Breve comentário tecido, a convite da Diretoria da Seção-Rio, sobre os textos de Romildo do…
Atividade da Biblioteca – Leituras em Cena – Janelas abertas
No dia 20/05/2019, a Seção Rio da EBP abriu a casa para o projeto Leituras em cena, em uma linda e surpreendente noite da Diretoria. Mediadas pela Diretora de Biblioteca da Seção, Andréa Vilanova, as colegas Isabel do Rêgo Barros Duarte, Maricia Ciscato e Renata Martinez falaram, cada uma à sua maneira, sobre a pesquisa e o trabalho epistêmico que embasa o projeto e deram notícias do que recolheram ao longo do trabalho que vem sendo desenvolvido há pouco mais de um ano.
Este encontro estava planejado para acontecer em seguida a um evento de abertura, que teria outro formato, de conversa entre as psicanalistas, a Cia dos Atores e a editora Cobogó, a partir da leitura de cenas selecionadas da peça Insetos, de Jô Bilac. Este encontro prévio, que contaria ainda com a presença do escritor Luiz Eduardo Soares e de Marcus André Vieira, precisou ser adiado em função de uma das enchentes sem precedentes que a cidade do Rio de Janeiro atravessou no primeiro semestre de 2019. Decidido quanto a sua presença na cidade, o Leituras em cena não poderia deixar de se posicionar, tamanho o caos que se impôs naquela sexta-feira de maio, de forma que, invertidas as datas, o encontro epistêmico saiu antes do evento cênico. A boa notícia é que já temos a confirmação da nova data: dia 5 de julho!
A mesa formada pelas psicanalistas trouxe à comunidade da Seção Rio notícias de um trabalho que vem se construindo na dobradiça entre Escola e cidade, rompendo com a dicotomia dentro x fora. Foram apresentados recortes do que tem sido esse esforço de elaboração acerca do que pode a arte ensinar à psicanálise sobre um certo modo de fazer com o real, com o que se apresenta no cenário social e político atual. Com leveza, transmitiram o que ficou, para cada uma, dos encontros quinzenais com o coletivo que compõe o projeto – formado por Dinah Kleve, Natasha Berditchevsky, Thereza De Felice e por mim –, e também do cartel formado por elas, tendo Marcelo Veras (EBP-BA) como mais um.
Os três trabalhos fazem referência ao seminário de Marcus André Vieira, A psicanálise do fim do mundo, um importante espaço de discussão e trocas sobre a prática da psicanálise hoje. Além disso, a especificidade da linguagem do teatro dentro do campo das artes, a presença do texto e dos corpos em cena, são alguns dos pontos que não deixaram de aparecer. Finalmente, o porquê de a peça Insetos ter ganhado lugar de destaque nessa pesquisa, por se tratar de uma leitura social com incrível poder de transmissão, também foi abordado, de alguma forma, em todas as falas.
Renata apresenta o Leituras em cena como um processo, um trabalho em construção, que se inicia no encontro com alguns parceiros. Aproxima a prática do analista àquela do artista, no mundo de hoje, após o fim de um mundo conhecido. Retomando a indicação de Lacan sobre a importância de o analista estar à altura da subjetividade de sua época e a expressão cunhada por Laurent, o “analista cidadão”, afirma que o Leituras é uma nova maneira de lidar com tudo o que está aí. Ele surge com essa proposta, provocado por nosso tempo, a fim de buscar na linguagem da arte outros modos de tratamento dado ao objeto – não podemos desconsiderar o fato de que esse trabalho teve início após o assassinato de Marielle Franco. Citando o crítico de arte Lorenzo Mammi, Renata aponta para o papel do artista de descobrir os espaços onde a arte poderá se exercer, espaços precários e problemáticos, e pergunta: não se trata também de construir esses espaços?
Maricia indica como os relatos de testemunhos pós Segunda Guerra trazem um novo modo de transmissão do real, a partir dos restos, fazendo importante resistência à lógica totalitária do nazismo, de eliminação dos restos. Discute a passagem das Belas artes (que apontam para o ideal) ao Ready made (o urinol, de Duchamp), nas artes plásticas. Conforme desenvolvido por Miller, em sua “Salvação pelos dejetos”, essa estetização do dejeto promove uma elevação do objeto à dignidade da Coisa. Neste sentido, Maricia indaga: com o que contamos hoje? No mundo da ciência e do capital, onde tudo se compra ou vende e, portanto, tudo é eliminável, o que resta? Como impedir que o deserto se totalize sobre nós? Resgata a noção de oásis de Hannah Arendt, indicando que o maior desafio é o de produzir e manter oásis em meio ao caos, não como espaços de descompressão, mas como “fontes vivas que nos capacitam a viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele”. Para Maricia, um efeito pessoal das “conversas entre muitos”, que se produziram na construção da parceria com os atores e demais envolvidos na peça Insetos, foi o de repensar o lugar da obra hoje, do elevado, sublime, ao transbordamento em seu entorno, o que permitiu, como se desejava, borrar as fronteiras entre o teatro, as artes plásticas, a psicanálise e a política, num ambiente menos sublime e muito vivo.
Tanto Maricia quanto Isabel citam uma articulação feita por Marcus André Vieira em seu seminário, sobre o artivismo contemporâneo, que toma o fazer contínuo como marca do gesto artístico: “A arte, muito antes da gente, já percebeu que não vai ter grande objeto, grande arte, e que é mais um fazer e meio coletivo, que não tem nem começo nem fim”.
Em seu texto, Isabel indica que o fato de a leitura de peças de teatro ter sido o meio escolhido para o trabalho no Leituras em cena foi também em função da possibilidade de, por emprestar o corpo e a voz num esforço de aproximação do objeto artístico, evitar-se cair na lógica do psicanalista que interpreta a obra de arte. Isso foi ilustrado por seu pedido às colegas para lerem, junto com ela, a cena inicial da peça, dos gafanhotos, colocando em cena o espírito do teatro, e mostrando que as psicanalistas beberam da fonte da proposta inovadora que vêm trazer. Isabel diferencia o oásis do bunker, onde os gafanhotos poderiam se proteger até a tempestade passar. Ela indica seu interesse pessoal em pesquisar as veredas, vias de acesso entre os oásis, caminhos alternativos quando as vias principais estão impedidas. Numa aproximação com O Grande Sertão, de Guimarães Rosa, onde caminhar pelas veredas era a única forma de viver em liberdade, pensa a travessia de uma análise e a função desse processo hoje, que conta mais do que o produto. Por fim, situa o efeito de sublimação como o de fazer com que alguma coisa dure um pouquinho mais, antes que vire nada outra vez.
Como as artes e, mais especificamente, o teatro têm se virado com as questões do nosso tempo? O que fazem com esse real e como transmitem esse fazer – isso pode nos ensinar alguma coisa sobre a clínica hoje? Podemos pensar o Leituras em cena como uma forma de oásis que cria veredas, caminhos alternativos por onde transitar na cidade nos tempos atuais? São algumas das perguntas que ficaram.
O debate que se seguiu trouxe, mais uma vez, o tom da leveza e da novidade desse trabalho, com comentários sobre os “corpos angustiados”, a aproximação do projeto com a Ação Lacaniana, a imagem da capa do livro com os insetos e suas inúmeras patas, a provocação para seguir a partir do que foi dito e, sobretudo, a potência do debate lançado naquela noite. O fato desse projeto ter sido acolhido pela atual Diretoria revela uma direção de trabalho interessada em aprender com o que se inventa hoje na cidade. Pessoalmente, posso dizer que aprendi com o Leituras que, para sair da posição da crítica e da indignação, é preciso ter os dois pés dentro da Escola, no sentido de um desejo decidido a encontrar modos de fazer. É isso que permite avançar essa pesquisa, encontrando formas de abrir as janelas e promover outras relações de dentro x fora, aberto x fechado. Não se trata de olhar os insetos como objetos de estudo, mas de entender que somos todos insetos aprendendo a lidar como o que se apresenta no cenário desértico atual.
Contamos com a presença de todos no dia 5!
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