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Comentário sobre o texto de Cristina Duba “O psicanalista e as paixões: o gosto do riso e a blasfêmia”

De cara, Cristina nos apresenta o cerne da questão: “ressurgimento do valor da blasfêmia em contraponto à tradição iluminista dos poderes da razão”. Em outras palavras, a invasão do oriente pelo ocidente, do discurso capitalista no discurso do mestre, da vacilação própria ao semblante na fixidez do sentido religioso. O choque está em desvelar o real da não relação sexual através do golpe contra o sagrado do outro que acredita na relação sexual. É um choque de civilizações em que uma tenta de se impor a outra pela via de um suposto Ideal. Como golpe não faz diferença de que lado parte.

No caso da blasfêmia, a via é a do insulto. Sempre é possível questionar se se trata de blasfêmia, de insulto, a série de charges publicada pelo Charlie Hebdo em torno de Alá, Maomé e seus seguidores. Quem decide o que é ou não insulto? Sempre vale a máxima de quem decide o sentido é quem o recebe. Os atos não tem graus que possam por si só serem classificados ou não como violentos, até mesmo a morte, que em determinadas circunstâncias ou nas mãos de bons advogados, pode virar um ato heróico.

De modo geral, é possível dizer que o insulto toca no ‘impossível de suportar’ de cada um, o ponto de real para o qual não há significação. O insulto ataca o ser do outro presentificado em sua forma de gozar.

No caso do Charlie Hebdo, devemos considerar que, mesmo decadente, se inseria numa cultura que tem como ideologia de estado a República. A dignidade da França se alicerça no ideal republicano da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mesmo que saibamos que a prática desse ideal torna alguns menos livres, menos iguais e pouco fraternos. As charges do Charlie confrontavam o eu ideal francês com o Ideal do eu dos radicais.

É importante dizer que o Ideal dos jovens radicais não é Alá, como nos esclarece Fethi Benslama. Para esse psicanalista francês e estudioso do Islã, o propósito desses jovens é “vingar sua vida”, dar sentido as suas vidas pela adesão ao radicalismo. O “Em nome de Alá”, pronunciado nos ataques é uma maneira, usando uma expressão da Cristina, de “fazer viver o significante” de um ideal pela via do gozo. Se fosse Ideal, esses jovens estariam mais propensos a serem alcançados pelo Iluminismo francês. Mas não é isso que se vê. Cabe então a pergunta feita por Laurent: é um Ideal ou um gozo novo?

Trata-se de uma geração atravessada pela ascensão do objeto na qual o ideal sofreu uma transformação, passando a ser sustentado por um “empuxo ao gozo”. É como se o ideal tivesse se transformado em gozo, portanto, uma nova configuração de gozo. Seria um ideal que produziria, através dos auto-sacrifícios, objetos de gozo – os mártires. São objetos que apontam o real da civilização ocidental, aquele que se quer crer livre, igual e fraterno. A originalidade desses objetos é justamente a impossibilidade de serem reciclados, de serem reabsorvidos pela razão. Nesse caso, poderia ser dito que a salvação pelos ideais se dá ao torna-los objetos, dejetos.

Assim, na radicalização encontramos o gozo do Um, o que é um paradoxo porque em nome de um Ideal, supostamente comunitário, o que impera é o gozo do Um. O que há é o Um, como diz Lacan.

Está claro que no nosso mundo capitalista, sempre tem uma empresa que se propõe a vender, e até a criar, uma demanda que faça essa transformação do ideal em gozo. Temos aí não só o Estado Islâmico mas também a indústria de armas.

Qual efeito podemos considerar que o humor, que não cede a fazer vacilar os semblantes, possa ter sobre os jovens que buscam na radicalização um sentido para suas vidas? O humor provoca o mal entendido, promove a ruptura entre significante e significado, portanto, tem efeito traumático porque levanta o véu que cobre o real e demonstra que no sentido habita um sem sentido. Lacan nos aponta dois caminhos possíveis diante da angústia pela emergência do real: o do fantasma e o da passagem ao ato. Por essas duas vias teríamos os indignados e os radicais.

Sabe-se que nem todo jovem que se radicaliza vai para o sacrifício, a maioria fica em funções de apoio. Os que vão para o auto-sacrifício são, em geral, jovens de classes populares. Os de classe média (poucos) ficam nas funções chamadas de inteligência. Nos últimos tempos tem-se constatado, e tido acesso, a cada vez mais relatos de jovens arrependidos nos quais fica clara a busca pelo gozo.

Diante da vacilação generalizada dos semblantes que caracterizam a nossa cultura sub-vem a fixação como defesa – o politicamente correto é respondido com o “talquei”. Há um franqueamento entre indignação e ódio, ou como diz Cristina, “pode despertar as paixões mais mortíferas, o próprio ódio que se abriga sob a indignação”. A indignação pode também servir como combustível ao ódio, como assistimos nas manifestações de 2013 aqui no Brasil. Foi a transformação da indignação em ódio que elegeu o atual presidente de nosso país.

Ondina Machado
Seminário de Orientação Lacaniana de 03/06/2019.

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