Breve comentário tecido, a convite da Diretoria da Seção-Rio, sobre os textos de Romildo do…
Ecos do Enapol – Ideal e gozo no terrorismo – Por Ondina Machado
Ondina Machado
Há um afeto envolvido no terror? A luta do terrorismo islâmico contra o Ocidente se baseia no ódio ao Ocidente? De quê se alimenta o terrorismo?
Ideal ou um gozo novo
Parto da consideração esclarecedora de Laurent, em debate com dois estudiosos sobre o Islã, durante o Pipol 7, ocorrido em Bruxelas, em 2015. Os estudiosos são Feith Benslama, psicanalista de origem tunisiana, professor em Paris-Diderot, e Rachid Benzine, economista marroquino e estudioso dos textos corânicos. Ambos desenvolvem pesquisas sobre a ascensão do terrorismo islâmico. A partir das considerações feitas pelos dois islamólogos Laurent lança a seguinte indagação: “o gozo daquele que se destrói é um retorno ao ideal, uma via rumo ao ideal ou antes uma via rumo a um novo gozo”[1].
É sobre esse recorte que quero trabalhar indagando se o que move os jihadistas é uma causa religiosa, o afeto do ódio, ou, ao contrário, um tipo de gozo inédito até os dias de hoje.
Não sem a perspectiva do sujeito
Ao longo dos séculos, inúmeras invasões e tentativas de ocidentalizar a cultura islâmica foram justificativa para o ódio ao Ocidente. Depois do 11 de setembro, o medo intensificou o preconceito e serviu de justificativa para medidas de segurança adotadas no mundo inteiro, que têm como alvo principal os jovens muçulmanos. Além disso, símbolos sagrados, como a figura de Alá e de Maomé, são alvos de profanação e blasfêmia, o véu é proibido nas escolas francesas e há dificuldade para conseguir emprego por causa das 5 orações diárias. Enfim, tudo corrobora para o mal-estar, que Miller situa no corpo: “Não há corpo de muçulmano que não trema quando o herege blasfema”, ou ainda, “a blasfêmia é uma indecência”[2].
Há também o ataque que corrói bases dessa cultura: o discurso capitalista, os ideais iluministas, a promoção do individualismo, a flexibilização da moralidade, o laicismo, a liberação sexual, a igualdade de gêneros, dentre outras. Mas, para pensarmos o terrorismo a partir da psicanálise, devemos incluir nessa análise os fatores contingentes de um gozo para além das explicações sociais e culturais, ou seja, é necessário humanizar o terrorista, como indicava Lacan[3], advertidos por Miller a não nos deixarmos “hipnotizar pela causa”[4].
Nesse sentido, a contribuição de Benslama e Benzine, tomada pela via proposta por Laurent, traz uma perspectiva particular do que costumamos chamar de “terrorismo islâmico”.
Quem são os terroristas?
Benslama insiste que não há um perfil do terrorista; no entanto, ressalta que eles são majoritariamente jovens muçulmanos entre 15 e 25 anos. Em geral são pobres, vivem em uma “precariedade subjetiva”[5] e clamam por justiça social. De 2013 para cá perceber-se a concorrência de jovens originários da classe média que, diferente dos jovens pobres, clamam por autoridade e definição clara das normas, buscando “retraçar as fronteiras entre a permissão e o proibido de uma forma explícita”[6]. Independente da classe social, têm em comum o sentimento de viverem em um mundo onde não há lugar para eles, de serem vítimas de uma ordem social e política que os exclui e os discrimina por seus hábitos, aparência e costumes. Segundo Khosrokhavar, “o islamismo radical opera uma inversão mágica que transforma o desprezo de si em desprezo do outro e a indignidade em sacralização de si, mesmo que à custa dos outros”[7]. Essa inversão parte de uma indignação da qual os imãs se aproveitam para construírem o ódio que justifica suas ações. O ódio não é consubstancial à violência, mas tem como propriedade fazer laço social, nesse caso, forjando uma identidade.
É justamente essa identidade que Benslama chama de “super-muçulmano”, aquele “que quer ser mais muçulmano do que o muçulmano que é”[8]. Para tal, exacerbam os sinais externos de lealdade nas roupas que vestem, nos rituais que executam e na obsessão pela pureza. Muitos são delinquentes que encontram na jihad uma forma de inscreverem-se no Outro de uma maneira nobre – “vingar uma vida desvalorizada, adquirir um sentimento de existência superior tornando-se heróis”[9]
Segundo Benslama, a oferta de radicalização se beneficia das “falhas subjetivas para transformá-las em um desejo furioso de sacrifício”[10] e fazer deles neo-mártires. O antigo mártir islâmico morria sem querer, como consequência de sua profissão de fé. Já o neo-mártir pratica o auto-sacrifício pelo “desejo de morrer por ódio à vida”[11]. Morrem, paradoxalmente, em busca de “uma vida mais elevada”[12]. Esses jovens que almejam uma subjetividade heroica pela via da violência, são designados por Khosrokhavar de “heróis negativos”[13].
É possível perceber que, na causa jihadista, o ideal se apresenta como expressão direta do supereu lacaniano, menos uma causa e mais uma tentativa desesperada de salvar-se da indignidade. Sabemos, por Miller, que não há salvação pelo ideal, apenas pelo dejeto[14]. Será que para esses jovens o auto-sacrifício seria uma tentativa sublimatória de elevar-se como objetos à dignidade de Coisa?
Como o ideal se torna gozo
Os jovens declaram querer “vingar o ideal islâmico ferido” através da restauração do califado, do retorno às origens e às fundações da fé. A expressão “vingar a minha vida”, presente nas cartas deixadas pelos suicidas à suas famílias, denota, segundo Laurent, um querer dar sentido à vida, propósito de toda religião. Porém, nessas cartas recolhidas por Benslama[15], também é possível verificar a emergência de um gozo paradoxal: esses jovens acreditam que ao se apresentarem a Deus em pedaços, conquistariam “um mérito real”.
Laurent identifica uma equivalência entre esse gozo e o mundo atual no qual “o Ideal do eu empalidece diante da elevação ao zênite do objeto ‘a’, do gozo”[16]. O autor demonstra a ascensão do objeto em detrimento do ideal no desinteresse pelo estudo do Corão, na submissão à uma “polícia de costumes”[17], na espetacularização das execuções e no recrutamento à profissão de fé via internet, uma espécie de califado digital. Ele evidencia “uma alteração particular dos ideais que se atém apenas a um empuxo-a-gozar, um empuxo-a-gozar de uma nova forma, que dá um novo referente ao velho nome de mártir”[18]. Assim, o mártir sai do campo do ideal e se transforma em um objeto que “não pode ser absorvido no dispositivo da civilização”[19].
Brousse ressalta a diferença da violência como forma de gozo daquela embalada por causas revolucionárias. Se antes, revolução era o S1 do discurso do mestre que movia as massas, hoje, o S1 é a violência. O que mudou foi o lugar ocupado pela violência, pois na posição de S1 ela “regula a vida social, os valores, os ideais, as instituições”[20]. O significante revolução interpretava a violência, dava-lhe sentido; hoje “a violência está descoberta, não interpretada”[21]. Quando o Édipo era a norma, suas tramas engendravam o sentido. No além do Édipo novas formas de gozo deixam de ser exceção e, como tendência, ocupam a posição de agente do discurso do mestre. Assim, o objeto a é capturado por um novo significante que toma o lugar do significante mestre: “onde havia a metáfora, há o real”[22], onde havia ideal, há gozo. Os restos do discurso do mestre antigo são hoje elevados à posição de S1, assim é com a violência.