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Textos de encerramento da diretoria: Sobre oásis e vaga-lumes

Andréa Reis Santos

“Os vaga-lumes, depende apenas de nós não vê-los desaparecerem. Ora, para isso nós mesmos devemos assumir a liberdade do movimento, a retirada que não seja fechamento sobre si, a força diagonal, a faculdade de fazer aparecer parcelas de humanidade, o desejo indestrutível”[1]

Iniciamos essa diretoria há dois anos, em meio ao pessimismo que se instalou no país com o resultado das eleições presidenciais. Começamos sonhando com uma escola oásis que pudesse servir de ponto de parada e respiro, um lugar vivo, propício para ser habitado pelo espírito anti-segregativo da psicanálise. Lugar de desejo e resistência. Tínhamos pela frente o desafio de manter vivo o trabalho de Escola em meio a um cenário político desolador. Nos reunimos em cartel para estudar a Proposição e outros textos institucionais, e junto aos colegas da Seção buscamos orientar os seminários da diretoria privilegiando o formato da conversação e apostando forte no dispositivo do cartel como a boa maneira de trabalhar em grupo. Agradeço aos que aceitaram coordenar os seminários das segundas feiras: Ana Lúcia Lutterbach Holck no Seminário do Passe; Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros no Seminário Clínico; Elisa Alvarenga, Glória Maron, Maria do Rosário do Rêgo Barros e Paula Borsoi que junto comigo formaram o cartel que coordenou o Conversas sobre o inconsciente e a formação do analista. Agradeço também à Ana Martha Wilson Maia que coordenou em parceria com a nossa saudosa Stella Jimenez os encontros do Psicanálise e Cinema, e ao Conselho da Seção Rio que esteve à frente do Seminário de Orientação Lacaniana e durante a nossa gestão foi presidido por Maria Silvia Hanna e posteriormente Ondina Machado com quem fizemos uma excelente parceria. Agradeço a cada uma delas.

O primeiro ano foi marcado pelas águas: transbordamento de caixa d’água, inundação da casa, chuvas imensas na cidade com alagamentos e enchentes. Foi preciso fazer obras na sede da Seção e chegamos a cancelar atividades nos dias em que a cidade esteve intransitável. Ainda assim foi um ano que abrigou um trabalho muito intenso nos seminários e nas atividades abertas a outros campos de saber sob a rubrica da diretoria de biblioteca e de cartéis e intercâmbio, como os vários lançamentos de livros, os encontros do Leituras em cena e as Jornadas de cartéis. Tivemos também belas Jornadas de Seção coordenadas por Tatiane Grova e Marcia Zucchi cujo tema foi: A vida (não) é um sonho: real e surpresa na psicanálise. Recebemos nesse evento Mauricio Tarrab (EOL) e Alejandro Reinoso (NEL) e ao longo do ano, em diferentes atividades, muitos convidados de outras Escolas da AMP como Miquel Bassols (ELP), Marina Recalde (EOL), Irene Kuperwajs (EOL), Raquel Cors Ulloa (NEL). Isso tudo na época em que a casa da Seção ainda era o espaço físico que acolhia a presença dos corpos, o nosso vai e vem de cada dia.

No ano seguinte, mal inauguramos a casa depois da reforma e fomos surpreendidos pela pandemia que nos obrigou a buscar meios de seguir trabalhando em condições inéditas. O sonho da escola oásis como espaço de resistência e autonomia, ponto de parada incluindo as conversas na calçada e a circulação dos corpos precisou ser substituído por uma escola virtual.   Fomos arrancados da rotina e precisamos criar novos arranjos, conexões, espaços de encontro online para que o trabalho de Escola não fosse interrompido e o isolamento não fosse ainda mais brutal do que já se apresentava. Olhando pra traz me dou conta do quanto foi difícil e também do quanto foi fundamental não parar, não adiar, seguir em frente sem ficar esperando a luz no fim do túnel como recomendou Miquel Bassols[2].

As atividades online nos deram a chance de rever amigos e colegas, falar de psicanálise, seguir trabalhando para repensar a clínica nesses tempos loucos. Foi a maneira que encontramos de responder às contingências afirmando o trabalho de Escola. Me pergunto agora em que medida nesse cenário, foi possível fazer Escola de acordo com o que Lacan propôs no Ato de fundação: lugar de refúgio, base de operação contra a o mal estar da civilização[3]. Acredito que muitos de nós tiveram a experiência de encontrar refúgio, abrigo e o prazer da convivência ainda que mediada pelas telas em uma ou outra atividade da Seção durante a árida travessia que ainda está em curso.

Nessa travessia seguimos sem o clarão do fim do túnel, mas não às cegas. O tema dos Exílios que orientou as Jornadas Exílios: sintoma corpo e território nos ajudou a não perder o rumo. Foram Jornadas coordenadas por um cartel ampliado sustentado pela aposta forte no trabalho coletivo. Procuramos aprender a nos movimentar no difícil mundo virtual e criar conexões, canais de comunicação entre nós e também com outros saberes. Foi assim nas Jornadas e também nos outros espaços da Seção: o Seminário Clínico, coordenado por Marcus e Romildo tratou da clínica da época em torno do tema da angústia e da presença do analista; o Conversas sobre o inconsciente e a formação do analista ajustou o foco do tema da formação para pensar na articulação entre Instituto e Escola no novo cenário pandêmico e o Seminário do Passe que precisou ser interrompido durante vários meses em função da natureza do tema, esteve presente em dois momentos crucias: No lançamento das Jornadas com uma conversa entre Ana Lucia, Gustavo Dessal (ELP) e eu, e agora no encerramento da nossa gestão recebendo Anna Aromí (ELP), Secretária do passe da AMP, para um entrevista muito viva e esclarecedora da qual fizeram parte Ana Lucia como coordenadora e as colegas da diretoria como entrevistadoras. Mais do que nunca tem sido importante aprender a escutar, como nos recomendou Stella antes de partir. Não se deixar ofuscar pelas telas e suas luzes e saber escutar. Saber escutar como condição necessária para que as conexões do mundo virtual possam produzir de vez em quando efeito de encontro.

Acredito que esses breves momentos de encontro têm ajudado a iluminar a nossa trajetória túnel adentro. Como disse em resposta a Maricia na manhã de cartéis, não esperamos a luz do final, nem tampouco contamos com luzes fortes dentro do túnel. Aposto mais na orientação que vem da intermitência dos pequenos lampejos, me servindo da metáfora usada por Didi-Huberman no maravilhoso livro Sobrevivência dos vagalumes. Como forma de organizar nosso pessimismo diante do atual mal estar na cultura, é preciso apostar na potência das sobrevivências, saber enxergar nos lampejos eróticos, alegres e festivos que Pasoline encontra na arte e na poesia (E porque não na psicanálise?) uma alternativa aos tempos sombrios ou muito iluminados do fascismo triunfante daquela época e da nossa também (?). “Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão, outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado”[4]

Agradeço aos colegas da Seção Rio, a cada um, por sustentar com sua presença e desejo a nossa comunidade, nossa minoria, a Natalina, Rosane e Jéssica pela dedicação de sempre, a Sandra Landim pela coordenação do trabalho das mídias e a parceria no Letrear. Agradeço imensamente a Bruno Senna, Anna Luiza Almeida, Marina Morena Torres e Thereza De Felicce pelo trabalho gigantesco de bastidores que permitiu nossos encontros e muito especialmente agradeço a minhas colegas de diretoria Andréa Vilanova, Ana Tereza Groisman e Renata Martinez pelo ombro a ombro nesses dois anos, pelo desejo partilhado que fez efeito vaga-lume salpicando de alegrias a penumbra do túnel ao longo de toda essa travessia.


[1] Georges Didi-Huberman Sobrevivência dos vaga-lumes. Editora UFMG pg 154
[2] Bassols, M. Coronavirus: Qué nos podemos enconstrar al final del túnel? Zadig Espanha
[3] Lacan, J. Ato de fundação In Outros escritos. 1971 Jorge Zahar Editor
[4] Georges Didi-Huberman Sobrevivência dos vaga-lumes. Editora UFMG pg 160
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