Breve comentário tecido, a convite da Diretoria da Seção-Rio, sobre os textos de Romildo do…
Ecos do Enapol – O que pode brotar da indignação – Por Andrea Vilanova
Andrea Vilanova EBP-Rio
A indignação nos interroga sobre seu lugar entre as paixões e nos coloca a trabalho em busca de um enquadre que nos permita cernir sua estrutura, bem como, sua função nos tempos que correm. Ler o tema da indignação com Miller, em “Comment se revolter?”[1] e com H. Kaufmanner, em “Indignai-vos, porém…”[2] me conduz à tentativa de leitura de uma manifestação artístico-poética que parece conversar com a ideia do que poderia ser uma boa maneira de nos indignarmos.
A perspectiva aberta pela orientação lacaniana nos indica que a indignação revela o estatuto reflexivo da posição do sujeito frente ao Outro da privação, como destaca Kaufmanner, de sua leitura com Miller: “Quando esta visa ao Outro, a trajetória de sua flecha retorna sobre o próprio sujeito. Se a revolta aponta o Outro, aquele que priva, o sujeito mesmo é afetado pelo retorno de sua indignação sobre si mesmo[..]”. Parece não haver escapatória. Do lado dos direitos humanos a perspectiva de fazer valer uma resposta guiada pela justiça distributiva, do lado da psicanálise, estamos às voltas com uma perspectiva advertida sobre a natureza do impossível de suportar subjacente à indignação, como próprio a cada um. A cada um seu gozo, os ônus e bônus dessa condição.
Mas como nos servirmos desta advertência sem cair na desafetação, sem nos desimplicarmos da vida política, quando não podemos simplesmente ignorar o mundo no qual tomamos parte? A indignação pode colocar em cena o imbricado jogo entre o singular do sujeito e o nó de sua posição no Outro social. Como transitar nesse movediço terreno que coloca o Um e o múltiplo em tensão? O que fazer com o gozo de cada um que não se deixa assimilar, nem neutralizar, quando estamos às voltas com outros, ao mesmo tempo em que nos contamos um a um?
A cada dia me pergunto: como metabolizar o impacto da violência de um desgoverno absolutamente desimplicado diante das atrocidades que emanam de suas arbitrariedades, seguindo em frente como cidadã e psicanalista? As palavras de Eve Miller Rose, na abertura do IX Enapol iluminaram um ponto de junção e disjunção que me ajuda a interrogar o modo de compor o que retomo a partir de um lugar onde minha resposta como cidadã não prescinde dos instrumentos de navegação que a psicanálise me oferece, ainda que não se trate de confundir meu lugar de cidadã com meu lugar de psicanalista. Recolhendo o que pude ouvir de suas palavras, trata-se de reconhecer que tomar a ética em termos de dignidade seria elevar o humano à dignidade de sujeito. É o que me orienta. Mas entre cidadã e psicanalista não há equivalência, nem superposição. Creio que, como psicanalista, estar advertida daquilo que em mim não encontra lugar na política dos bens e direitos, me permite calibrar meu lugar de cidadã, meu modo de tomar parte no mundo, nos laços a inventar com os outros. Nada disso é dado de antemão. Na ausência de respostas prévias, sigo tentando aprender com a arte, lembrando com Freud e Lacan que o artista antecede o psicanalista. E assim, compartilho o que pude recolher de uma manifestação artística de jovens poetas das favelas do Rio de Janeiro que têm feito de certo uso da palavra uma arma potente.
Há alguns meses fui surpreendida por um ataque poético. Uma fala testemunhal ecoa pelos vagões da metrópole. Os “ataques” colocam a voz em primeiro plano. No meio de uma viagem qualquer, uma voz rompe o silêncio: “Ataque!” Imediatamente outros respondem: “poético!” De repente alguém recita: “Em nome do amor se oprime, reprime e ilude/Em nome da paz instaurada, a guerra mata um preto, dentro e fora da favela, a cada 23 minutos”.
O que haveria de poético nisso? Ainda que não seja possível um relato sem a ficção intrínseca ao que a palavra pode oferecer, o dito realismo com que alguns críticos se referem a esta produção literária contemporânea[3], tem sido marca dessas manifestações, onde o poeta grita urgências a partir de uma fala auto-biográfica que necessariamente incorpora a dimensão política das urgências sociais que enuncia. Um ataque de poetas periféricos, como eles próprios se apresentam, suscita surpresa e muitas perguntas. Seu uso da língua para despertar os transeuntes e chamar sobre si alguma atenção, traz a marca da indignação soletrada em palavras duras que retratam a violência e o abandono que marcam seu cotidiano. Impossível não ser afetado. Muitas são as vozes que se atravessam, harmoniosamente ou não, mas é interessante notar o modo como rompem com o anonimato de uma corriqueira viagem num transporte urbano. Eles nos desarmam. Sua intervenção incide sobre nós, sobre cada um que aprecia a beleza ou hostiliza os “esquerdopatas”. Uma cena se monta. Saímos do autismo hipnótico diante das telas dos smartphones.
Muitos eventos, desde o início dos anos 2000, vêm se consolidando com a marca desse uso da língua para retratar a realidade da vida nas favelas, num misto de catarse e produção artística, dita periférica, e que promove um reviramento ao interrogar onde ou qual seria o centro, já que se propõem a testemunhar o drama que se faz seminal no centro de suas vidas, entre o que toca a todos ali e a cada um. Suas palavras escancaram a inexistência do que quer que se possa chamar de sociedade, deixando expostas as valas comuns que expõem o sem-valor da vida dentro da engrenagem do sistema do qual fazemos parte.
Fazer da revolta arte, tocar o outro com suas palavras parece ser o nervo sensível desse modo de produzir com a própria voz uma audiência que lhes ateste dignidade, reconhecimento e lhe renda dinheiro para sobreviver. Fazer da indignação um ato de fala faz ecoar o princípio de que é preciso ser escutado para que o atributo de existência vigore, instaurando uma vida dentro da vida que chega a todos nós pelas manchetes. E mais ainda, ao tomar a palavra de modo performático, esses jovens fazem dela um projétil que pode furar a massa de uns e instaurar Outro possível. Colocando a voz em cena dão corpo a uma satisfação que atravessa o desalento coletivo e faz vibrar o instante.
Esses jovens não se apresentam como pobres pedintes. Passam o chapéu, de fato, mas é a reação do público que lhes retorna e liga uma chave interessante, reatando um laço, na vivacidade de um gesto que dá testemunho de um antes e um depois do happening dentro do vagão do metrô. A contingência do encontro vigora e sua efemeridade faz vibrar a vida possível no meio de um dia como outro qualquer. Marcus André me perguntou qual seria a articulação entre o que fazem esses coletivos e o que ocorre em uma análise? A produção de deslocamentos inauditos, respondi.
A indignação impactada pela surpresa de um encontro pode ressignificar um dia, produzir perguntas, provocar deslocamentos, instaurar brechas. Permite tornar vívida a diferenciação que Miller propõe, ao colocar a queixa do lado de uma posição de impotência e a indignação, como revelação de um impossível.