Prezados colegas, desejo disponibilizar para vocês a gravura que ofereci em homenagem à nossa querida…
Stella, estrangeira – por Elisa Alvarenga
Conheci Stella, não sei precisar quando, nos Encontros da EBP. Eu a achava delicada, interessante, e gostava de conversar com ela. Fomos descobrindo interesses em comum, e o que mais nos aproximou não foi a psicanálise, mas o gosto por viajar. Havíamos visitado alguns lugares em comum em nossas andanças pelo mundo, ela me falava de lugares onde eu nunca tinha ido, eu lhe contava de outros que ela não visitara. Mapeamos alguns lugares onde nenhuma das duas havia estado, que gostaríamos de conhecer. Assim nasceu a ideia da viagem ao Marrocos, por ocasião do Congresso de Barcelona, em 2018. A ideia foi ganhando corpo, e cara, depois roteiro. Fernando Coutinho, amigo de Stella e companheiro de outras viagens, aderiu à proposta. Ele já conhecia o Marrocos, mas queria retornar, e achava que duas mulheres não deviam fazer aquela viagem sozinhas a um país predominantemente muçulmano.
Essa viagem, com Stella e Fernando, foi para mim um sonho. Não apenas pela beleza das paisagens, que cruzamos de norte ao sul do país, guiados por um motorista berbere, que nos fazia ouvir as melodias de sua cultura e nos apresentava as comidas de cada lugar. Cruzamos o Atlas, visitamos ruinas romanas e as medinas das cidades imperiais, sempre nos hospedando nos Riads, pequenos palácios feios por fora e preciosos por dentro. Mas o mais rico desta viagem foi compartilhar com Fernando e Stella as andanças, comidas, descobertas e conversas, em um universo tão estranho para nós e ao mesmo tempo tão acolhedor. Pudemos compartilhar, no nosso amor pelo cinema, alguns filmes delicados sobre a cultura marroquina.
A gentileza de Fernando tinha seu contraponto na autenticidade de Stella: quando o guia queria parar o carro, em um ponto turístico, para tirarmos fotos com macacos, Stella não hesitou em lhe dizer que aquilo não nos interessava. Na sua seriedade decidida, ela dizia ao jovem motorista que ele não podia dirigir e falar ao celular ao mesmo tempo. Sempre corajosa, enfrentou o medo genuíno de subir em um camelo e atravessar o deserto até o acampamento onde passamos a noite.
Me impressionavam seus vastos conhecimentos e sua memória dos detalhes, dos nomes e das histórias. Sem as pesquisas e escolhas de Stella, aquela viagem jamais teria sido tão mágica e inesquecível. A cidade azul – Chefchaouen – e o Jardin Marjorelle, em Marraquexe, foram pérolas encontradas graças aos dois amigos. Num fim de tarde, nos demos ao luxo de tomar uns drinks nos jardins de um hotel de luxo, onde Stella comentou, com sua firmeza habitual, o que Jacques-Alain Miller havia formulado em um de seus Cursos. E aí entramos em um outro capítulo: o do saber imenso e sutil de Stella, cujo sabor pude desfrutar mais uma vez nos dois textos que ela escreveu pouco antes de nos deixar: “Democracia e psicanálise: a vida exige coragem” e “A vingança do real”.
Um ano depois de nossa viagem perdemos Fernando Coutinho. Foi um duro golpe para Stella. Pouco antes, almoçamos juntas no Instituto Moreira Salles e fomos ver Tarsila do Amaral no MASP, com Angélica Bastos, uma amiga em comum, por ocasião do Congresso da EBP em São Paulo. E pouco depois, por ocasião do ENAPOL, almoçamos novamente juntas as três: foi a última vez que vi Stella e passei com ela um bom momento.
No dia 23 de abril escrevi a Stella para lhe dizer que havia visto sua live com os psicanalistas pela democracia e fiquei com saudades. Ela estava linda nesse vídeo. Conversamos um pouco no whatsapp sobre o momento e ela me disse: “Espero que isto acabe algum dia. As perspectivas são ruins”. De fato. No dia 19 de julho, Angélica me ligou para contar as tristes notícias. E 10 dias depois, Stella se foi.
Graças à gentileza de Andréa Reis, pude participar da homenagem feita a ela pelos colegas do Rio e despedir-me, assim, um pouco dela. Foram momentos de muita emoção e Cecília, falando do amor de sua mãe pela psicanálise e por seu trabalho, me tocou profundamente. Ali entendi que minha afinidade com Stella era da ordem de uma “relação intersinthomática”, como diz Lacan em 1978: “como então comunicar o vírus desse sinthoma sob a forma do significante?”, ele pergunta. É o que estou tentando fazer aqui. Encontrei em Stella algo da estrangeira que habita em mim.