Em um cenário de perdas e desamparo, a psicanálise revela-se uma trincheira contra a pulsão…
O real impossível e uma possível nova aliança
Um comentário a partir do convite da Diretoria da Seção-Rio, sobre o texto de Ruth Cohen publicado no numero de 15 de maio de 2020 da Correio Express
https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/05/15/rupturas/
Por Ana Beatriz Freire
O que pode o analista produzir com sua presença/ausência nos tempos de pandemia devido ao virus Covid 19? Qual as possibilidades do analista estar na função presente nos atendimentos on-line? Diante da contingência do real que nos leva a política universal de isolamento, como podemos responder, com a psicanálise, no singular de cada sintoma que se constrói para além, ou com, o universal ( universal da pandemia que exige o isolamento para todos). Qual a relação possível e a não relação entre ciência e psicanálise? Como reconstruirmos nossas fantasias depois desse automaton que se rompeu, questionando os alicerces sobre os quais nossa realidade fantasmática se sustentava? Ou ainda, nas próprias palavras de Ruth Cohen, “nosso desafio será pensar o que sustenta e sustentará daqui pra frente o discurso analítico. Ou mais, com que formato de espaço e tempo podemos fazer suplência a esse furo e, com que tecido vamos suturar a ferida que se abriu?” ( sic Cohen). Como observa Miller, com a separação natureza e real, temos uma grande desordem, sem a garantia da ordem simbólica, o que tornou o real sem lei.[i]
Quanto à função do analista, a autora nos interroga: “Quem analisa hoje? Qual o lugar da interpretação? Em que ponto estamos na transferência? Como agir com seu ser? “ Qual o lugar, acrescentaria, dos objetos olhar e voz nessas pequenas janelas maquínicas da internet?
Essas são algumas interrogações que, nesse breve e instigante ensaio, Ruth Cohen nos convida a pensar. Dentre as diversas vertentes que sua reflexão nos convoca, gostaria, a partir da sua hipótese sobre o rompimento do automaton, da realidade fantasmática, de pensar em particular sobre a relação ou uma aliança possível entre ciência e psicanálise. Frente ao real, que não cessa de não se escrever e se alastra, contingentemente, sob forma mortífera, como nós, como analistas, podemos responder aliados, ou não, ao discurso da ciência?
Sabemos com Lacan que o sujeito da psicanálise, mesmo que paradoxalmente, implica em sua práxis o sujeito da ciência [ii]e, que foi com a ciência, que se constatou ser o real impossível. O real é impossível porque como afirma Lacan, não cessa de não se escrever[iii]ou, como constataram os cientistas (com A. Koyré), não há possibilidade de tudo se apreender pelas fórmulas científicas. Se o real é impossível no ideal de ciência, coube à ciência ideal[iv] no saber fazer e com sua techné, em “seu casamento com o capitalismo” (sic Cohen), prometer a possibilidade de tudo saber e, consequentemente, poder. Todo saber que acredita construir através do uso de uma certa ciência, técnica, cujo paradigma se pauta no ideal de máxima produtividade e operação sobre o real, sobre os corpos não apenas para dominá-los, mas para torná-los dóceis ( como constata Foucault) e produtivos ou como afirma Lacan, foracluindo o sujeito[v].
Resta-nos interrogar, após e durante esse instante de ver nessa pandemia, quais consequências poderemos tirar, como psicanalistas, a posteriori, dessa relação e nos interrogarmos sobre a possibilidade de uma “nova aliança “ entre o real (da psicanálise) e a ciência. Talvez as escolhas sejam forçadas: ou denegamos, nessa luta contra o vírus invisível, a aliança com a ciência (como quer a universal dos fanáticos/a-políticos/ ditos religiosos) ou apostamos em uma “nova possível aliança” onde não negamos que o real continua impossível, mas que possamos conviver como parceiros com a ciência, através não apenas de desconstruções próprias da ética da psicanálise, mas, como sugere Marcus André[vi], afirmando alguma realidade contingente e estratégica. Um pouco de realidade, como propunha os surrealistas, para que possamos também continuar parceiros de nossas pequenas invenções e sintomas.