skip to Main Content

Ecos de ZADIG no RIO

Por Paula Legey

 O Fórum Lei e Violência foi o terceiro promovido por La movida Zadig Brasil “Doces &Bárbaros”. Desde o início, os fóruns têm sido organizados em torno de temas importantes para o momento político e social do Brasil. O primeiro, “Estado de direito e corrupção. O real da psicanálise é a nossa moeda”, em agosto de 2017, o segundo “Por que apenas existem raças de discurso: desafios da democracia”, em março de 2018, além de uma conversação “Psicanálise e Democracia” ocorrida em outubro de 2018 (mês das eleições presidenciais em nosso país). Dessa vez, o tema esteve diretamente ligado a fatos recentes. Lei e Violência: em que medida as figuras que se apresentam como representantes da lei podem usá-la para fins políticos e interesses próprios? Quando a violência é legitimada, incitada, cometida pelo Estado, qual a função da lei? Freud apontou para um aspecto violento no exercício e manutenção da lei. Em O Mal-estar na civilização, ele afirmava que a vida humana em comum se torna possível quando o poder de uma comunidade é estabelecido como direito, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta. A lei serve para restringir a violência, porém há, na própria lei, uma violência, na medida em que ela se apresenta como imposição “Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha” (Freud, 1932, p.198).

O que vemos nos dias de hoje no Brasil, no entanto, como apontou Marcelo Semer durante o fórum, é um modo de funcionamento onde a lei parece não ter a função de limitação da violência. A constituição existe e está em vigência, não estamos em um estado de exceção declarado, onde a lei está suspensa, mas há uma série de mecanismos que permitem o seu desvio, fazendo da lei álibi da violência. Isso remete ao que lembrou Romildo do Rêgo Barros ao usar uma expressão de Eric Laurent: há um núcleo louco da lei, um aspecto em que a lei se confunde com violência na medida em que ela se apresenta como não regulada. A partir das questões trazidas no fórum, Romildo questiona a possibilidade de que o jurista, na incapacidade de considerar que toda lei tem um núcleo louco, possa assumir esse núcleo louco para si, ele próprio sendo o enunciado da lei. Trata-se de um capricho nem mediado nem limitado pela lei: o inferno, como disse Romildo.

Tatiana Roque realizou uma contribuição importante para pensarmos essa escalada do autoritarismo no Brasil e no mundo. A crise da democracia pode ser pensada sob a perspectiva do chamado fenômeno da pós-verdade. A subida de respostas totalitárias beneficia-se do ceticismo generalizado, ativamente produzido por uma estratégia herdeira da indústria de cigarros e do negacionismo climático. As políticas neoliberais aliam-se ao negacionismo generalizado na destruição do estado de bem-estar social. O conservadorismo junta-se ao neoliberalismo na medida em que, no lugar das políticas coletivas de bem-estar social, entra a sobrevalorização do privado, outra face dos “valores da família”. Podemos dizer que a queda dos referenciais simbólicos abre espaço para a ascensão de respostas totalitárias, fundadas na eliminação do gozo do Outro, entendido como ameaça.

Diante desse cenário, o que fazer? Angelina Harari, no fechamento desse encontro de Zadig, lembrou de um apontamento de Lacan sobre a palavra fórum, encontrada na carta de 23 de janeiro de 1980. “Fórum, por definição, é o lugar onde as coisas são compartilhadas. ” O próprio fórum já é uma forma de fazer, se levarmos em conta os poderes da palavra no exercício coletivo, de corpo presente. Miriam Krenzinger falou de sua experiência de atendimento à população moradora da Maré na questão do acesso à justiça. Trouxe seus dilemas éticos, profissionais e acadêmicos na lida com situações extremas. Como se posicionar diante de uma violência muitas vezes produzida pelo Estado? Como lidar com a violência cotidiana para além de uma posição de indignação paralisante ou de denúncia sem consequências? Sobre isso, Marcus André Vieira falou a partir de sua experiência de análise, transmitindo um ponto específico, em que a fala do analista incide sobre uma posição sacrifical, revestida de ato político, de ir até o pior. Isso causa um efeito de reposicionamento diante da violência e torna viável um arranjo com o que até então ficava de fora do seu campo de possibilidades.

Lidar com aquilo que é excluído está na base da ética da psicanálise. O fórum Zadig Lei e Violência, com o apoio da escola Brasileira de Psicanálise, caminhou nessa direção, contribuindo para uma elaboração coletiva em torno de temas importantes, que têm sido fonte de angústia. Que essa angústia possa ser causa de desejo talvez dependa do trabalho que cada um pode recolher do que restou.

This Post Has One Comment

  1. Paula Legey faz uma excelente resenha do Fórum do dia 3 de agosto e dá seu testemunho pessoal sobre os efeitos de ZADIG.

Comments are closed.

Back To Top