um certo “nada de elegância”[2].

Na lição seguinte, Miller retoma essa passagem, lembrando que o último ensino de Lacan nos obriga a desaprender, ou seja: a se desprender um pouco do que antes balizava nossa clínica para se abrir a um certo “nada entender”. Um ensino que desorienta, mas desbrava novos mares a navegar.

Ao ler a aula “O último ensino de Lacan”, fui fisgada pelo desejo de tentar trabalhar um pouco sobre a questão do ensino como um dos ancoradouros necessários ao fazer do analista. Buscando o significado da palavra “ensino”, aprendi que ensinar vem do latim in+signare o que significa pôr marcas ou sinais. Quando o ensino acontece, uma marca é deixada. Como nos diz Lacan, mesmo sem compreender muito bem, algo nos prende, nos interessa. Creio que podemos acrescentar que algo também se transmite. Estudar psicanálise não é fácil! O ensino e seu aprendizado incluem um vazio central de saber, marca do real em jogo na experiência com o inconsciente.

O que marca o ensino de Lacan, sobretudo seu último ensino? Que marca buscamos imprimir com o ensino da psicanálise e de onde elas surgem?

Quando entramos no terreno do ensino e da transmissão, vemos o analista se deslocar de seu lugar para o de analisante. São inúmeras as passagens ao longo dos cursos de Miller em que ele explicita isso: colocar seu desejo de saber a trabalho a partir de uma questão que o atravessa e desassossega. Lacan também insiste nesse ponto em diversos momentos, seus seminários guiaram sua própria formação. O ensino e o estudo, sobretudo o chamado último ensino de Lacan, nos forçam a esse lugar, por isso, também do lado do analista, mesmo que em posição analisante, em tempos de pandemia, é preciso reinventar. Como seguir com o ensino, com a orientação Lacaniana, sem nossa “câmara de eco” [3]. A pandemia nos forçou ao confinamento dos corpos, as análises seguiram, isso é fato. E o estudo, o ensino, que consequências poderemos recolher dessa experiência de seminários via computador?

Se por um lado podemos perceber uma amplificação do território Escola, que não se reduz mais as fronteiras determinadas pelo tempo e espaço. Devemos a isso um aumento significativo de pessoas que assistem as atividades propostas. Na maioria delas duplicamos o número de “acessos”. Por outro lado, me parece que perdemos na dimensão do efeito de retorno do que suscitamos. A escola como câmara de ecos (écho-le), supõe, salvo engano, um acontecimento delimitado no tempo e no espaço que nos possibilita recolher os efeitos que nossas falas suscitam nos que estão presentes, seja sob a forma de perguntas, comentários, aplausos, ou até sob a forma do burburinho, risadas, resmungos e olhares. Isso perdemos, mas o que perdemos com isso? Não sei… O que sei é que fazer um seminário pelo computador, seja como aquele que fala, seja como aquele que escuta, não é a mesma coisa! Brincando um pouco com os significantes, o eco, quando aparece, logo deve ser suprimido, sinal de que alguém deixou seu microfone ligado! Mas e o eco como presença tão fundamental do real que nos atravessa o corpo quando acompanhamos um seminário, ainda tem lugar?

A marca que o ensino produz não está inteiramente no campo daquele que emite uma fala, daquele que prepara alguma coisa para trazer, mas está também no campo daquele que escuta e que será tocado a partir de suas questões singulares. É daí que ele poderá se enlaçar ao ensino. Não há lugar para a passividade aqui. Cada um que se propõe a estudar a psicanálise só seguirá no seu intuito se puder dar de si, malhar em cima dos textos e se deixar atravessar pela experiência do ensino de Lacan. Cada um será responsável por sua formação na medida em que a Escola se responsabiliza por orientá-la. Além dos seminários, temos numa ponta as conferências e os vídeos gravados – que poderão ser infinitamente assistidos – e na outra os cartéis, que talvez guardem melhor esse caráter de acontecimento, de encontro, um grupo menor que pode falar ao mesmo tempo, dispensando o cerimonial imposto pelos dispositivos digitais. Todos “mutados”, a sinalizar pelo aparelho o desejo de falar, ou fazer caber em poucos caracteres as considerações que gostariam de compartilhar com o grupo.

Enviamos previamente as aulas de Miller, apostando que cada um, ao lê-las, poderá fazer de si um campo de ressonância ao texto.

“O último ensino de Lacan” propicia essa ressonância por conservar uma abertura, um “caráter aporético”, que nos leva a tropeçar a todo momento num impossível de concluir. Ele não é a última palavra. Nem no sentido da mais moderna, nem no sentido de palavra final: Miller ressalta que não há ponto de basta! Seu caráter inacabado, longe de ser um defeito, é lido como um efeito de real.

Vou retomar um pouco algumas passagens dessa aula que nos servirão de guia na conversa que espero, interesse a todos. Miller inicia sua aula dizendo que o último ensino de Lacan nos obriga a desaprender. Não é o caso de elogiar o fato de que não se compreende nada, mas se cairmos no engodo de compreender tudo, é necessário dar lugar ao mal-entendido.

Podemos sintetizar o percurso dessa aula da seguinte maneira: ele retoma Lacan percorrendo um fio de seu ensino que vai do “fazer compreender” ao “saber fazer”. É preciso lembrar que o ensino acompanha o fazer clínico. Ele destaca duas orientações: uma de Lacan tradutor de Freud, onde a prática clínica se orientava pela via da significantização. E outra, mais para o final de seu ensino, quando se produz uma dissolução dos conceitos freudianos, nem mesmo o inconsciente sairá ileso do que Miller chamou como “máquina de triturar conceitos”. Temos aqui um vetor: da tradução à dissolução dos conceitos freudianos.

Nesse texto, Miller localiza na conferência “a terceira” (Roma-1974)[4] o início do chamado “último ensino”. É nessa conferência que aparece o nó borromeano, com seus campos de gozo e o enlace de suas consistências, o corpo, a vida e a morte (língua). “Esse nó, é preciso sê-lo” diz Lacan aos analistas, na medida em que será as suas custas que o objeto a funcionará como causa de desejo, “como causa de desejo de seus analisantes”, essa é a função do analista, e o lugar de furo que o nó apreende. Essa conferência é enorme, não tanto em tamanho, mas em abrangência. Ela reorienta o ensino de Lacan em direção ao real que, sem ele, faria a psicanálise desaparecer: “é do real que depende o analista e não ao contrário”. É nesse texto também que Lacan afirma que se a psicanálise tiver êxito em relação ao que lhe é demandado (extinguir o sintoma e o real) ela mesma será extinta, como um sintoma esquecido. É no fracasso frente ao real que a psicanálise poderá prosseguir.

Miller identifica aí uma ruptura em termos lógicos, um deslocamento dos registros que antes se constituíam como conjunto de elementos, ao ponto de haver uma distribuição dos conceitos entre eles, (os quadros apresentados nos seminários IV e X são bons exemplos disso), e que passam a ser contados, eles próprios, como elementos do conjunto nó. Nesse conjunto (nó) cada elemento é Uno. Estão todos separados e enlaçados à três, ou posteriormente a quatro, não há relação dois a dois, ou seja: um não tem relação com o outro; vida e morte precisam do corpo para enlaçarem-se, assim como corpo e vida precisam da morte (língua) e etc. O nó desfaz de vez a supremacia do simbólico. Isso é notório quando se trata, por exemplo, da fala. Ela deixaria de ser tomada na via da salvação e passaria no último ensino a ser lida como parasitária, epidêmica, quase um câncer. Assim, entendo a Morte colocada no registro do simbólico. O ensino prossegue na via de um rebaixamento do sentido e como salienta JAM, desemboca num rebaixamento do saber e do significante. O saber que se extrai do nó é contingencial, não deve ser ritualizado. O manuseio do nó nos coloca a trabalho, tirando consequências de sua escrita.

A consequência direta que podemos extrair daí é poder trabalhar com um saber fora do campo do sentido. Um saber que se extrai no fazer, a cada vez. Um saber que se aproxima do saber do artista, cheio de inspiração, mas sem previsibilidade. Daí a passagem do saber para o saber fazer com o real, onde o que vigora é a consequência que extraímos do ato, um saber que se alia ao fazer, e que sem ele, não existe.  Um saber que se transmite pelas vias da ressonância.

Esse real sem lei, é em si puro mal-entendido. Murmúrio indefinível que persiste como um barulho a nos perturbar. Uma fonte inesgotável de desassossego, que nos mantém vivos e não se dobra ao sentido.

O que muda em relação ao ensino?

Miller, em outro curso, diz que no último ensino Lacan solta a mão de Freud para pegar a mão de Joyce. O que nos obriga a seguir por um terreno desorientado em relação às balizas nas quais nos assegurávamos. Não nos fixamos mais no porto seguro da fantasia, mas seguimos com nossas âncoras, que nos servirão para não seguirmos completamente à deriva, nos arriscamos a explorar novas rotas, e nos deixarmos ensinar pelas vicissitudes do percurso, sem pressa em concluir.

Obrigada.


[1] Lacan, J. 1967. Meu ensino, sua natureza e seus fins in: Meu ensino, RJ, Jorge Zahar Ed. 2006, p.71
[2] Miller, J,-A. 2001. El lugar y el lazo, BsAs, Paidós, 2013, p.135
[3] Miller, J.-A. 2010. É Passe? In: Aposta no passe: seguido de 15 testemunhos de Analistas da escola, membros da Escola brasileira de psicanálise, organização de Ana Lydia Santiago-Rio de Janeiro: Contra Capa, 2018.
[4] Lacan,J. Conferência A Terceira (1974). Cadernos Lacan. Porto Alegre: APPOA, 2002. V.2.
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Sugestão Bibliográfica 001
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Reinvenção da psicanálise e lugar analítico

Por Ondina Machado

Farei uma leitura comentada do primeiro capítulo – “A tentação do analista”, acrescida de algumas considerações presentes no segundo – “A não-relação”.

No primeiro, Jacques-Alain Miller se movimenta em torno do que considera sua mania ou sua preocupação: é preciso fazer a psicanálise existir para que se possa fazer psicanálise. Parece redundante e é, mas os desenvolvimentos seguintes mostram a o rigor da afirmação.

É uma linda lição na qual Miller introduz o tema do curso e justifica a escolha do título: O lugar e o laço.

De lugares e laços:

Começa fazendo a diferença entre place e lieu (fr.) ou sitio e lugar (es.). Ambos são traduzidos por lugar, porém sitio (es.) também pode ser utilizado para ponto (ponto de táxi) ou para posição, colocação, ordem de chegada. O importante é que sitio se vincula a um (Um) elemento, apenas um pode ocupar o sitio. Lugar, no entanto, se refere a uma multiplicidade, ou seja, vários elementos podem ocupar o mesmo lugar, por exemplo, uma multidão ocupa uma praça, uma avenida, não uma posição. Desse modo, no sitio, é passível de haver substituição, mas sempre por sucessão, ou seja, um após o outro excluindo os demais. Já no lugar podem coexistir diferentes elementos coordenados formando um sistema ou uma estrutura, com diferentes sítios. Os 4 discursos de Lacan têm essa característica, pois o lugar do agente pode ser ocupado pelo S1, o $, S2 ou o objeto ‘a’, dependendo de qual discurso se trate.

Jacques-Alain Miller explica que o espaço importa para a psicanálise, não como extensão, mas sim como lugar. O espaço como lugar estabelece relações, e as relações se traduzem em laços. A articulação entre relação e laço não é simples, como veremos mais adiante.

Agora quero enfatizar o espaço como lugar. Esta concepção cria um modo novo de relação entre espaço e tempo, deduzida do Seminário 26 de Lacan – “A topologia e tempo” (1978-1979) e que aparece também no livro “A erótica do tempo” de Miller.

Na psicanálise o tempo também tem uma inscrição peculiar. Miller considera que uma articulação significante (S1– S2) demonstra como o tempo pode ser significado pelo sujeito em função da estrutura significante que o determine. Por exemplo: o efeito retroativo de S2 sobre S1, ou uma interpretação que venha a ganhar uma significação ou outra dependendo do contexto, do momento em que ela é enunciada. Assim, ele distingue tempo epistêmico ou tempo do saber que pode evocar o tempo de para compreender, do tempo erótico que por sua vez nos lembra o tempo de concluir. É justamente neste último que Lacan reconhece um laço com o objeto ‘a’. Poderíamos dizer, resumidamente, que Lacan inclui a libido na consideração da relação espaço-tempo.

O clínico

Segundo Miller, a grande tentação do psicanalista é se tornar um clínico. O psicanalista não é um clínico na medida em que o clínico é aquele que se separa do que vê, do que observa. Já o psicanalista, ao contrário, faz parte, vivamente, da experiência de uma análise como o operador da experiência. Mas esta operação não se dá com a sua pessoa, e sim com o lugar que ele ocupa na experiência. Se o espaço como lugar faz Miller deduzir o laço, podemos dizer que o lugar ocupado pelo analista na transferência, como sujeito suposto saber, é um lugar que condiciona um laço. Causa certo estranhamento imaginar que o analista é um elemento da relação que compõe o laço e, ao mesmo tempo, é o lugar no qual o laço se dá. Aqui está a dificuldade que mencionei anteriormente sobre a articulação entre laço e relação. Me parece que é neste ponto que a não-relação faz furo na concepção de laço porque não se trata propriamente de uma relação, mas de uma função, sobre a qual a Angélica vai tratar. Suponho que o furo esteja na suposição de um saber, mas mais ainda na suposição de um sujeito, pois não é com seu saber que um analista opera, tampouco como sujeito. A transferência seria mais a suposição de um saber inconsciente depositada em um sujeito suposto. Esta seria a situação “experimental” de uma análise.

Talvez possamos pensar que se a não-relação faz furo na concepção de laço, isso nos levaria a considerar a temporalidade implicada no enlaçamento: atar e desatar é um dos movimentos apontados por Lacan como próprios de uma análise, por exemplo.

A existência da psicanálise

Vou retomar a preocupação de Miller com a qual iniciei esta apresentação e tentar desenvolvê-la. Ele diz: é preciso fazer a psicanálise existir para que se possa fazer psicanálise. Ora, se a psicanálise não existe, não se pode fazer psicanálise. Simples assim. Mas esclarece: “Esta é outra forma de dizer que o lugar e o laço analítico dependem do laço do analista com a psicanálise” (p.17). Que laço é este? Poderíamos pensar tanto na transferência de trabalho como na própria transferência de análise do analista. Seria o passe o ápice da conjunção destas transferências?

Jacques-Alain Miller admite que ao dizer que é preciso que a psicanálise exista abre a questão sobre se a psicanálise existe. De certa forma ele afirma a existência da psicanálise, mas a compara com a modalidade de existência de A Mulher. A Mulher não existe, como diz Lacan, mas isso não elimina o fato de que as mulheres continuam existindo, só que não como conjunto, mas uma a uma. O mesmo pode ocorrer com os psicanalistas. A psicanálise pode não existir, mesmo assim existiriam os psicanalistas. Porém, sem a existência de psicanálise, teríamos psicanalistas “dispersos e descabelados” (Lacan).

Até então, o que fazia a psicanálise existir era Freud e tudo que partiu dele: instituição, discípulos. Era em torno de Freud que a psicanálise tinha existência. E isso levou a enormes desvios, talvez o maior deles seja a confusão com as chamadas “terapias da fala e/ou da escuta”. A segunda apresentação do Seminário de Orientação Lacaniana, dia 20 de julho, vai tratar das diferenças entre psicanálise e psicoterapia, por isso não me estenderei nessa questão e passarei direto à chamada “solução Lacan”.

Para Miller o retorno a Freud, proposto por Lacan, foi um truque, pois ele não passou exatamente pelos caminhos freudianos. Para Lacan a psicanálise não poderia existir apenas como história, pela tradição. A “solução Lacan” para fazer a psicanálise existir passou pela lógica e suas categorias: o necessário e o impossível, o possível e o contingente. Miller ressalta que há um necessário à prática da psicanálise, que mesmo não visando a cura, conduz a algum lugar, pois “se começa como é devido, também pode terminar como é devido”. (p.20)

Miller ressalta que há um necessário à prática da psicanálise, ela “conduz a um lado, que, se começa como é devido, também pode terminar como é devido, e que há uma determinação essencial da experiência analítica” (p.20). Lacan se interessou por “fazer ex-sistir a psicanálise pela lógica, por seu necessário, esclarecer sua essência, pois aqui a ex-sistência da análise depende de sua essência” (p.20).

A reinvenção da psicanálise

A transmissão da psicanálise se dá, não pela via da aprendizagem, da técnica. A psicanálise se transmite, mas não se ensina. Também não basta fazer análise, como muitos pensam. Uma análise não transmite a psicanálise, sem dúvida cria condições para uma “boa” prática da psicanálise, pois “o sujeito é o que se transmite e se transforma em sua transmissão”. (p.21)

A psicanálise não se ensina, o que não quer dizer que não haja ensino da psicanálise, como o fez Lacan. Vejam que Jacques-Alain Miller só usa o termo ensino para Lacan, não para a sua transmissão, para isso usa, e todos nós usamos, Orientação – Orientação Lacaniana. O ensino de Lacan tem uma marca, seus ditos ensinantes deixam sempre um espaço para que o leitor coloque ali algo de seu: uma pontuação, um acento, uma derivação, uma cadeia. Não se trata de um dito que se pretenda verdadeiro, coerente, acabado. Eles costumam ter certa imprecisão que transmite o principal: o furo no saber.  O que uma análise produz são efeitos de verdade dispersos. Fazer com eles laços constituem o almejado bem-dizer. Assim, podemos entender que “a verdade é um lugar, mas o saber é um laço.” (p. 22) Cada um faz o seu laço, a sua articulação, com seus próprios furos no saber.

Deste modo o laço vai na direção de uma reinvenção. Pensar, como diz Freud e Lacan, a psicanálise como sendo reinventada a cada análise impõe que se tenha claro que ela já foi inventada, que ela já existe. Não se trata de inventar novamente a psicanálise; uma outra invenção inventaria outra coisa que não a psicanálise. Porém, é muito importante que se possa reinventá-la a cada análise, a cada momento do mundo, porque cada análise e cada momento da cultura e do mundo exigirá da psicanálise sua reinvenção. Ressalto, porém, que essa reinvenção seja, ainda assim, psicanálise.

O real e a prática

O Real, assim como A Mullher, não existe, mas existem reais, pedaços de real. Diferente de um discurso sobre o ser (daquilo que existe), o real não existe, ele é produto de uma análise. Neste sentido podemos dizer que a psicanálise é um discurso do que “não há”, um discurso das coisas que não existem. Por isso é um discurso aberto à prática, ou no dizer de Lacan, “o inconsciente é um fato na medida em que encontra seu suporte no próprio discurso que o estabelece” (apud Miller, p.24). Agora podemos retomar ideias que nos são tão caras, algumas já mencionadas (lugar, laço, função) para tratar de uma questão da prática em nossos dias pandêmicos – a presença do analista.

O pensamento, ou seja, a teoria, não apreende o singular. Pensar está muito distante daquilo que acontece, por isso para Lacan o analista não pensa, ele faz. O ato analítico apaga o psicanalista, apaga seu pensamento, o que fica é a sua presença. O pensamento está muito próximo da fantasia, ou do delírio, como se queira.

Dizer que a psicanálise é uma prática quer dizer que ela não é uma teoria, é da prática que emana sua teoria. A psicanálise é uma prática porque implica em por em ato, fazer uma aposta na qual o ato ultrapassa o pensamento e faz do analista uma presença.

Curso O lugar e o laço
Jacques-Alain Miller

Por Angélica Bastos

Neste momento, imagens espaciais como a janela, a tela e o túnel são invocadas em referência ao espaço, assim como ao tempo. São imagens que nos são familiares do espaço-extensão e tambem de escritos, textos psicanalíticos e literários. Assim como o consultório, a poltrona e o divã são significantes. O seminário Prática da psicanálise em tempos de pandemia se inicia com o tema da Reivenção da psicanálise e lugar analítico. Como entender o que foi denominado lugar analítico e como se servir dele na reinvenção da Psicanálise?

Se o lugar analítico não se define pelo espaço enquanto extensão (tampouco é o local da sessão), isso não significa que divã e consultório não tenham nele importância, de acordo com os diferentes momentos de cada análise. Remetem ao espaço extensão, mas no tocante à nossa experiência, por serem significantes, circulam.

Para o psicanalista, sempre se tratou de lugar. Desde o ponto de vista topográfico de Freud até a topología de Lacan, o ‘onde’ esteve no âmago da experiência: “Onde isso estava, devo advir como sujeito”. Essa frase foi lida, relida e reformulada por Lacan para situar o analista: “Onde estava o mais gozar, deve advir o analista …” enquanto aquele que profere o ato, como objeto-causa ou semblante de objeto. O advento, seja do sujeito, seja do analista como função, encontra-se na dependência do lugar.

Se o analista é uma função, que vem a ser preenchida –  aqui ou ali; há pouco tempo atrás, mas não necesariamente daqui a pouco – essa função tem várias dimensões. O lugar analítico depende da transferência e permite discernir dimensões distintas na função que o analista é chamado a assumir a cada vez.

A Prática da psicanálise em tempos de pandemia não é relativa ao momento da pandemia ou da quarentena, pois não há psicanálise relativa. A expressão de Jacques-Alain-Miller psicanálise absoluta aponta para o que surge da própria psicanálise, emerge de sua prática, ou seja, da psicanálise desacompanhada de um cortejo de disciplinas, aquela que não se vale de recursos extrínsecos, de apropriações ou empréstimos vindo de outro campo de experiência ou discurso. Psicanálise como prática é considerada no seminário aqui trabalhado a boa maneira de abordar a psicanálise pura e a psicanálise aplicada (à terapêutica), não colocando dualidade e menos ainda oposição entre ambas, já que a diferença que importa é aquela entre, de um lado, a psicanálise simplesmente, a prática psicanalítica, e, de outro, a psicoterapia

A escolha do termo ‘reinvenção’ por Lacan e, em seguida, por Miller, é criteriosa. Reinventar a psicanálise é diferente refazê-la ou inovar, porque em nossa experiência, do inconsciente, o novo não é o mais recente, o up to date, a novidade que acaba de surgir ou existe há pouco tempo. Este tipo de novo em nossos dias é cada vez mais provisório e descartável. Lacan chegou a dizer que o verdadeiro é sempre novo. Na análise, novo é ver surgir o sujeito, é abrir-se um circuito de desejo, é produzir-se o sintoma. No que diz respeito ao que nos interessa aqui – o lugar analítico -, o novo está condicionado por um lugar do qual dependem os efeitos da interpretação.

Algumas das dificuldades da psicanálise no momento desse seminário, de 2000-2001, são apresentadas no capítulo V, intitulado ‘A trajetória analítica’. São pertinentes aos dias atuais e a elas agregam-se outras mais recentes. Se falamos em 2000-2001 e também agora de reinvenção é porque partimos do fato de que algo mudou ou que várias coisas se encontram em mutação.

A psicanálise se inscreveu no mundo e se infiltrou na vida cotidiana. Se entendemos o mundo como uma espécie de parceiro, admitimos que alguns axiomas – na acepção de “evidências não discutidas” – podem ser formuladas em nosso parceiro-mundo. Com base nesses axiomas, o desejo, o gozo, a palavra são interpretados pelo mundo. Miller destaca cinco axiomas, mas vou me deter no desejo, na palavra e na contraposição do sentido ao real, para destacar três deles e assim discutir a tarefa de reinventar a psicanálise (os outros dois são o direito ao gozo e a abstenção de julgar).

Essas interpretações prêt-à-porter não são interpretações no sentido psicanalítico, são “interpretações” com as quais o mundo nos responde, como se se tratasse de evidências, e ele nos responde antes mesmo que uma pergunta seja colocada.

(1) O desejo é destinado a ser manipulado no sentido da demanda. A condição de reconhecimento do desejo é sua redução à demanda, sua recondução a uma demanda para a qual se determina uma oferta. A produção intensiva de novos objetos pela tecno-ciência está cada vez mais determinada pela capacidade de esses objetos causarem desejo. Graças à interpretação do mundo, o desejo transmuta-se em fator de economia.

(2) A palavra concebida como instrumento de bem-estar. Isso subtrai da palavra sua função de verdade (e gozo) para convertê-la em fator de equilíbio psíquico. Teria havido, segundo a expressão de Miller, um roubo da palabra, uma oferta de escuta e de fala a serviço da homeostase.

(3) O sentido é convidado a jogar contra o real, a contrapor-se ao real. Chega-se a ignorar e excluir o real. O real já não é fundamento.

Quando a psicanálise foi inventada, Freud se deparou com o ‘não’, o mundo dizia ‘não’ (ao inconsciente, à sexualidade infantil, à pulsão de morte), enquanto hoje o mundo diz ‘sim’, ao desejo, à palavra, ao sentido. O mundo se vacinou. Ele se imunizou interpretando a psicanálise à sua maneira, oferecendo interpretações lato sensu que doam sentido.

Em resumo, se o parceiro mundo desatou o laço da palavra com a verdade, em prol de um relativismo, nele o uso contemporâneo da palavra recorre à satisfação do sentido.

O mundo se apoderou da satisfação por meio da palavra, encampou a satisfação de falar, de fazer falar e escutar. Com a expressão roubo da palavra nos referimos tanto à clínica das psicoterapias quanto à escuta ampla, geral e irrestrita. A escuta assume as mais variadas formas de oitivas, ouvidorias, audiências e audições que acionam o aparato interpretativo do mundo contemporâneo até o acolhimento da demanda do sofredor mediante a fala e a escuta.

Enquanto essas interpretações em sentido amplo se impõem e impõem sentidos, o lugar analítico é um lugar que, ao invés de conter interpretações, é um lugar de pré-interpretação, que não é interpretação a priori, prévia ou pronta. O lugar analítico dá condições a que um dito do analista tenha efeito de interpretação.

A pré-interpretação própria ao lugar analítico é, segundo Miller, originária e condiciona o que se apresentará de fato como interpretação. Esse é um lugar de pré-interpretação porque:

(1) Nele a palavra será interpretada em termos de verdade. O dispositivo da análise faz um forçamento na direção da verdade. Lacan diz “desencadeamento da verdade” – em sua estrutura de ficção, de verdade mentirosa. Miller lembra que mensonge, mentira, contém songe, sonho, a verdade tem algo de sonho. Dizer que a palavra é interpretada como verdade não equivale a superpor verdade e real, até porque ela pode ser um obstáculo na via do real.

(2) No lugar analítico, a pré-interpretação implica que a verdade seja interpretada como saber. É um lugar onde se coloca e se denuncia um saber, nunca pronto, mas a ser inventado sobre o real da não-relação sexual. Não um saber sobre a verdade, porque o real enquanto impossível, impossibilidade da relação, não é dócil, não se deixa apreender como verdade, sobre ele não há verdade.

(3) E, já que não levamos longe demais a verdade, é preciso acrescentar que no lugar analítico o sentido da verdade é interpretado como gozo. Para além de um querer dizer, interpretar a verdade como gozo implica interrogar o que isso quer, ao dizer o que diz.

O lugar analítico é um lugar a ser fundado pelo fato de alguém – na solidão de seu gozo, de seu exílio – vir falar a alguém. O Outro enquanto lugar colocado pela fala ainda não é o lugar analítico, conforme constatamos quando começamos a escutar alguém. Cabe ao desejo do analista – que talvez possamos considerar como uma dimensão dessa função – nas condições da transferência, ultrapassar o nível da palavra como demanda e da satisfação semantofílica na direção desse lugar de pré-interpretação. Só aí, em ato, pode tomar lugar uma interpretação efetiva na via de acesso ao gozo e ao desejo. Esse lugar de pré-interpretação é tão efetivo que a partir dele o silêncio do analista pode ganhar valor de interpretação, o analisante atribui interpretações ao analista e se dá interpretações.

Desse lugar, a interpretação produz ondas, que movimentam os significantes do gozo. Essas ondas perturbam a repetição sem alimentá-la com o sentido, movimentam não – é preciso sublinhar – não tanto quanto possível, mas tanto quanto o impossível do real, tanto quanto o impossível da relação.

A trajetória analítica assegura um advento do sujeito distinto da identificação. O “Wo es war, soll Ich werden” coloca a psicanálise como uma trajetória. Segundo um modelo linear da cura, ela se expressa em termos de “Há um problema que, mediante um número finito de etapas, encontra uma solução”. Esse esquematismo linear é abandonado em proveito do nó, que não implica começo e fim, mas deslocamentos. Os movimentos e deslocamentos, embora tenham um final no horizonte, de modo algum se apresentam como um processo cujo fim estaria prescrito no começo. Tal como entendo, reservam à contingência uma margem maior, deixando o analista em posição de, conforme formulou Lacan, aguardar sem esperar, isto é, aguardar em uma expectativa sem esperança ou antecipação.

O que seria o lugar analítico no regime não linear do nó? O fora-do-sentido é uma aposta decisiva e, a partir dela, uma aposta no nó borromeano no último ensino. A dimensão fora-do-sentido, com apoio no nó entre elementos sem relação direta entre si, mas apenas por intermédio de um terceiro, não destaca um termo final, de retrocesso, a partir do qual uma trajetória se ordena, se ressignifica. O real (real da psicanálise, real de cada um,) é um nome positivo do fora-do-sentido, ainda que dar nome tenha efeitos de sentido.

O regime do nó, não linear, tem consequências sobre o final de análise e o passe. Ao invés de uma história que se conta e se ressignifica, com um ponto de basta que realça os fenômenos de sentido, o passe corresponde antes a uma elucubração – termo fundamental nesse regime. A relação entre fora-do-sentido e sentido enquanto artifício situa vizinhanças e localiza deslocamentos entre um e outro.

SEMINÁRIO DE ORIENTAÇÃO LACANIANA

Coordenação: Conselho da EBP Seção Rio

Em 2020, o Seminário de Orientação Lacaniana trabalhará o curso de J.-A. Miller intitulado Extimidad articulando-o com o tema da seção Rio – Exílio, e com o tema do Encontro Brasileiro – Infamiliar. A proposta é partir do texto e, através da leitura e dos comentários de alguns capítulos, pensar as diferentes formas pelas quais o exílio, o estranho e a segregação aparecem tanto na clínica quanto no social.

Cada encontro será dedicado a um ou mais capítulos com a apresentação de um ponto de interesse do comentador, com o intuito de elucidar aquilo que nos inquieta a propósito da psicanálise e seu lugar na civilização.

No primeiro encontro nos dedicaremos ao termo extimidade, neologismo introduzido por J. Lacan no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, levantando suas significações e demonstrando sua estrutura. Esse trabalho permitirá interrogar o sujeito, o objeto e o Outro.

Maria Silvia Garcia Fernández Hanna
Presidente do Conselho da EBP-Rio

2019

Seminário de Orientação Lacaniana

Maria Silvia Hanna (presidente do Conselho da Seção Rio)

O Conselho da EBP-Rio escolheu alguns capítulos do curso de J.-A. Miller intitulado Los divinos detalles[1] a partir dos quais serão apresentados alguns aspectos que visam cernir o estatuto do gozo no ensino de J. Lacan. O ponto de partida é o detalhe que acolhe o gozo e se coloca como uma condição para a escolha do objeto amoroso e sexual.

O alcance político da psicanálise e sua incidência na clínica

Paula Borsoi
Seminário de Orientação Lacaniana – 04/11/2019

No final do capítulo X, “Lacan, o discurso e a política”, deste curso intitulado Divinos detalhes1, Miller lança uma questão motivadora de meu comentário. A questão é a seguinte: “o nó em questão é saber em que medida a exigência do dever se opõe às pulsões, em que medida precisamente o dever é um não ao gozo”.

Miller retoma Freud, no texto “Mal estar na cultura”, lembrando que Freud colocava o objeto no lugar do Ideal e não simplesmente um traço significante nesse lugar. A partir disso, Miller diz que “o laço social é impensável se não há transferência de libido para o ideal. Não basta dizer que o laço social se fundamenta do sacrifício do gozo, há que se dizer para onde vai a mais-valia, que é no fundo um problema politico”. Ou seja, há uma parte do gozo que não pode ser negativizada, que fica fora do discurso e, portanto, do laço, levando Miller a dizer: “do mesmo lugar que se enuncia o dever, se acumula o gozo”. “Um dos efeitos desse acúmulo é o efeito paradoxal de que algo foi subtraído, transformando a revolta, em legítima”. E prossegue: “a mais-valia é o que vai engendrar o que foi perdido, com sua recuperação. Essa concentração de gozo está no ponto de Ideal. Não se trata do ideal do eu pacificante, mas o que Freud nomeou de supereu”. O supereu, então, “não é somente o que exige renúncia do gozo, mas o lugar onde o gozo se acumula”. E Miller termina o capítulo retomando Freud: “quanto mais rigoroso for o dever, mais encontramos, precisamente nesse lugar, o que se chama corrupção”.

O termo “corrupção” tem como definição uma ação ou efeito de adulterar, corromper o conteúdo original de algo. No nosso caso, me parece mais oportuno pensar corrupção como declínio, decadência, pois o que está em jogo aí é a economia do gozo. É nessa perspectiva que busquei tomar o Impasse do supereu, que dá título à aula. Trago algumas formulações de Miller que podem nos orientar sobre os efeitos nos dias atuais da ação possível da psicanálise. Qual a incidência efetiva desse impasse na atualidade da experiência analítica?

O impasse, definido como uma situação sem solução favorável, implica um paradoxo muito atual: como consentir com a perda de gozo, apesar dos efeitos devastadores dessa acumulação? O movimento pulsional está permanentemente em busca de satisfação, tornando-se necessário corromper, alterar, consentir com o impossível dessa realização.

Lacan agrega dois adjetivos ao supereu freudiano: obsceno e feroz. A crueldade sádica do supereu revela que as exigências da moral tem a mesma força que as pulsões, sendo apenas um deslocamento dessas.

Miller dá vários exemplos de massacres, como os eventos precursores da revolução russa, para afirmar que não devemos manter nossos ouvidos surdos para o que acontece, porque isso produz uma incidência efetiva, determinante, na atualidade da experiência freudiana. Essa me parece uma afirmação importante pois ressalta como o psicanalista não deve perder de vista o modo de estar à altura de “responder à subjetividade de sua época”. Isso deve ser feito com as ferramentas da psicanálise, sem adaptá-la, apostando na sua radicalidade, naquilo que é o impasse próprio do sujeito contemporâneo: como consentir com a perda de gozo, recusando a proposta obscena e feroz do imperativo superegóico: goza.

Miller dedica várias observações ao texto de Freud referido acima, e destaca três elementos para tratar da questão do lugar do Ideal no grupo. Dos três vou trabalhar apenas o terceiro elemento. E o objeto a no lugar do Ideal, que é sobre o qual vou me deter.

A problemática do gozo, nesse impasse, decorre do fato do objeto a estar como mais- de-gozar no lugar do Ideal. Essa dupla dimensão do objeto a como causa e como mais- de-gozar fica borrada, destacando a dimensão do mais-de-gozar nesse lugar, devastando o sujeito, deixa-o à deriva em busca de mais e mais, algo que ele possa recuperar, simultaneamente, o que é experimentado como perda. “A subida do objeto a ao zênite social”, antecipado por Lacan, empurra o sujeito para formas de identificação ao objeto, deixando o sujeito como resto, tendendo à melancolização e à passagem ao ato. A presença do objeto mais-de-gozar serve às mais diversas formas de segregação, gerando um efeito de angústia generalizada.

Miller enfatiza que esse lugar ocupado pelo a transcreve, na atualidade, o supereu. O supereu traduz a divisão do sujeito, dado que o sujeito não quer seu bem. Ele segue Freud, que escreveu o supereu solidário à pulsão de morte, como empuxo fundamental do sujeito.

Gênese do supereu

Sob o aspecto da identificação, o supereu é uma tentativa de resposta de como se pode civilizar a pulsão de morte. Como a agressividade, nome da pulsão de morte em suas relações sociais, pode ser temperada.

Em termos políticos, o que vigora hoje é a autorização para matar, maltratar, segregar. O que vigora é o ódio pela diferença sintomática dos sujeitos, que se manifesta num excesso de gozo sem sentido, porque o que está em jogo é a força destrutiva da pulsão de morte. O efeito desse excesso de gozo, produzido por essa identificação, é mortífero. Aquilo de que o sujeito tenta se defender portando uma arma, por exemplo, faz com que, no momento seguinte, ele seja o baleado. A identificação não alcança esse ponto, porque para que uma identificação ao sintoma possa ser cernida será preciso um percurso de se desembaraçar do aspecto singular do gozo, num saber fazer aí. Não se trata, portanto, somente de ódio, pois sabemos que amor e ódio estão do lado de Eros, sendo o seu oposto a pulsão de morte, como pontuou E. Laurent no texto de orientação do XII Congresso da AMP.

Sob o ângulo do gozo

Segundo Miller, “quanto mais renuncia ao gozo pulsional, mais exigente se torna o supereu. Isto quer dizer que o supereu não faz mais do que alimentar-se da satisfação pulsional, quer dizer a satisfação pulsional que se renuncia retorna exatamente como exigência do supereu”. Essa é a substância do supereu: está feita de gozo e de satisfação pulsional. Lacan sustenta que a ética da psicanálise está fundada sobre a noção de impasse do supereu. O supereu não leva a nenhuma outra coisa, além de exigir mais e mais.

Lacan destaca o conjunto do paradoxo que está em questão. O gozo é indistintamente libidinal e agressivo, e está ligado à operação de entrada no campo do Outro, mas também como resultado do que não é dócil à determinação da linguagem. Ou seja, resta sempre algo heterogêneo que nenhum vínculo social é capaz de reabsorver totalmente. Isto é, vontade de gozo desenfreada, esse modo desmedido, que destrói o sujeito e todo o resto em volta, produzindo as mais diversas formas de segregação, colocando em questão o ponto opaco do ódio ao seu próprio gozo2.

Para concluir, tentando encaminhar o que pode nos orientar

Um violento imperativo superegóico obsceno e feroz é um elemento que confronta a psicanálise e os analistas de um modo inédito. Este fato cria as condições para a realização de modalidades frequentes de racismo, representante de todas as formas de segregação. Como analistas, não estamos fora disso, não somos indiferentes ao momento atual, mas temos dificuldades. Só podemos falar em nome próprio, nome singular, não temos grupo, porque, justamente, não temos nenhum universal. A transmissão  dessa questão me parece ser muito difícil, mas essencial.

A face de uma vontade de gozo desmedida, destrutiva, sem objetivo, a não ser colocar a guerra, numa disputa sem limites, onde o campo de batalha transborda atingindo a vida e a natureza em vários âmbitos, tem sido nosso cotidiano. Para que a psicanálise continue tendo a chance de existir, será preciso retomar um campo onde a civilização não esteja tão ameaçada pela barbárie.

Nosso interesse no laço social atual não se aproxima da sociologia política — apesar de contribuir — para nossa elucidação, e sim para nos orientar na clínica. Me parece cada dia mais importante que possamos fazer uma oferta que nos permita receber uma demanda que tenha chance de dar acesso ao desejo. Como?

  1. A aposta no sintoma

Como um modo do inconsciente manifestar aquilo que é o singular de cada um, a aposta no sintoma deve continuar nos orientando. Lacan tomou a realidade psíquica de Freud como realidade discursiva, uma ordem, um modo que opera no real. A realidade psíquica se coloca como pura diferença de um ao outro, impossível de se coletivizar. A psicanálise não pode almejar, muito menos propor, uma reconciliação do sujeito com seus modos de gozo, essa é sua originalidade.

  1. A interpretação

O mal entendido que a linguagem permite pode fazer o sujeito entrar em um laço discursivo que faça barreira à pulsão de morte. A resposta da psicanálise é sempre antissegregativa, pelo avesso do universal e da dominação, possibilitando ao sujeito tomar uma distância das identificações de massa. O coletivo que interessa à  psicanálise não é comunitário, mas baseado na solidão de cada um, um coletivo paradoxal, não todo. Ele encontra suas bases em elementos descompletos, sem nenhuma pretensão de unidade. A experiência analítica tem um funcionamento em torno dos efeitos contingentes da interpretação que ressoa. Miller, no seu texto “Ponto de basta”, diz que a “interpretação analítica introduz o impossível e isso faz limite. E um significante que repercute, produz ondas”3.

  1. A transferência de trabalho

A transferência de trabalho proposta por Lacan não se dirige a um outro, a um sujeito suposto saber, como na experiência analítica, mas “aos outros… se dirige a todo mundo… aos novos por vir e também aos mortos, como a ciência, e é uma transferência que se dirige ao não saber”4. Lembrando Éric Laurent no último Encontro Brasileiro, onde ele diz que não há identificação possível para o analista, por isso ele retoma Lacan, dizendo que é uma identificação dessegregativa “porque inclui o exílio de toda representação”.

Esse lugar é marcado pela barra que recai sobre a função do outro S(Ⱥ). Não será esse o lugar possível para se interpretar o coletivo, produzindo efeitos de desidentificação?


1 Miller, J.-A. Los divinos detalles. Buenos Aires: Paidós, 2010.
2 Laurent, E. “Racismo 2.0”. Em: Opção Lacaniana, n. 67. São Paulo: Eólia, 2013.
3 Miller, J.-A. “Ponto de basta”. Em: Opção Lacaniana, n. 79. São Paulo: Eólia, 2018.
 4 Miller, J.-A. El Banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2005.

Comentário do Seminário de Orientação Lacaniana

Renata Martinez

Boa noite! Gostaria primeiro de agradecer ao conselho da seção Rio, em especial ao Rodrigo Lyra e a Paula Borsoi, pelo convite para estar aqui hoje e comentar os trabalhos deles contribuindo para levantar a discussão.

Antes de começar propriamente a trazer os pontos que me chamaram a atenção nos dois trabalhos gostaria de dizer de onde parti, qual a premissa básica, ou as premissas que me orientaram na leitura da lição e dos textos que recebi:

Vivemos uma crise do um. Isso nos disse Miquel Bassols na última segunda feira, quando esteve conosco. Não sei se vocês lembram, foi respondendo à Angela Bernardes sobre quais seriam os efeitos ou consequências da utilização da redução de 1 + a em relação a Campo Freudiano Ano Zero, Zadig e à política. Pesquei isso, digamos, como “um pequeno detalhe, o pequeníssimo, o que chama à ordem das coisas (p.11).” Por crise do um, entendi que aquilo que serve para unificar, fazer conjunto, identificar, está falho, capenga ou funcionando de uma maneira distinta hoje.

Essa maneira de enxergar as coisas me pareceu um complemento ao que trabalhamos com Marcus André Viera no seminário “A psicanálise do fim do mundo” sobre a crise da função do objeto a. Sua crise como causa e como resto.

Ao objeto a em crise, acrescentei então, a crise do um. Há um desarranjo generalizado.

Como pudemos seguir nos trabalhos do Rodrigo e da Paula, nessa lição XII do seminário “Os divinos detalhes” – e na anterior também –  Miller trata do tema da identificação e do gozo em relação ao Ideal. Fazendo um minucioso percurso pelo capítulo VII do Mal-estar na cultura de Freud e a gênese do Supereu, me parece que ele nos fornece algumas ferramentas para tratarmos as questões mais espinhosas do momento, enxergando de outro viés esse desarranjo a que me referi. O ponto alto da lição – expressão máxima do impasse, eu diria – e que gerou alguns dos encaminhamentos e discussões nos dois trabalhos é a hipótese do objeto a no lugar do Ideal ser a transcrição do supereu na atualidade.

Como vimos, Miller nos apresenta três versões da identificação que dão conta da passagem do sujeito ao coletivo. S1, pai da horda e a. (resuminho das três ou essa última sendo a expressão do supereu). No matema que nos mostra faz questão de dizer que elas não são excludentes e sim complementares.

Destaco duas perguntas da página 217: “Como pode ser que uma multidão faça um?” Como justificar o pertencimento de um sujeito ao um grupo?

As elaborações que vimos são tentativas de respostas a essas perguntas, não sem trazer à luz os problemas e impasses aí envolvidos.

A seguinte citação me parece conter um bom resumo da lição e do problema que Miller quer tratar:

“Quando se aborda a questão a partir do gozo, o gozo não é do Outro, mas a linguagem e o desejo sim, o são. Se partimos do sujeito no lugar do Outro é como se tivéssemos de entrada a resposta à pergunta sobre o fundamento do coletivo, o Outro aparece então como seu fundamento. Deste modo, o problema político não é simplesmente como se chega a falar a mesma língua que o Outro e sim, como o gozo passa ao Outro.” (p.216)

Vamos aos trabalhos:

Paula e Rodrigo concordam que o que está em jogo é a economia do gozo, um problema pulsional, mas, me parece, apresentam a questão de modos distintos.

Já no início de seu trabalho Paula se interessa e recorta o seguinte ponto “em que medida a exigência do dever se opõe às pulsões”. Esse é justamente um impasse ressaltado por Miller durante toda a lição e recortado por ele do texto freudiano. A Triebverzicht, renúncia à pulsão, trabalhada como estando na origem do supereu, reaparece recuperada na própria instância. Digamos que o problema é: aquilo que foi renunciado não desaparece, é recuperado. “Do mesmo lugar que se enuncia o dever, se acumula o gozo”.

Paula apresenta isso com a seguinte frase de Miller, já mostrando que o problema se espalha ao social: “o laço social é impensável se não há transferência de libido para o ideal. Não basta dizer que o laço social se fundamenta do sacrifício do gozo, há que se dizer para onde vai a mais- valia, que é no fundo um problema político”.

Segundo Paula, as perguntas que explicitam as dificuldades encontradas hoje e com as quais os analistas tem que se virar seriam:

Como consentir com a perda de gozo, apesar dos efeitos devastadores dessa acumulação. Como recusar a proposta do imperativo superegóigo: goza!?

Sabemos que os efeitos da acumulação de gozo são nocivos, mas vemos, não só na clínica como no social, todos indo sempre em direção ao mais. Concordo com a Paula e tendo a achar também que a questão esbarra na confusão ou “borramento”, como ela tratou, da dupla dimensão do objeto causa e mais-de- gozar. Entretanto, para além disso ou apesar disso, como ela bem nos mostrou, algo do gozo resta fora do discurso, resta sempre algo heterogêneo que nenhum vínculo social é capaz de reabsorver totalmente.

Ela lembra, com Miller, que não devemos nos fazer de surdos aos acontecimentos  que nos cercam. Vivemos um momento estranho no país e no mundo e as consequências clínicas são sentidas, pois o que se passa no social produz mudanças na subjetividade da época. E nós psicanalistas, precisamos estar à altura de responder a isso.

Como lidamos com esse excedente de gozo? Excedente que hoje mostra sua cara mais virulenta.

Num ponto do texto Paula pergunta “Como fazer ressoar esse real em jogo, para além da análise?” Entendo que ela esteja se perguntando de qual maneira tratar esse real, para o qual inventamos maneiras de tratamento nos nossos consultórios como analistas e como analisantes, fora desse âmbito?

Ela esboça alguns caminhos apontando que o coletivo que interessa à psicanálise não é comunitário, mas baseado na solidão de cada um. Paula não nomeou assim, mas entendi sua direção como uma aposta no desejo do analista como desejo de obter a diferença absoluta. Isso seria a resposta anti-segregativa da psicanálise? Como transpô-la ao social para além da Escola entendida como uma formação coletiva que não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas pelo contrário, se funda nela, a manifesta, a revela.

  • manifestação da relação com um impossível

Rodrigo questiona o que chamou de “tendência do nosso meio a equivaler o supereu à lógica contemporânea” pelo imperativo de gozo. Segundo ele, a maneira com que Miller nos apresenta os impasses oriundos da gênese do supereu, contestaria essa tendência.

Gosto da maneira sempre viva e contundente do Rodrigo apresentar suas argumentações. Como eu me enquadro como “tendo essa tendência”, fiquei intrigada. Obviamente, que ela tem fundamentos e imagino que ele concorde.

Explico, talvez repetindo um pouco o que a Paula trouxe:

Alguns anos depois desse seminário, proferido em 89, Miller tem uma espécie de epifania que nomeia “Uma fantasia”, sua fantasia seria equivaler o discurso da civilização hipermoderna à estrutura do discurso do analista. Tentando dar conta da ideia dos “sujeitos desbussolados” contemporâneos, Miller faz um trajeto incrível desde a invenção da psicanálise no esteio da moral civilizada às mudanças sofridas em ambas.

Segundo sua conhecida articulação, o objeto a, elevado ao Zênite social, seria a bússola da civilização de hoje. O objeto pequeno a e os demais elementos que compõe a estrutura do discurso estariam dispersos na cultura causando os mais variados efeitos.

Um pequeno recorte de quase qualquer acontecimento recente faz valer a descrição de Miller desse funcionamento: “o mais-de-gozar comanda, o sujeito trabalha, as identificações caem substituídas pela avaliação homogênea das capacidades, enquanto o saber se ativa em mentir como em progredir, sem dúvida”.

Esse resumo da lógica de funcionamento contemporânea apresentada em Uma fantasia, me parece bem de acordo como o que Miller propõe nessa lição 12 de Divinos Detalhes. Entretanto, apesar de concordar com isso, segui tentando pescar o que Rodrigo nos trouxe.

Queria reforçar a ideia destacada por ele de que há um problema pulsional no seio da civilização e que não se resolve com as identificações. É justamente essa a questão onde repousa o desarranjo e o problema central tradado por Miller ao longo dessa lição e, se posso arriscar dizer aqui, ao longo de inúmeras lições de seus seminários que se seguiram à morte de Lacan.

O que o Rodrigo questiona é que “a partir do desenvolvimento de Miller nessa lição 12, não parece exato equiparar a lógica superegóica ao forçamento ao consumo empreendido pelo capitalismo”. Mas, porquê? Onde estaria a inexatidão propriamente dita?

Se entendi bem, lançando mão da ideia da ética da psicanálise como a aposta na ruptura do circuito de renúncia, Rodrigo problematiza a ideia do acento crítico posto no imperativo de gozo da contemporaneidade, uma vez que este estaria em consonância com essa ética. É isso Rodrigo? Logo em seguida você diz que obviamente não se trata de fazer da psicanálise a emissão de uma ordem de gozo. Concordamos com isso, mas qual seria então, a solução?  Ou a direção?

A questão forte que você destaca – e que a Paula também aponta – é a impossibilidade da evitação da “satisfação pulsional como tal”. Sendo assim, qual tratamento a psicanálise oferece a esse gozo já que ele estará sempre aí? Nas análises levadas a termo, temos tido demonstrações muito potentes de como cada um se vira com isso. Inclusive testemunhos como o de Sandra Gronstein, por exemplo, que demonstram a mudança de relação do sujeito com o próprio supereu.

Mas e quando falamos do social?

Utilizando-se de uma formulação de Lacan no final do Seminário XI sobre o que chamou de fascinação coletiva como a conjunção de I e a, você tenta uma resposta diferente ao caráter superegóico da época.

Se consegui entender sua elaboração, você diz que há uma sujeição, eventualmente em massa, a um ponto tornado inquestionável. Desde esse ponto de Ideal viriam nomes, interpretações e sentidos do mundo tomados a ferro e fogo pelos sujeitos fascinados.

A questão da economia pulsional problemática não se solucionaria  por um “mais” ou “menos”, uma vez que a satisfação pulsional não tem contrário (como parece ser a aposta da Paula quando pergunta: como consentir com a perda de gozo) e sim – arrisco dizer – por uma mudança no regime de gozo.

Nesse caso apontado por você, um desenlace no campo civilizatório entre gozo e lei e no campo do sujeito entre gozo e fantasia. Se sua hipótese procede, resta saber como…

Adoraria poder te ouvir mais a esse respeito

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O que é o amor?

Ondina Machado
Seminário de Orientação Lacaniana – 07/10/2019

Na lição “Desejo, amor e pulsão”, do Curso Los divinos Detalles[1], Jacques-Alain Miller está em meio a um trabalho de releitura das três “Contribuições à psicologia do amor” de Freud sob a perspectiva da teoria do gozo de Lacan.

Só para lembrar, os textos de Freud que compõem essas “Contribuições” são: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” de 1910, “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” de 1912 e o “Tabu da virgindade” de 1917. Na lição de seu curso, Jacques-Alain Miller vai examinar mais detidamente o que, nas duas primeiras “Contribuições”, condicionam a chamada “escolha” do objeto amoroso mostrando que nessas condições já podemos ler as condições de gozo.

O amor é um tema inescapável na psicanálise; em tudo que diz respeito a ele pisa-se em terreno pantanoso. Quase todos os conceitos psicanalíticos são convocados para falar do amor: o narcisismo, o Édipo, o desejo, o gozo, a pulsão, a não relação sexual, o objeto, o Outro, os afetos, a transferência. A lista é grande. Vou me ater apenas a alguns pontos que achei interessantes nessa aula do Miller. Sei que vou decepcionar os românticos e desagradar os desiludidos. Não tem jeito, o amor leva sempre a um certo fracasso, pois há nele um irrealizável.

Achei que para falar de amor seria prudente fazer algumas distinções. Vou apresenta-las em duplas, não necessariamente correspondentes. Elas me ajudaram a não me deixar enredar de todo por ele, só um pouquinho.

Assim temos:

prazer    //    satisfação

desejo    //    gozo

Amor    //      pulsão

i(a)        //        ‘a’

Então vejamos:

Pensei em dois eixos sob os quais o amor corre.

O do lado esquerdo pode ser chamado de eixo da “relação sexual”, ou eixo romântico. Neles coloquei os conceitos que sustentam a ilusão de completude. Também poderíamos chamá-lo de eixo Fabio Junior – ” As metades da laranja, Sonho lindo de viver, Tô morrendo de vontade de você!”

Nele estão o prazer a ser obtido na relação, o desejo a ser satisfeito, o amor como sonho de harmonia, de completude e o outrinho como objeto amoroso, a minha imagem ideal projetada – amo em ti aquilo que penso ser ou o que me falta para ser quem penso que sou.

O lado direito seria o eixo da “não relação”, da não proporção entre o meu amor e o seu, do desejo como falta. Assim, a satisfação aparece fora do circuito prazer-desprazer, o gozo está presente até no sofrimento, a pulsão é um eterno retorno, puro circuito em torno do objeto chamado ‘a’ porque indeterminado e, por ser indeterminado, pode ser qualquer um desde que cumpra funções determinadas, os “divinos detalhes”.

O jogo amoroso corre entre os dois eixos, ora como harmonia – “Ah! É ele!”, e ora como desalento – “Tenho o dedo podre”.

Na perspectiva romântica o prazer é harmonia, é a homeostase que o desejo vem desestabilizar porque o desejo é desejo de desejo. O objeto de desejo é substituível já que todos são substitutos da mãe. O amor é lindo porque supõe a existência da relação sexual. Porém, essa relação se dá no engano, tendo em vista que busco no outrinho o que não sou mas penso ser, ou busco nele meu complemento.

Já pela perspectiva da “não relação”, a satisfação não dá prazer. Nela o gozo é evitado e sempre buscado, ele sim é fixo, não há substituto. A pulsão é de morte e o objeto ‘a’ de objeto não tem nada, é um oco a ser contornado.

É a partir do embate entre esses dois eixos que falarei do amor.

O amor de Freud a Lacan:

A escolha de objeto no amor está, já em Freud, enredada na fantasia como resultado do complexo de Édipo. Dele resulta um objeto com o qual me identifico e que me direcionará ao objeto a ser amado. Esse movimento determina a escolha do objeto sexual, mas não só, pois não basta ter como objeto uma mulher ou um homem, tem que ser um certo tipo de mulher o de homem que ocupe um lugar determinado no jogo amoroso.

Se estabelecem assim “as condições necessárias ao amor, cuja combinação é ininteligível, e até desconcertante”[2]. Freud observa que essas característica se repetem em todos os objetos eleitos, durante toda a vida, e exigem do sujeito um “enorme dispêndio de energia mental”[3]. Trata-se, segundo Freud, de uma busca infindável, já que ao buscar um traço da mãe nas outras mulheres, não se encontra a mãe, só o traço. Está aí a “natureza compulsiva” que faz o sujeito buscar as mesmas características em diferentes objetos, ou seja, “os objetos amorosos podem substituir uns ao outros, tão amiúde, que se forma uma extensa série dos mesmos”[4]. A série denota que, por mais extensa que seja, a satisfação desejada não é alcançada.

De Freud, Lacan destaca que o amor entra no circuito do desejo e do gozo através de um certo modelo inconsciente e repetitivo presente no tipo de objeto a ser amado. Desse modo, a escolha tem menos a ver com o objeto (não é o objeto que me faz ama-lo) e mais com uma certa grade de supostos predicados que me direcionam à uma escolha forçada. Assim, vemos que nessa escolha nada há a ser escolhido, pois está ligada à precondições estabelecidas (divinos detalhes) e imposta ao sujeito. O que Freud observou foi um circuito inconsciente, indo do desejo ao gozo, que estabelece um certo caminho a ser percorrido, ignorado pelo sujeito, que faz dele refém quanto ao objeto a ser “escolhido”.

Porém, Lacan observa que nessa escolha há um elemento que descentra a relação entre amante e amado. Por isso Miller diz que, quanto ao amor, Freud é muito lacaniano na medida em que localiza nessa relação a incidência do Outro. A escolha, então, se daria numa Outra cena com a concorrência de um Outro que impede que a relação se estabeleça tão somente no eixo imaginário. Nesse sentido, Miller vai dar ênfase ao losango do fantasma à intermediando a relação do sujeito/eu com o outrinho. Por que ele faz isso? Primeiro porque não há relação direta entre o eu e o outro sem que algo da imagem compareça: imagem de si projetada no outro. A imagem tem como função velar a castração, e nesse velamento, seduzir. Nada no amor se dá sem o semblante, fazendo, muitas vezes, com que o jogo amoroso seja comparável a uma comédia. Segundo, porque o que parece ser uma escolha está irremediavelmente amarrada pela fantasia, pouco se escolhe no amor. A fantasia demarca condições que fazem com que seja um e não qualquer um o escolhido.

Quando Lacan destaca os dois tipos de escolha assinaladas por Freud, a narcísica e a anaclítica, ele as trabalha como modos de relação do sujeito com o outro semelhante levando em conta essa Outra cena. Miller usa o m de moi para designar o sujeito/eu e o i(a) para o outrinho, portanto, a imagem que construo do outrinho. Na forma narcísica se escolhe o semelhante como uma imagem ideal de si, enquanto na anaclítica se escolhe aquele que irá completa-lo. Ambas irremediavelmente determinadas pela fantasia.

A forma narcísica corresponde a uma pantomima, um teatro gestual de tipo cômico no qual o outro é uma superfície na qual deve aparece a imagem idealizada de si. m à i(a)

Recorte da clínica: uma jovem conhece um homem maduro no Tinder. Ele diz que, na sua idade, não pode mais errar. Para adiantar, manda para ela uma espécie de questionário com perguntas do tipo: Gosta de cozinhar? De lavar louça? Quer ter filhos? Ganha mais de 2.000 reais? Sabe dirigir? Se ficar sem dinheiro o que faz: pede emprestado ou corta a academia? Ele sabe o que quer, mas não quer o que diz querer, o seu i(a). Ela responde “não” a todas as perguntas: “só de raiva”, confessa. Mesmo assim ele insiste em conhece-la. Não à toa Jacques-Alain Miller diz que todo amor tem o modelo histérico. A posição amorosa é feminizante porque guarda o lugar do objeto, é “como objeto que você se propõe ao amor”. O romance não foi avante, pois sabemos o quanto essas exigências são feitas para decepcionar, justamente porque ao decepcionar, satisfazem.

A forma anaclítica funciona como um roteiro, como o argumento de um filme exibido na tela dos devaneios. O sujeito sonha com o parceiro ideal que irá complementá-lo. m à i(a) / $ àa. Aqui vemos sobrepor-se as duas dimensões do fantasia, a imaginária e a simbólica.

Recorte da clínica: uma mulher, muito crítica em relação aos homens, diz que eles se dividem entre idiotas e canalhas. Falando sobre a decepção que teve com o atual ficante, arremata: “ele é tão idiota que não tem perigo, para ele posso abrir a porta”. Ela deixa entrar os idiotas achando que com isso se protege dos canalhas. Nem idiotas nem canalhas, ela confessa querer um homem que cuide dela, mas sua estratégia a faz viver esse amor somente em seus sonhos.

O que se realiza no amor levando em conta que ele não existe fora da montagem fantasmática?

Gozo, prazer e satisfação:

Jacques-Alain Miller lembra da definição que deu do gozo lacaniano: uma fórmula composta pelos conceitos freudianos de libido + pulsão de morte. Segundo ele, é assim que Lacan opera a unificação dos dois conceitos através do termo gozo. O gozo serviria, então, à duas satisfações: a da libido e a da pulsão de morte. Ao incluir a pulsão de morte no gozo entende-se porque Lacan argumenta pela primazia do masoquismo sobre o sadismo, pois, segundo ele, quem primeiro sofre é o sujeito, não o outro, e conclui que a libido é também pulsão de morte. Essa definição da libido justifica o fundo masoquista do gozo. É também por isso que Lacan vai dizer que o gozo é sempre do corpo próprio, ou seja, ninguém goza com um corpo que não seja o seu.

Podemos aqui retomar os dois recortes que apresentei. Em ambos, o desejo enunciado não é alcançado, porém, uma satisfação é obtida. No caso do homem do questionário, o tempo que ele não tem a perder faz com que gaste a vida na procura do que diz querer. Porém, se encanta com aquela que diz não aos seus anseios mas satisfaz seu gozo auto-erótico. No caso da mulher desiludida entre idiotas e canalhas, podemos deduzir que sua busca por completude, calcada na imagem de um pai ideal, faz com que nenhum homem tenha chance com ela. Como boa histérica ela denuncia a falácia do falo e com isso se impõe um gozo que se apresenta como insatisfação.

Pela fórmula de Miller para o gozo – satisfação da libido pela pulsão de morte – temos um problema: se o gozo satisfaz, isso não seria o bastante?

Não, o gozo não satisfaz porque ele não se reconhece como tal[5]. O gozo é paradoxal: ele é satisfação, todavia sabe se si como sofrimento. O gozo é evitado porque é impossível viver o gozo, seria se entregar de todo à pulsão de morte. O gozo possível vem aos pedacinhos, nunca é todo.

Temos aí não só o tal fundo masoquista do gozo como também o sentimento de alteridade que o sujeito experimenta em relação ao seu próprio gozo.

Costumamos tomar o texto “Além do Princípio Prazer” como referência para falar de gozo, porém, cabe esclarecer, que o “além” do princípio do prazer não é tratado por Lacan como algo que se deduz de uma temporalidade. Não se trata do “depois” do prazer porque depois do princípio do prazer, para Freud, vem a realidade. O “além” do qual Lacan se vale, que também pode ser lido em Freud, é um além em relação ao binário prazer-desprazer, é o lust freudiano, que tanto pode ser traduzido por prazer como por gozo. É por esse modo de entendimento do “além” que Lacan vai falar de gozo. O gozo em Lacan pode ser satisfação desde que se entenda que é uma satisfação que está além do prazer mas “enlaçada” com ele de alguma forma, como aponta Miller no curso Causa y consentimento[6].

No amor, então, o sonho com o parceiro ideal vai se deparar com o parceiro sintomático, com aquele que nos seduz mais pelo que não tem e por isso pode encarnar nossa falta, condição fundamental ao amor, “dar o que não se tem”, segundo Lacan.

Essa condição se expressa ao recortar no amado um traço que evidencia um ponto de ignorância em nós mesmos a nosso próprio respeito – “Eu te amo, mas, inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo”[7]. Essa frase se constrói na gramática pulsional do “amar–se amando”. Assim o traço, condição do amor, é condição de gozo. Ele não é objeto do desejo, mas antes, é causa de desejo. A causa é desconhecida porque do objeto ‘a’ só temos sua função, a necessidade estrutural.

Amor, desejo e gozo:

Parto da máxima freudiana de que quando se ama, não se deseja e que quando se deseja, não se ama[8]. A incompatibilidade do desejo com o amor tem em Freud o argumento da divisão experimentada pelos homens entre o sagrado e o profano, entre a mãe e a puta. Heloisa Caldas nos falou sobre isso no Seminário de Orientação Lacaniana passado. Segundo Freud, essa seria uma estratégia masculina que, curiosamente, aparece cada vez com mais frequência também nas mulheres. A mulher de quem falei acima escolheu para primeiro marido alguém que fosse um bom pai, para ela e para seus filhos. Ela diz que depois que viu ter conseguido o que queria, se separou. Buscou a análise exatamente com a demanda de querer saber “o que quer para si”, pois para seus filhos “já encontrou”.

O amor é uma modalidade da fantasia, um efeito de significação dessa fantasia, diz Miller. A significação pode vir pela via narcísica ou pela via anaclítica, desde que nela o objeto ‘a’ esteja oculto, velado. Nesse sentido o amor é uma defesa contra o gozo – onde amo não gozo, onde gozo não amo.

Nesse aspecto, a função do amor tem suma importância na articulação possível entre gozo e desejo como mostra a famosa frase “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”[9]. Se o gozo é sempre auto-erótico, é necessário que algo dele se perca para que uma falta advenha e o sujeito precise se dirigir ao Outro sob a forma de uma demanda. Sem falta não há desejo pois o desejo implica a castração, o que quer dizer que a ação do significante sobre o corpo circunscreve limites ao gozo, suas condições. No Seminário da angústia Lacan esclarece que o amor é sublimação, é dignificar o objeto parcial, fazer dele a Coisa[10]. Nesse sentido o amor ama por engano, serve como véu – i(a) – que encobre minha falta, mas permite algum acesso ao gozo pelo objeto mais-de-gozar.

Pela via do simbólico o amor precisa de certos traços, pelo imaginário precisa de uma imagem que vele a falta de objeto e pelo real ele assegura um pedaço de gozo, que satisfaz mas embaraça.

Na busca pelo amor o que se encontra são seus próprios restos fantasmáticos. Se soubermos lidar com isso, bem, aí é para cair de boca.


[1] Miller, J.-A. Los divinos detalles. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 143-162.
[2] Freud, S. “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (Contribuições à psicologia do amor I). Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. XI, p. 150.
[3] Freud, S. Ibid., p. 151.
[4] Freud, S. Ibid..
[5] Miller, J.-A. Ibid., p. 147.
[6] Miller, J.-A. Causa y consentimiento. Buenos Aires: Paidós, 2019, p. 349.
[7] Lacan, J. O seminário, livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979, p. 254.
[8] Freud, S. “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (Contribuições à psicologia do amor II). Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. XI, p. 166.
[9] Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 197.
[10] Id., p. 197-199.
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LIÇÃO V “EL TABU DE UN GOCE” DO CURSO DE

JACQUES-ALAIN MILLER LOS DIVINOS DETALLES.
Apresentação de Heloisa Caldas
Seminário de Orientação Lacaniana de 02/09

Miller no curso sobre Os divinos detalhes (1989) parte dos textos de Freud intitulados como Contribuições à psicologia do amor[1]. E sua chave de leitura é o escrito de Lacan A significação do Falo.

Foi uma época fecunda para a transmissão de Miller. Ele deu conferências sobre o tema que foram compiladas em uma coletânea argentina chamada de Logicas de la vida amorosa (Manantial) e que depois apareceram traduzidas em português em Opção Lacaniana online n. 2.

As conferências não coincidem exatamente com as aulas do curso. No entanto, veiculam seu trabalho sobre o tema naquele ano, guardando diferenças apenas na arrumação dos pontos.

Nas duas primeiras contribuições de Freud mencionadas, ele aponta ao campo do sagrado – interditado e amado, digamos assim – que equivale à mãe, e o campo profanado e degradado, pelo exercício sexual, descrito pelo termo freudiano Dirne.

Freud aponta primeiramente a uma particularidade na escolha feita por alguns homens de uma mulher caída, antigamente se dizia assim, para elevá-la ao campo de uma mulher de respeito; trata-se de um particular que obedece à tendência universal de degradação da mulher na vida sexual.

Chama atenção o intervalo entre as duas primeiras e a terceira conferência  e acho que vale assinalar que, entre elas, Freud escreveu Totem e tabu (1913). Texto com o qual trabalha o campo de legitimidade que regula o acesso às mulheres – que deixam de ser “privilégio” de um único homem –, e as relações de troca e posse pela instauração do tabu do incesto. Miller assinala que na terceira conferência, O tabu da virgindade, Freud desloca a questão para o acesso ao gozo como tal,  situando o impasse mais em torno do complexo de castração do que do Complexo de Édipo como nas contribuições anteriores.

Miller nos afirma que se trata do tabu de um gozo e que a Mulher é tabu.  É possível fazer uma leitura desse texto destacando a virgindade como um valor. Na cultura se exige que aquele que quiser ter uma virgem obtenha de alguma forma uma autorização para isso. Esse é o caminho do desejo. Mas Miller não fala tanto disso aqui. Ele destaca mais o acesso ao inominável, digamos assim, que ele vem a chamar de héteros, apontando que há sempre dificuldade de ter acesso a uma mulher porque ela é héteros. E há também seu reverso: a dificuldade das mulheres de suportar o homem. Essa dificuldade parece diminuir no segundo casamento, diz Freud, no entanto o mais relevante do texto é que se acercar de uma mulher implica sempre um risco que se deve à diferença que inexoravelmente não se apaga entre o significante e o gozo. Miller coloca o significante do lado do Mesmo e a alteridade do lado do héteros. Isso vale para homens e mulheres pois para elas também há um héteros (são Outras para si mesmas).

É importante distinguir aqui duas acepções de Outro. O Outro da lei, da cultura, da subjetividade coletiva que subsidia formas fálicas de gozo e o Outro do gozo que escapa ao regime fálico. Daí Miller comentar que reivindicação de igualdade na parceria apaga a diferença sexual e ameaça o casamento contemporâneo. Há uma dimensão do feminino que sustenta a reinvindicação do Mesmo e, em termos de cidadania, isso é necessário. Ele sublinha, no entanto, que, sem refutar isso, quando o movimento feminista ganhou força nos anos 70, Lacan deu seu seminário Mais, Ainda para lembrar que mulher é alteridade, sustentando a diferença sexual em um plano psicanalítico que até hoje nos intriga. Ou seja, Lacan ressitua a diferença não mais em termos de valor relativo mas de valor absoluto.  Uma diferença entre o gozo fálico, que se pode falar e o Outro gozo escapa às palavras e aos sentidos.  E é por escapar que pode ser criativo, mas também ameaçador. Por outro lado, no campo fálico tem sido proveitoso que aqueles, em posição de minoria política, possam tomar a palavra para garantir seus direitos humanos, inclusive causados pelo que de seus gozos resta héteros. Isso, no entanto, não alcança apagar a diferença sexual.

Não se trata mais da diferença anatômica ainda que seja compreensível que Freud tenha começado por aí. Trata-se de uma diferença lógica. Com uma rede significante se pode identificar. Mas o gozo escapa à rede. Logo ali onde os significantes apontam ao conhecido pode-se jogar com “o mesmo”, permitindo as identificações: do outro lado há um furo no saber.

Assim não se trata de que o homem é Outro para a mulher e a mulher é Outra para o homem. Essa  recíproca não é verdadeira. Miller destaca muito isso. Uma mulher é sempre alteridade, até para si mesma, no sentido em que mulher e gozo se aproximam. Talvez por isso, ressalta Miller, as mulheres passam tanto tempo diante do espelho a se buscar.

Voltando ao tabu no acesso ao gozo, Miller comenta os conselhos dados aos homens, por Freud  e por Lacan, para ter acesso ao erótico.

Freud aconselhava aos homens serem o segundo marido. Lacan  comentava que os homens podiam abrir uma via através dos circuitos da linguagem, da conversa de sedução, dos rodeios. Uma conversa que gira em torno de um vazio, ou de um furo: conversa vai, conversa vem, pelos lados, sem que se vá diretamente ao ponto. Mas que as mulheres, por vezes, relatam que preferem os que tenha uma boa ‘pegada’ – diríamos em gíria atual brasileira – talvez aquele que vai ao ponto sem muitos rodeios. No curso, Miller usa o termo sem ‘ambages’.  Ou seja, os rodeios podem favorecer a inibição.

E o que poderia facilitar ultrapassar a fronteira?

É sobre isso que Miller destaca o conselho de Lacan, mais complexo, e às mulheres, explicando que os homens sem muito rodeios, não são tão perturbados pela castração, em especial se a castração se apresenta disfarçada por um postiço. Um postiço não visa negar a existência da castração, mas evocá-la. Ou seja, fazer de conta que tem aquilo que não tem acende o tesão dos homens. A operação é contrária a do travesti que quer fazer de conta, convincentemente, que não tem aquilo que tem.

Podemos associar essa operação de denegação exercida pelas mulheres com um  portiço, digamos assim, à forma em que a encontramos o objeto na Arte cuja mostração não obtura o fundo de vazio sobre o qual repousa em sua figuração, digamos assim.

Estas são as maneiras, as formas de fazer (façons), elencadas por Miller que não produzem um apagamento (effacément) da alteridade.

Sabemos, no entanto, que se funcionam para virilizar, esses jogos não impedem a experiência inexorável da insatisfação pulsional – a não relação sexual – promovendo o reviramento do amor em ódio e a consequente degradação da mulher, inclusive pelo sujeito que habita um corpo de mulher, uma vez que ela, também se experimenta héteros para si mesma e, com frequência, degrada isso em si e nas outras. Não é nem um pouco garantido que as mulheres se tenham em alta conta. Elas são em geral bem hostis umas às outras. As parcerias mães e filhas também não escapam desse mal-estar.

Mas atualmente tudo se complica porque assistimos aos efeitos do declínio dos significantes mestres da cultura e a instauração de certas reviravoltas. Reviravoltas que trazem muitos benefícios em relação ao insuportável da cultura machista.

Mas nehuma revolução é simples. Costuma trazer o germe contra o qual se opõe. Assim,  em relação ao Outro cultural, o significante das mulheres passou a ser empoderamento. Empoderadas passa a ser um novo adjetiva fálico para uma mulher, somando-se a assim a outras figuras fálicas como a da mãe, da dona de casa, visando ampliar os horizontes do que pode enobrecer uma mulher: ser profissional, pensadora, produtora de cultura, além de combater a degradação clássica.

Mas, infelizmente, não recobre o campo do gozo do héteros. E este permanece enigma. Vejam, por exemplo, como a questão da propriedade do corpo passa atualmente por novos manejos. Como não há mais um Outro (pai) a quem se pedir a mão de ninguém (não que isso fosse bom, mas era o que regulava). Hoje temos uma regulação feminista que declara a propriedade da mulher sobre seu corpo: ‘meu corpo minhas regras’. Estamos ainda no campo do fálico.

E o héteros? O desregrado? Como pode ser acolhido?

Como pensar hoje o conselho de Lacan sobre o postiço que não nega mais evoca se, no caso  da mulher empoderada,  não se trata de velar a falta de saber sobre o gozo, ao contrário, de exibi-lo como perícia. Não se tem nada contra exibir a perícia, mas na parceria sexual essa exibição não convém se servir para esquecer, ou pior rechaçar, que há algo enigmático no sexo.

Haveria um repúdio ao feminino tanto na estratégia do empoderamento milenar dos homens, pois machismo é poder, quanto na reposta contemporânea das mulheres. Vale lembrar o apontamento de  Freud, em Análise terminável ou interminável, ao rochedo da castração e seu repudio por homens e mulheres. Com Lacan, esse ponto pode ser pensado como o impossível que detém os anseios de um saber todo, sem furo. Os empoderados querem um saber todo e não querem lidar com o furo no saber?

Parece ser a partir desse Todo que a guerra dos sexos vem culminando em feminicídio. O Todo leva aos polos extremo opostos que Agaben destaca no termo Sacer,  que tanto quer dizer sagrado como maldito. O feminicídio parece ser dessa ordem: uma investida destrutiva e radical de passagem ao ato, pela qual, em vez de acesso ao que é tabu (o sexo), temos um assassinato. E embora haja leis cada vez mais específicas para combater isso o número de casos só aumenta. Isso me levou a pensar em Totem e tabu pois traz uma lógica que Jésus destacou no último fórum sobre a Lei e a Violência no Rio. A implantação de uma lei é em si uma violência. E ele sublinha um aspecto que Freud tratou muito neste texto. Em Totem e Tabu trata-se de uma incorporação da lei.

Podemos pensar que as leis são herdeiras dos tabus, mas não o tabu em si. As leis possuem gênese, possuem uma explicação de como surgiram, quais grupos estavam interessados nessas leis e, nas democracias, podem ser modificadas; Já os tabus, não. Por serem incorporados, são marcas no corpo, indeléveis dessa lei relativa ao gozo. Não são tributárias de sentidos explicitados.

Penso que talvez muito do recrudescimento do feminicídio se deva ao fato de que considerar as mulheres como iguais não foi incorporado, digamos assim, como lei. Talvez venha a ser, e isso levará a problematizar de outra forma o heteros. Talvez leve gerações para vir a ser. Tomara que seja!

Então temos esse tipo de crime reagindo à força de uma lei que não foi incorporada, uma lei que pelo empoderamento da mulher, garantisse sua condição subjetiva de ‘igual’ ao homem. Pode ser que os atos de violência contra  mulheres apareçam, como vingança pela perda de um gozo que foi supostamente subtraído pela mal dita mulher. Com frequência, se dão porque uma mulher rompeu sua relação com aquele homem.

É possível pensar que o gozo Outro, que o feminicídio ataca,, esteja mais do lado do sujeito e o crime seja uma tentativa de extrair de si mesmo esse gozo, atribui-lo à ex-parceira, quando pela perda dela o homem se feminizou. Miller aponta, nessa lição do curso, que ser enganado, traído, feminiza um homem (p.111).

Corrobora nessa direção, o fato de que a virilidade também sofre do declínio do Nome do Pai característico de nossa época. Se antes havia para os homens mais apoio às identificações de masculinidade no Outro cultural, através de lugares que lhe foram secularmente favorecidos, hoje em dia, a mulher disputa com o homem este campo e o faz, vemos isso todos os dias, de forma bastante habilidosa.

O que resta para identificar o homem quando ele não é mais o detentor do saber, o profissional competente, o provedor, a autoridade familiar? Resta a identificação de sua virilidade no corpo. Infelizmente um apoio mais difícil para defini-lo no lugar do Mesmo, tão da ordem do significante, porque o órgão pertence mais ao corpo do que ao sujeito e opera a partir da vacilação.

Então, se no ato do crime o sujeito se apaga e se confunde com o objeto, poderíamos pensar que o autor do feminicídio é movido por um gozo infamiliar em si mesmo, diante do qual o Eu se horroriza, e o sujeito se apaga levando à certeza de matar alguém para exorcizá-lo?

[1] Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (1910); Uma tendência universal à depreciação no amor (1912); O tabu da virgindade (1918).
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O Tabu de um Gozo

Angela Batista

Quando nos referimos as” Contribuições a psicologia do amor” em Freud destacamos: 1 – Sobre um tipo particular de escolha de objeto no homem (1910); 2- Sobre a depreciação da vida erótica (1912); 3- O Tabu da Virgindade (1918) [1917]).

De que trata então as Contribuições a psicologia do amor em Freud? Das questões que concernem a todos nos.  Podemos afirmar que a vida amorosa freudiana é o lugar dos impasses e do mal-entendido entre os sexos de como se relacionam e se escolhem uns aos outros. É o tema da escolha de objeto. Freud introduz na problemática da vida amorosa o complexo de castração onde destaca o princípio da depreciação do homem pela mulher e a hostilidade da mulher para com o homem.

Nessas contribuições a psicologia do amor vemos o que determina o percurso do sujeito em direção ao Outro, na perspectiva do amor, do desejo e do gozo. Escolhi trabalhar a terceira contribuição “O Tabu da virgindade”. A partir de uma frase que me pareceu preciosa; “a libido freudiana tem a cor de um vazio”[i]. Vazio que coloca no centro do amor o objeto pequeno a.  Miller em seu simpósio sobre o amor, fala que essas contribuições são contribuições à doutrina do gozo.

Nessa terceira conferência, Freud se pergunta sobre o acesso ao gozo, destacando o complexo de castração e de seus impasses. A não complementariedade entre os sexos, indica diferentes formas de amar. O objeto de amor para um homem toma a forma fetichista em sua condição de objeto a. O homem reveste a mulher como o falo para apagar o horror da castração e para deseja-la. O gozo feminino se situa do lado do amor, na valorização pelas mulheres do amor em relação ao desejo.

Do deslocamento da mãe a mulher; o que se coloca nessa terceira conferencia é que a mulher é um Tabu. O tabu da virgindade que com Lacan, se situa mais além das formulas da sexuação, no gozo, sempre outro.  Talvez puséssemos perguntar se o Tabu não seria apenas em relação à mulher, mas ao gozo feminino, ao Outro gozo. Em todas as culturas há uma forma de regular o gozo, que no caso da mulher seria uma pressa em inscrever o gozo fálico para tratar o ilimitado desse Outro gozo, do qual elas nada falam.  Esse Outro gozo não está referido ao objeto, sequer ao gozo fálico, mas a S (A) barrado, impossível de simbolizar. Essa definição vai além das posições sexuadas, que não deixam de ser identificações, que não anulam as formulas da sexuação, mas que mostram um gozo ilimitado, devastador.

As condições do amor se apresentam a partir de uma renúncia pulsional onde algo do impossível se manifesta nas parcerias amorosas.  Nesse sentido o caminho de Freud chega ao Tabu, que é da ordem do não tocar, não ir além, chegando a mulher como Tabu, dado que a mulher é do pai. Freud assim parte das condições do amor e chega ao Tabu, ao tabu de um gozo. A mulher é tabu porque é difícil seu acesso aos homens. Assim como as mulheres de outra forma não suportam também os homens. Lembrando Freud, a única esperança está no segundo matrimonio. Nesse sentido há um tabu generalizado a mulher. A mulher é outra não semelhante, inclusive para si mesma, representando o lugar de “Heteros” o Outro absoluto em sua radical alteridade. Não seria esse o segredo das regras para o amor? Manter o enigma que a mulher encarna para sustentar um laço possível entre os sexos?

Nessas três contribuições Freud fala de substituições e de metáforas e metonímias do objeto de amor.  Da mãe enquanto proibida ao gozo impossível. Por isso Lacan pode dizer no Seminário sobre a ética, que das ding, o gozo primário é a mãe. No amor freudiano só há substitutos. Nada de amável, diz Miller.  A eleição introduz o objeto da satisfação enquanto perdido.  No nível do gozo como tal há a Coisa, das ding.  Se há escolha de objeto, não há relação sexual e os divinos detalhes apontam para castração, para a mulher como tabu, fazendo da sua alteridade o princípio da degradação. Cito dois exemplos que revelam os impasses do amor, do desejo e do gozo na vida amorosa de dois personagens.

Manon Lescault é o romance citado por Miller, contado pelo abade Prévost, para falar da de como o amor feminiza na figura da mulher desleal, que encarna a mulher do desejo ( a puta)    aquela mulher sempre do Outro. Manon  e seu  seu parceiro Des Grieux é uma história de amor do tipo romance rosa. A desleal Manon signo da mulher indigna, e Des Grieux representa o pato, o enganado. O amor pela diabólica que pertence a Outros. Manon revela algo de diabólico e incivilizado quando interrogamos o  “que quer uma mulher, senão gozar do amor?

A princesa de Clèves, e também uma citação no curso de Miller sobre Os Divinos detalhes. Ao se apaixonar pelo Sr. de Nemours tem depois de muitos rodeios marca um encontro com ele e ela lhe revela sua paixão.   Por causa disso, ela diz que será o primeiro e último encontro deles. Ele fica atônito e diz: Mas você me distinguiu dos outros homens. Justamente, ela lhe responde. Esse é o obstáculo. Se eu o distingui isso pode acontecer a uma outra mulher. E se isso acontece, eu serei infeliz. Ele lhe fala de sua paixão.  Ela retruca dizendo que a paixão não dura. Ela recusa conhecer a infelicidade do ciúme. Entre suas razoes para renunciar revela a principal: Por vaidade ou por gosto, todas as mulheres lhe desejam. Outras mulheres o amarão. Você me deixara.  Os homens são inconstantes e infiéis. O único homem que teria sido fiel a mim, é o Sr. de Clèves que tinha uma única razão para isso- eu não o amava. E encerra a conversa.  Assim ela prefere se exilar do amor, onde será uma única absoluta para seu amante, uma a menos para sempre[ii].

Lacan, explicita essa impossibilidade no seminário livro 18: “de um discurso que não fosse semblante” onde mostra a conjunção e disjunção entre o gozo e o semblante. O Semblante é o falo como o significante da diferença sexual.  O homem e a mulher se encontram na interseção entre dois gozos, que mostram o desencontro estrutural.  Sendo assim a terceira contribuição de Freud revela o segredo das condições de amor. Os atrativos femininos dependem de um véu, em relação ao não ter, que se torna desejo. Essas condições do amor são diversas formas de diminuir a alteridade da mulher sem faze-la desaparecer. A erótica lacaniana seria a do homem sem rodeios (ambages), um homem que não temeria a mulher, ou que a mulher não fosse um tabu. O homem sem rodeios, seria aquele capaz de fazer parceria com a mulher como Outro. Lacan inventou um real próprio á psicanalise. Um real que se alcança através da contingencia do amor. Essa contingencia demonstra a impossível harmonia do gozo que se encontrava velada pelos semblantes do amor. 1

Trago para discussão a questão sobre as condições do amor na atualidade, onde a mulher enquanto Outro radical, se desloca do Tabu que possibilita a diferença e que permite o laço entre os sexos  para o  ódio, sem velamento da diferença,  através de actings e passagens ao ato,  a partir de uma diferença que precisa ser eliminada na nossa época do empuxo ao idêntico . Byung Chul Han[iii], o filosofo coreano, diz que O trauma é o sexual, mas que o violento é o idêntico. Laurent lembra de paradoxos do individualismo democrático de massa na autossuficiência do sujeito na atualidade no gozo que não faz laço.[iv]

Gostaria que discutíssemos a partir do texto de Miller o que pode regular o gozo das relações entre os sexos, na atualidade, pensando a solidão entre os sexos e os destinos da pulsão de morte, “ expulsão do Outro do amor” no apagamento da alteridade e de suas consequências, onde o Tabu a mulher se desloca para o ódio ilimitado  em detrimento  do enigma da” cor do vazio”, do Heteros do feminino.


[i] Miller, J Alain-“ Os divinos Detalhes – 1989- Grama Ed.  Lição V – “O tabu de um gozo”.
[ii]Naveau Pierre- Os Homens, as mulheres e os semblantes- Papers Congresso Semblantes e Sinthoma VII Congresso da AMP- Paris 2010
[iii] Byung Chul Han” A Expulsão do Outro”  Ed Vozes
[iv] Laurent Eric- El Traumatismo del final de la politica de las identidades-  XVI Jornadas DA ELP 2017 Boletim

Os divinos detalhes- Uma apresentação.

Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna
Seminário de Orientação Lacaniana de 05/08

Hoje depois de algumas semanas de ter apresentado no contexto do Seminário de Orientação Lacaniana os primeiros dois capítulos do curso de J.-A. Miller: Los Divinos Detalles[1], recupero aqui alguns aspectos que ficaram em minha memoria como mais relevantes. Sugiro aos leitores leiam os dois capítulos já que eles possuem uma ampla gama de elementos que não se encontram presentes neste texto

Sobre o titulo, algo da serie e do objeto

No primeiro capitulo do curso são abordados a escolha e fontes  do titulo e logo a seguir se realiza um traçado que apresenta a proposta de trabalho. A mesma visa circunscrever e dar ao tema do gozo  um justo lugar.

Assim são apresentados alguns termos retomados de um Freud Lacaniano: o prazer, a libido, a satisfação, que permitirão estudar as condições do amor e do desejo na escolha do parceiro.

A palavra detalhe incluída no titulo tem uma inspiração  Nobokoviana, autor que recomendava a seus alunos de literatura nos EEUU que acariciassem os detalhes.

Mas considero que a escolha do “detalhe” obedece fundamentalmente a sua raiz etimológica  que indica corte, termo tão caro à psicanalise desde a elaboração dos objetos parciais, separados do corpo, em torno dos quais se produz a satisfação pulsional,- seio, fezes, falo, olhar e voz- transformados pelo trabalho de J. Lacan em objeto pequeno a.

Cabe lembrar que o objeto pequeno a surge do encontro do vivo com a linguagem, operação que divide o vivo ao entrar na maquina significante,  gerando por um lado, um sujeito dividido entre os significantes e por outro, um objeto resto, indivisível, inassimilável ao significante.

A partir dessa elaboração lacaniana a psicanálise ganha um novo instrumento para  dar seu devido lugar ao detalhe, aquele que se repete, no qual habita algo do gozo fragmentado e fixado que denominamos de objeto a em suas diversas formas. Nesse sentido o dispositivo psicanalítico (associação-livre-interpretação) realiza sua operação, sempre apoiada no detalhe, lugar onde mora algo de uma satisfação que se reitera, satisfação que não fecha um circulo, e que sempre transborda gerando mal-estar.

A posição do analista desde Freud se apoia na tradição dos exegetas que interpretaram a bíblia, dando destaque aos detalhes que giram em torno do Um  e que emergem no relato sob transferência. Por esta razão, J. A Miller diz que poderíamos rebatizar o texto da “Interpretação dos sonhos” como O Talmud dos sonhos, ou A psicopatologia da vida cotidiana como O Talmud dos lapsos. E diz mais ainda que se há um espirito da psicanálise, ele se respira nos detalhes.

Mas na experiência analítica não se trata de prestar atenção a qualquer detalhe. O detalhe deve ter a qualidade ser divino. Como entender isso? Não é tão fácil. Em minha leitura entendo que esse divino alude ao lugar do resto, que se aloja no pedaço do corpo recoberto pela conexão com a castração (-j). Nessa articulação surge algo do divino que foi ilustrado por J. Lacan através da imagem do dedo levantado de São João Batista pintada por Leonardo Da Vinci. O dedo que aponta para cima e para um lugar vazio no quadro indica algo do objeto resto-caído sublimado transformado em uma ausência.

O exemplo do encontro  de Dante com Beatriz serve para pensar esse detalhe e sua elevação para a categoria do divino. Dante diz: “Há aqui um deus mais forte que eu que vem para ser meu senhor.”

O detalhe que se encontra aqui divinizado é solidário do objeto caído e suscita o amor e o desejo, alojando em sim um gozo situado no olhar de Beatriz.  Podemos fazer a seguinte sequencia: Olhar de Beatriz-resto estranho-apêndice do corpo irredutível ao significante (objeto causa) que se transforma em objeto do desejo ao ser recoberto por uma imagem.

O psicanalista recorta o detalhe para promover uma separação entre o objeto e suas vestes. Portanto não visa divinizar mais ainda o detalhe, senão fazê-lo cair para promover uma nova separação do gozo ai fixado.  Dessa separação poderá advir algo novo em termos de satisfação.

O paradoxo do Zenon retomado em primeiro lugar por J. Lacan é nesse texto novamente examinado para elucidar o que se passa entre Aquiles e a tartaruga. Aquiles é rápido, tem longas pernas, a tartaruga é lenta, mas ele nunca a alcança. Ela sempre está um passo a frente.

Esse paradoxo só pode ser  compreendido pela introdução da maquina significante nos diz J.-A Miller e propõe  substituir Aquiles 1 e Tartaruga 2 por um S1 e um S2. Essa relação significante promove por um lado, um sujeito dividido (lançando Aquiles em uma corrida infinita) e por outro produz ai um ponto de parada, algo indivisível, onde esta situado o objeto causa de desejo e de gozo divinizado e transformado em objeto de desejo.

Sabemos que o tema do infinito e finito toca o percurso da análise desde Freud e com J. Lacan encontramos o  matema objeto a que nos permite ir um pouco além do rochedo da castração e elaborar o atravessamento da fantasia. Trata-se de tocar algo desse finito, o que incide na forma de gozar. Lembremos a indicação lacaniana que diz: O amor (de transferência) faz condescender o gozo ao desejo.

A tartaruga, assim como a Beatriz (olhar) de Dante,  tem algo que atrai Aquiles.

O que é? No caso de Aquiles é casco que aloja o objeto pequeno a que evoca sincronicamente o escudo recebido pela sua mãe de Haefasistos para lhe entregar.

Podemos perceber que o detalhe é fundamental na vida amorosa na medida em que ele aloja algo do gozo fragmentado do pedaço de corpo cortado, que se apresenta sublimado, isto é elevado à categoria do divino, na medida em que se articula à castração.

Sobre o gozo: o detalhe na escolha do objeto

Para encaminhar um pouco mais o tema sobre a satisfação pulsional na escolha do parceiro J.-A Miller se serve das formulações freudianas sobre as pulsões, a primeira teoria pulsional –pulsões do eu e de auto-conservação vs. pulsões sexuais-, incluindo a teoria do narcisismo como um dos aspectos que força a Freud a produzir outra elaboração  sobre as pulsões: Eros vs. Tânatos.

Também acrescenta  a afirmação de J. Lacan que diz que  o gozo transcorre   de Eros a Tanátos, revelando desta forma  que a libido e a pulsão de morte são o mesmo, o que pode ser pensado como que há ai um casamento secreto entre ambos. A presença dessa aliança se evidencia na exigência libidinal da pulsão presente no imperativo moral, que resulta em um prazer que  transborda continuamente produzindo um além do principio do prazer, isto é um sofrimento.

Do casamento secreto de Eros e Tánatos  J. -A Miller passa a propor uma outra questão: Porque nos casamos?

Ele responde dizendo que haveria nesse ato do casamento uma renuncia a gozar de si. Nessa perspectiva surge o amor, que como já dissemos é o que permite ao gozo condescender ao desejo. Lembrando que a raiz etimológica do desejo remete a lamentar uma ausência dizemos que é necessário aceitar a renuncia do  gozo do próprio corpo, o que acarretará um  lamento de uma ausência, para poder passar por outro corpo. Passar pelo corpo do Outro. O detalhe tem ai nessa passagem um papel fundamental.

A flechada e Eva é o titulo do segundo capitulo que nos permitirá aprender um pouco mais sobre o lugar do detalhe na escolha do objeto.

J.- A Miller inspirado pelo trabalho do Rabino Reshi, lê o Pentateuco onde está a criação do paraíso, do primeiro homem e da primeira mulher. Ele pensa que será outra oportunidade de mostrar a origem do divino no detalhe que se lhe imputa ao amor.

Lendo a letra do Pentateuco, temos a frase pronunciada por Adão.

“Esta… (agora, esta vez) é osso de meus  ossos, carne de minha carne. Ela será chamada de mulher porque  do homem foi tirada.”

A escolha de Adão é narcísica?  A primeira vista parece ser.

Lembremos os dois tipos de escolha do objeto apresentado no texto do narcisismo por Freud: a narcisista e a anaclítica, a primeira é escolher o mesmo e na segunda escolher baseado na mãe.

Segundo J.-A Miller, Adão, sem mãe não tinha como escolher Eva baseado na mãe, o que seria uma vantagem para ele. Mas Adão tem um  inconveniente que consiste em tomar Eva como dada por Deus-pai. Isto teria levado a escutá-la e acreditar nela, situação que provocou o primeiro pecado original e sua consequência: a expulsão do paraíso.

Mas o que interessa aqui é pensar que tipo de escolha foi a de Adão. Podemos dizer que aparentemente foi narcisista mas teve como substrato uma escolha anaclitica baseada na identificação ao Deus pai.

Adão se alegrou e acolheu Eva como se fosse ele mesmo. Ai esta o engano que acarretará como dizemos acima a primeira falta e o consequente castigo.

Qual é o detalhe que Rashi encontra no Pentateuco? Ele o localiza na frase: Esta, esta vez… interpretando-a que Adão haveria tido anteriormente relações com animais. Mas a satisfação se deu quando conheceu a Eva.

Esse breve apólogo segundo J.-A Miller distingue os seguintes elementos:

Uma mulher- que é o primeiro detalhe divino, talhado, recortado do corpo de Adão. Costela.

Operação divina realizada durante o tempo em que Adão dorme.

Eva carrega em si o primeiro divino detalhe.

Podemos dizer que houve ai uma escolha de objeto no sentido freudiano propriamente dito, o que produziria a seguinte afirmação: É minha cada uma.

A importância do detalhe no objeto

A concepção do modelo de satisfação estruturada como o bebê dormindo satisfeito no colo da mãe sofre uma reviravolta  quando se verifica que a satisfação passa pelo seio, objeto separado objeto parcial.

Lacan apreende e ensina como o significante estrutura, domina o desejo aludindo ao texto sobre o Fetichismo de Freud. Nesse trabalho encontramos   a partir da inteligente percepção freudiana, a sutileza do detalhe que a mulher precisa possuir nesse caso para ser atraente, detalhe elevado a uma condição sine qua non para produzir o desejo. É o brilho-olhar no nariz inserido no mal-entendido produzido pela assonância entre duas línguas- alemão inglês) que se transforma  em o fetiche que substitui o falo.

Freud se interessa desde os Três ensaios nas causas de escolha do objeto, indicando em diferentes momentos que a escolha é sempre forçada pelas condições que ela exige demonstrando que a psicanalise se afasta de qualquer naturalidade na escolha do objeto. Em cada escolha forcada há um detalhe presente.

Lembremos que toda a paisagem da escolha do objeto se realiza de forma independente do sexo do objeto. A liberdade se estende para todos os sexos. As restrições se situam depois, são produzidas pela operação de sexuação dos corpos. Assim os homens e as mulheres somente se relacionam com seu objeto sexual de amor dando um rodeio pelas condições mais ou menos precisas.

Para finalizar apresento o matema inventado por J. –A Miller para escrever a condição do amor freudiana:

a
____

S2

Encontramos duas vertentes: a da causa (objeto a) e a do saber (S2).

O objeto causa do desejo precisa estar sustentado por certas condições significantes  S2 (saber).

Creio que este matema servirá para os próximos encontros sobre os divinos detalhes.


[1] Miller, J.-A. (1989) Los Divinos Detalles, Buenos Aires, Paidós. 2017.
Seminário-de-Orientação-Lacaniana

Algumas pontuações em torno dos comentários de Maria Silvia Hanna das duas primeiras lições do seminário de J.-A. Miller, “Divinos detalhes”:

Ana Beatriz Freire 

Hoje, abrimos nesse segundo semestre de 2019, a orientação lacaniana pelo seminário de 1989, “Divinos detalhes”. Seminário de 30 anos atrás que pode ser recortado de várias maneiras, por vários caminhos através das inúmeras  referências, dentre outras, literárias e filosóficas:   Madame Bovary, Proust- um amor de Swann, Jean Jacques Rousseau, Schiller, Edgar Allan Poe, Plutarco -sobre o corpo de Osiris- , Dante, Goethe, Gide, Rashi de Troyes que foi, como lembrou Maria Silvia,  um exegeta do Talmud da Babilônia, etc.

Detalhar, como lembrou Maria Silvia com Miller, é cortar em pedaços. Assim, a partir da leitura e pontuações já apresentadas por Maria Silvia desse seminário de Miller, recorto, dentre outras, algumas questões:

Para falar do amor, Miller retoma Freud, no texto “Sobre o narcisismo, uma introdução”, de 1914, destacando o termo freudiano eleição, escolha, de objeto. Nesse artigo, Freud postula dois tipos de escolha de objeto, afirmando que a pessoa pode amar segundo duas vertentes:

Primeiramente, pela escolha Narcísica (segundo o que ela própria é, o que ela próprio foi, o que gostaria de ser, seus ideais e, por fim, escolhendo alguém que foi parte dela mesma).  Em seguida, a pessoa pode amar segundo uma escolha do tipo anaclítica ou de apoio (apoio, segundo Freud, nas ditas pulsões de autoconservação): segundo, portanto, o modelo da mulher que a alimentou ou segundo o pai que a protegeu.

Gostaria de colocar a questão do termo escolha, seja escolha narcísica seja anaclítica, de apoio:

Como esses termos conversariam com as questões da sexualidade hoje, a partir dos movimentos LGBTQI? Colocamos a questão já que escolha não é um termo aceito pelo movimento atual do LGBTQI e, por outro lado, o termo gênero não é um conceito da psicanálise. Além disso, a identidade de gênero não coincide necessariamente com a orientação sexual.

Para desenvolver essa discussão nos reportamos a conferência de Marie-Hélène Brousse, intitulada Psicanálise, gênero e feminismo proferida em São Paulo, em 2015, assim como o artigo de Giselle Falbo em Latusa online, ano 7, número 20, de julho de 2016,  intitulado Sexualidade, gênero e corpo.

2)  Se no processo de análise não é, como afirma Miller, qualquer detalhe que nos interessa ouvir, destacar, e sim aqueles que são divinos por se repetir, poderíamos situar esse “Um” divino na série do Um que produz uma meia verdade?

Teria o “todo unificado da tradição cristã” relação com o “il y a de L’Un”, partitivo, de Parmênides tal como Lacan se refere no Seminário 20, Encore?   Esse todo cristão teria relação com o que, nesse Seminário 20, Lacan situa, na contramão da ontologia, como substancia gozante?

Se, através do mito de Adão e Eva, Miller explicou a origem da mulher, primeiramente como escolha narcísica ( uma parte do que fui). Em seguida, como uma escolha de apoio, já que foi deus que a engendrou.

A partir dessas considerações míticas sobre a origem da mulher, perguntaríamos como situar o feminino? Seria suficiente falar de escolha? Poderia o “não todo” do gozo feminino ser explicado pela identificação e escolha tal como na solução edípica?

Sobre o amor, Miller comentando Lacan vai abordar pelo fetichismo, já que é pelos objetos parciais, pelo “não todo” que amamos. Se o fetichista nega o pênis na mulher e busca se satisfazer com um objeto substituto, o amor seria a procura da outra metade que se perdeu tal como descrito por Aristófanes no Banquete (cf. Seminário 8, sobre a transferência)? Seria o encontro com o objeto propriamente um reencontro? Como afirma Miller, retomando Freud (p.46), tratar-se-ia de um reencontro sempre faltoso, impossível de se completar, amuro, segundo a hipótese da “não relação sexual”?

Miller, desenvolvendo o amor através do fetiche, retoma a abordagem freudiana do texto de 1927, a partir do equívoco. Trata-se do equívoco entre a expressão “Glance at the nose” e a expressão em alemão ”Glanz auf der Nase”: o nariz que brilha em alemão, era um glance. Em inglês, língua materna do paciente, glance quer dizer um “vislumbre” (na tradução da Standart), relance ou o que mira. Podemos comparar esse brilho com o exemplo da lata de sardinha na Bretanha, descrita no Seminário 11, que ofusca e visa o pequeno intelectual parisiense por se encontrar deslocado? Ou melhor, fora do enquadro dos pescadores por ser uma lata industrial que brilha e ofusca a simplicidade da pesca artesanal do bretão seria o objeto a, resto, o que visa, brilha, causando o sujeito no fetiche e no amor?

No amor, a mirada sobre o nariz do Outro, segundo o exemplo do paciente de Freud, estaria escrita no olhar brilhante do sujeito, que como objeto nada mais seria que aquele que atrai os olhos? ( p.46).

Miller começa a primeira lição, definindo o Um que não é todo, pelo objeto a através do paradoxo do Aquiles e a tartaruga de Zénon: Aquiles, dos pés ligeiros, detrás da inalcançável tartaruga que o precede, que se arrastando, o precede para sempre. Define o objeto a como o inalcançável nessa aposta, como o que cai, designando o inapreensível dos desfiladeiros entre os significantes, entre o tempo marcado pelo T1, saída da tartaruga, e o o seguinte, T2 no percurso da tartaruga. Poderíamos interrogar com Miller o princípio do infinito, dizendo que se vai encontrar sempre uma metade para dividir (p.23). Ou como afirma Miller com Zénon, “se cortarmos sempre a metade do que sobra, o resultado da torta não termina nunca”, “as partes do todo, por mais numerosos que sejam, não alcançam nunca o todo” (p.22)

A questão que se coloca a partir do infinito e desse paradoxo seria em relação ao lugar que ocupa a tartaruga: a tartaruga seria aquela inalcançável e, portanto, a que causa o desejo? Ou aquela que representaria o i(a), o casco como véu que envolve e vela o objeto real?  O objeto a seria o inassimilável da série temporal, aquilo que cai do serial significante, entre o T1 e o T2, entre tempo um e tempo dois ou a própria tartaruga?

Seminário de Orientação Lacaniana

Coordenação pelo Conselho da Seção Rio: Maria Silvia Garcia Fernandes Hanna (Presidente), Ondina Rodrigues Machado (Secretária), Heloisa Caldas, Marcia Zucchi, Paula Borsoi, Rodrigo Lyra de Carvalho.

Vivemos um estado de atenção, onde a civilização em seus vários aspectos se mostra inquietante e turbulenta. Uma série de acontecimentos no Brasil e no mundo vem oferecendo a oportunidade para que a psicanálise e os psicanalistas tomem a palavra, estudem e digam algo sobre a ameaça que paira sobre a dignidade de cada sujeito, começando por nós mesmos. O laço social e suas formas de regulação se encontram questionados pelo surgimento de um discurso de ódio que se multiplica, sem que tenhamos conseguido encontrar um modo de amortecê-lo. As ferramentas da psicanálise ajudam a fazer uma leitura, sem um saber prévio, que permita aprender algo sobre tais mudanças, nas quais a palavra vem perdendo seu peso e sua força. Percebemos que há um real que se impõe, pois “os processos segregativos são impossíveis de serem regulados se não se consegue uma subjetivação possível sobre sua causa” (Ventura, O. “Las raices del odio”, in: Fórum de Milão).

Nesse caldo de discussão, em que a Escola se mantém viva e palpitante, o Conselho da Seção Rio decidiu propor três encontros no primeiro semestre para o Seminário de Orientação Lacaniana. Ódio, Cólera e Indignação são as paixões trabalhadas por Freud e Lacan e também recolhidas, segundo o argumento do Enapol, “da civilização, mais precisamente do campo das relações políticas e sociais em que nos inserimos hoje”. Deste modo, propomos extrair dos textos escolhidos as consequências dessa situação contemporânea sobre a clínica e a política, abordando a incidência do psicanalista e da psicanálise no mundo. Apresentaremos três textos para elaborar os temas do ódio, da cólera e da indignação:

  1. Ódio – Seminário sobre a transferência negativa – J-A Miller
  2. Cólera – Comment se revolter – J-A Miller (em francês, na biblioteca)
  3. Indignação – O retorno da blasfêmia – OL  online 16 março 2015

Desde já, convidamos  todos a participar do debate, com o desejo de termos um ótimo semestre de trabalho.

Esperamos todos lá.

Paula Borsoi – Presidente do Conselho Seção Rio

O psicanalista e as paixões – o gosto do riso e a blasfêmia

Cristina Duba
03.06.19

Nos textos reunidos sob a rubrica Je suis Charlie, JA Miller responde aos acontecimentos de 2015 em Paris, quando houve o massacre da redação do jornal Charlie Hebdo, num ataque terrorista em resposta a charges publicadas com a figura de Maomé.

Gostaria de extrair nesse comentário alguns aspectos que me pareceram centrais nas observações de Miller. O primeiro deles diz respeito ao ressurgimento do valor da blasfêmia em contraponto à tradição iluminista dos poderes da razão, tão caros à sociedade francesa. Num mundo em que a religião retoma seu reinado, o reinado do sentido, capturando o desejo exatamente dos segregados de uma França branca, este choque se deu exatamente na trincheira “iluminista” do humor. Ao denominá-la como iluminista, estou privilegiando o lugar relevante, proeminente, que é dado à razão e aos princípios que daí derivam e cujas bandeiras principais se escrevem sob a égide dos universalismos extraídos da razão.

Ultraje a honra

Se considerarmos que a blasfêmia se constitui exatamente neste ponto em que se golpeia o sagrado do Outro, onde o fundamento de uma crença é ultrajado, insultado, atingido, no ponto em que se sustenta, podemos apreender que desperte a ira, a cólera e, mais persistentemente, o ódio.

O que parece ter surpreendido o mundo ocidental, a partir da França, não deve ter sido exatamente o massacre, a carnificina dos corpos, mas principalmente que essa fúria, que não excluiu o planejamento minucioso do ato, tenha se dirigido a um jornal, a um veículo primordialmente de discurso, de imagens e palavras, um jornal, aliás, sem maior projeção, decadente, herdeiro de combates de outro momento. Mais propriamente das trincheiras de 68. Eu, por exemplo, que pertenço a uma geração pós-68, do Rio de Janeiro, mas que sofreu diretamente essa influência e que cultuava o riso, o humor, que tinha Wolinski como uma espécie de príncipe dos cartunistas, um dos que levava mais longe a iconoclastia iluminista, para além mesmo do politicamente correto, onde o direito a rir de tudo não encontrava quase barreira, posso verificar que isso mudou muito. Como disse Laerte, cartunista brasileiro e colaborador eventual do Charlie Hebdo, o humor encontrou limites éticos, de forma mais rápida que as demais artes.

Voltando às crônicas de Miller, ele nos faz notar que os franceses reagiram a esse acontecimento e aos que se seguiram, aos ataques na mercearia kosher, com indignação. Ao golpe de cólera, ao instante do ato de terrorismo, os franceses reagiram com o afeto da indignação, que supõe primordialmente, a possibilidade de identificação com o golpe sofrido pelo próximo, pelo semelhante, por quem se compartilha o sentimento de humanidade, a fatia ultrajada a quem se reivindica dignidade. A indignação que perdura por mais de um instante, um afeto mais duradouro. Je suis Charlie, era esta a palavra-de-ordem a “comandar”, ao menos, a “juntar” a multidão.

Ele também nos faz notar, com a força de sua ironia, o súbito apaixonamento dos franceses pela polícia. Nunca se clamou tanto pela ordem, quanto naquele momento em que um inimigo interno podia ser apontado, embora não se saiba bem onde. Um inimigo interno com seu gozo estranho, feito de sacrifícios e mártires e um deus obscuro aos ocidentais. Ondas de solidariedade se desencadearam, a partir desse sentimento de dignidade ferida e, assim, restituída, recomposta, e que a indignação arrebanhou. O que se revela aí, segundo Miller, não é um louvor às luzes, às liberdades da Razão, mas um desejo de manter a ordem, um desejo de submissão, de servidão voluntária, diante do temor ao gozo sombrio desse Outro que espreita em toda parte. Choque de gozos.

No entanto, este mundo também foi confrontado por esse outro mundo que se indigna quando o coração de sua fé, o sentido de sua fé, é atingido, quando se sente insultado. Um insulto é uma espécie de palavra-imagem que toca o impossível de suportar, a palavra mais próxima  de uma bofetada. Um confronto de dignidades, poderíamos supor, que acusa impasses dessas civilizações que se chocam justamente porque se cruzam, se avizinham de um modo que possa beirar o intolerável. Sob o confronto de dignidades, o choque de gozos.

Do lado dos humoristas, uma outra dignidade da qual, seja qual for a razão que se evoque, desde a mais desonrosa (sempre financeira), até a mais íntima (a melancolia, a irresponsabilidade) não foi possível para eles se desprender, embora houvesse um risco anunciado: o fato é que eles não recuaram desse princípio de rir de tudo, rir de tudo, menos da possibilidade de rir.

O riso

Há o riso do cômico, cujo exemplo extremo é o pastelão, é o gozo que nos despertam as fraquezas, os tropeços, quando o que é automático revela o erro de seu funcionamento, surgindo o inesperado, como aponta Bergson, e que coincide com a comédia do falo, como nos diz Lacan. E há o humor que descentraliza, que desliza, que vivifica pela iconoclastia, pela afinidade com o furo, pela atenção ao que escapa do furor do ideal, pela benevolência cruel com a falha. É o humor que revira o sentido, desliza, subverte o sentido que vigora, é o humor que transgride. Este humor, marcado pelo non sense, é primordialmente não conformista e, embora se dirija ao Outro, se produz na solidão da criação. Nesse sentido, implica numa satisfação pulsional que vivifica, mesmo o humor mais negro, ao revirar um sentido sinistro, introduz alegria no horror.  Lembro as piadas que autores como Viktor Klemperer relatam em seu diário na Alemanha nazista.

Num mundo em que o pai responde com furor e capricho, não se suporta este riso que faz deslizar o sentido. Quando o discurso fundamentalista exige que não haja vacilação de sentido para que o delírio religioso se sustente e sustente seus devotos na crença absoluta, o imenso risco do fracasso torna a todos muito sérios. Como dizia uma charge retratando revoltas populares na faixa de gaza nessa época: ”que gente estressada!” O riso aí, o poder da comédia ao revelar o derrisório do falo, a precariedade do pai e do ideal, pode despertar as paixões mais mortíferas, o próprio ódio que se abriga sob a indignação, por exemplo.  A blasfêmia que pode se apresentar nesse extremo do humor carrega então uma face mortífera, quando seu agente não pode ceder desse gosto, desse gozo ao qual se condena não mais se apoiando no ideal do eu, mas nessa forma de gozo superegóico – do gênero:  “perder o amigo, mas não perder a piada”. Assim, esse não conformismo do humor, como um valor do qual não se pode ceder, essa liberdade de tudo dizer, pode ser para o Outro do sentido um insulto, um ultraje, uma blasfêmia.

Paradoxos

É possível rir de tudo? Para a geração de humoristas pós-68, não. O humor, como as palavras, têm limites, a noção de responsabilidade política pelo que se diz, o reconhecimento do poder e do perigo das palavras suplantou o gozo de tudo dizer. O reduto do “tudo dizer” ainda se encontra na psicanálise, que conhece os limites desse dispositivo e acolhe os pequenos depósitos dos gozos obscuros de cada um. Sem, no entanto, perder de vista a dignidade a extrair para cada um desses restos, afinal, a dignidade aponta para o que há de mais singular que marca e dá valor a cada um. E até porque a psicanálise verifica o impossível de tudo dizer, a impotência das palavras para dizer o real, a violência do insulto sempre anda por perto das palavras.

Mas sabemos do radicalismo fascinante do humor de um Wolinski, por exemplo, que não recuava do direito iluminista de ir longe demais. Os perigos e fascínios da razão. O quanto isso tinha de mortífero é seu segredo agora.

Retomando ainda: é possível rir de tudo? Não, porque a blasfêmia está de volta, o que quer dizer que as palavras, bem como as imagens que falam, que são textos, e que nunca deixaram de insultar ao se dirigir ao ser do outro, inseridas na violência da linguagem, agora não são suportadas por esses ofendidos que se revoltam.

A paixão de tudo dizer, de tudo rir, essa espécie de direito ao riso absoluto, ao confinar com o insulto ao gozo do próximo, encontra um limite já no racismo que engendra com esse desprezo ao derrisório da fé estranha, estrangeira. Assim, podemos nos interrogar se o direito de rir de tudo já não é necessariamente um insulto ao gozo do próximo. Um fato de racismo, racismo de gozo. Não é um fenômeno francês, ou apenas de primeiro mundo. Está relacionado ao recrudescimento do sentido religioso. (Do lado da psicanálise, a questão se expressa mais no sentido do humor, menos do riso). De todo modo a mordacidade de qualquer riso, traz sempre a surpresa, a irrupção, nem sempre partilhável, mas emergindo de uma fonte tão íntima quanto estranha.

Uma palavra sobre a dignidade. Se a dignidade evoca em cada um o que há de mais singular, o que singulariza o sujeito no mundo, ela se realiza no significante que o representa, está referida ao significante com o qual o sujeito se coordena, logo, àquilo do qual não se pode abrir mão, ao custo por vezes da vida, ou pelo menos, no campo onde essa aposta pode se dar, onde se transita no fio tênue que às vezes separa o sacrifício  do heroísmo, entre cair como pedaço de carne, ou morrer  para fazer viver o significante, para preservá-lo. Como diz Miller em outro texto, “Nota sobre a honra e a vergonha”, morrer de vergonha para sustentar sua honra.

Parece que nesse massacre, que teve ares de tragédia, a nenhum dos dois lados, foi dado primmum vivere. A cada um dos lados não foi possível escolher a vida e perder a honra. Um dos lados morreu de vergonha, o outro morreu de rir.

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Comentário sobre o texto de Cristina Duba “O psicanalista e as paixões: o gosto do riso e a blasfêmia”

Ondina Machado
Seminário de Orientação Lacaniana de 03/06/2019.

De cara, Cristina nos apresenta o cerne da questão: “ressurgimento do valor da blasfêmia em contraponto à tradição iluminista dos poderes da razão”. Em outras palavras, a invasão do oriente pelo ocidente, do discurso capitalista no discurso do mestre, da vacilação própria ao semblante na fixidez do sentido religioso. O choque está em desvelar o real da não relação sexual através do golpe contra o sagrado do outro que acredita na relação sexual. É um choque de civilizações em que uma tenta de se impor a outra pela via de um suposto Ideal. Como golpe não faz diferença de que lado parte.

No caso da blasfêmia, a via é a do insulto. Sempre é possível questionar se se trata de blasfêmia, de insulto, a série de charges publicada pelo Charlie Hebdo em torno de Alá, Maomé e seus seguidores. Quem decide o que é ou não insulto? Sempre vale a máxima de quem decide o sentido é quem o recebe. Os atos não tem graus que possam por si só serem classificados ou não como violentos, até mesmo a morte, que em determinadas circunstâncias ou nas mãos de bons advogados, pode virar um ato heróico.

De modo geral, é possível dizer que o insulto toca no ‘impossível de suportar’ de cada um, o ponto de real para o qual não há significação. O insulto ataca o ser do outro presentificado em sua forma de gozar.

No caso do Charlie Hebdo, devemos considerar que, mesmo decadente, se inseria numa cultura que tem como ideologia de estado a República. A dignidade da França se alicerça no ideal republicano da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mesmo que saibamos que a prática desse ideal torna alguns menos livres, menos iguais e pouco fraternos. As charges do Charlie confrontavam o eu ideal francês com o Ideal do eu dos radicais.

É importante dizer que o Ideal dos jovens radicais não é Alá, como nos esclarece Fethi Benslama. Para esse psicanalista francês e estudioso do Islã, o propósito desses jovens é “vingar sua vida”, dar sentido as suas vidas pela adesão ao radicalismo. O “Em nome de Alá”, pronunciado nos ataques é uma maneira, usando uma expressão da Cristina, de “fazer viver o significante” de um ideal pela via do gozo. Se fosse Ideal, esses jovens estariam mais propensos a serem alcançados pelo Iluminismo francês. Mas não é isso que se vê. Cabe então a pergunta feita por Laurent: é um Ideal ou um gozo novo?

Trata-se de uma geração atravessada pela ascensão do objeto na qual o ideal sofreu uma transformação, passando a ser sustentado por um “empuxo ao gozo”. É como se o ideal tivesse se transformado em gozo, portanto, uma nova configuração de gozo. Seria um ideal que produziria, através dos auto-sacrifícios, objetos de gozo – os mártires. São objetos que apontam o real da civilização ocidental, aquele que se quer crer livre, igual e fraterno. A originalidade desses objetos é justamente a impossibilidade de serem reciclados, de serem reabsorvidos pela razão. Nesse caso, poderia ser dito que a salvação pelos ideais se dá ao torna-los objetos, dejetos.

Assim, na radicalização encontramos o gozo do Um, o que é um paradoxo porque em nome de um Ideal, supostamente comunitário, o que impera é o gozo do Um. O que há é o Um, como diz Lacan.

Está claro que no nosso mundo capitalista, sempre tem uma empresa que se propõe a vender, e até a criar, uma demanda que faça essa transformação do ideal em gozo. Temos aí não só o Estado Islâmico mas também a indústria de armas.

Qual efeito podemos considerar que o humor, que não cede a fazer vacilar os semblantes, possa ter sobre os jovens que buscam na radicalização um sentido para suas vidas? O humor provoca o mal entendido, promove a ruptura entre significante e significado, portanto, tem efeito traumático porque levanta o véu que cobre o real e demonstra que no sentido habita um sem sentido. Lacan nos aponta dois caminhos possíveis diante da angústia pela emergência do real: o do fantasma e o da passagem ao ato. Por essas duas vias teríamos os indignados e os radicais.

Sabe-se que nem todo jovem que se radicaliza vai para o sacrifício, a maioria fica em funções de apoio. Os que vão para o auto-sacrifício são, em geral, jovens de classes populares. Os de classe média (poucos) ficam nas funções chamadas de inteligência. Nos últimos tempos tem-se constatado, e tido acesso, a cada vez mais relatos de jovens arrependidos nos quais fica clara a busca pelo gozo.

Diante da vacilação generalizada dos semblantes que caracterizam a nossa cultura sub-vem a fixação como defesa – o politicamente correto é respondido com o “talquei”. Há um franqueamento entre indignação e ódio, ou como diz Cristina, “pode despertar as paixões mais mortíferas, o próprio ódio que se abriga sob a indignação”. A indignação pode também servir como combustível ao ódio, como assistimos nas manifestações de 2013 aqui no Brasil. Foi a transformação da indignação em ódio que elegeu o atual presidente de nosso país.

La Transferencia Negativa

Seminário de Orientação Lacaniana – 06/05/2019
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“Comment se Revolter”

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