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Jornadas 2020 Exílios: O que nos resta?

Geisa de Assis 

A mim me foi dada a tarefa de transmitir o que pude recolher do acontecimento que foram as Jornadas de 2020. Nunca estive tão próxima de uma jornada de nossa Escola. Pude perceber que ela se dá em elaboração, um intenso trabalho de elaboração que ainda está acontecendo. Para mim é difícil falar da alegria que vimos como efeito deste intenso trabalho sem falar do desejo que o iniciou e o atravessou em todo instante. Acredito que este desejo transmitido se apresenta em duas apostas: a primeira, em abrir as Jornadas e a Escola, aposta que se exprimiu na estratégia em fazer circular outros corpos, outras vozes, outros saberes, outros modos de gozo e, a segunda aposta foi não apostar no mestre como o meio principal de transmissão.

No início a questão sobre o que é a Jornada para a Escola nos atravessava constantemente. O nós aqui diz respeito ao cartel de coordenação das Jornadas. Aqui vale um desvio para falar sobre o cartel que compôs a organização. A aposta em fazer circular e atravessar nossos corpos, outros saberes, saberes não instituídos na nossa Escola, foi levada tão a sério que eu, Thereza De Felice, Marina Morena Torres e Anna Luiza Almeida fomos convidadas para participar deste cartel. Deste lugar êxtimo, nos colocamos a (muito) trabalho, mas não sem dar algum trabalho. Demos o pontapé inicial do argumento, encabeçamos comissões, coordenamos mesas… Suamos.

Voltando… Uma pergunta aparecia nas reuniões da coordenação de diversas maneiras: Quem queremos que vá às Jornadas? O que queremos transmitir? Como transmitir a psicanálise sem o lacanês? Sabíamos que abrir as Jornadas iria mudar o objetivo instituído delas, o de transmissão do trabalho da Escola para ela própria e sua comunidade de interesse, para o desejo de transmissão do trabalho da Escola e de sua comunidade de interesse para ela mesma e para a cidade e, neste mesmo movimento, fazer com que a cidade faça sua transmissão à Escola e sua comunidade de interesse. Vemos isto no texto de Maricia Ciscato quando ela aponta que o analista frente às diversas apresentações da segregação pode muito e pouco, muito e pouco que se apresentam na Escuta!

Assim, o grande desafio ao qual a Diretoria convidou a todos nós, foi dar o devido peso aos significantes que nomeiam nossa Escola: Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. A Diretoria e a comissão de organização que formaram o Cartel de Coordenação estavam orientados por estes significantes: A Escola de Lacan, seu ensino e sua transmissão da Psicanálise no mundo; a Brasileira que se apresenta para nós no Rio de Janeiro, estado onde se encontra o trabalho desta Escola (no Brasil e no Rio) e para onde direciona sua transmissão, estado que pode se apresentar como questão, devido também a estrutural segregação que o fundamenta. Acredito que este é um dos efeitos mais importantes deste trabalho que foram as Jornadas: o atravessamento e o enodamento do nome da Escola como orientador de trabalho e transmissão.

A outra principal aposta, orientação de desejo de Escola Brasileira de Psicanálise, foi não apostar no mestre, o que já indica que há mestres entre nós. Nós, desta Escola, por transferência, acreditamos na palavra dos mestres. Essa aposta em não apostar nos mestres, em não transmitir a Psicanálise apenas através da palavra dos mestres, nos levou a organizar as Jornadas de outra maneira: três mesas de “parada e decantação” do trabalho já iniciado entre Cartel de Coordenação e convidados, as Estações; três Rodas de Conversa trabalhadas e conduzidas pelos cartéis iniciados a propósito do tema das Jornadas (Exílios) e três Cursos. Esta aposta tornou-se uma aposta da Escola e o chat nos ajudou nisso. Presenciamos a palavra circulando entre muitos, para além dos mestres.

A organização das Jornadas, quase que inédita, nos diz deste desejo orientado de transmitir a Psicanálise através do trabalho desta Escola ao Brasil, e mais especificamente ao Rio de Janeiro e, no mesmo movimento, ser tocado pelo Brasil e pelo Rio.

A cidade se presentificou no olhar de Luiz Baltar, que nos apresentou uma estética carioca; na escuta de Mariana Fraga, que iniciou o seu trabalho de escuta aqui no Rio, escutando a loucura tão característica de nossa cidade, que de alguma maneira a ensinou a ouvir a loucura não importa onde Mariana estivesse. Cidade linda e louca que se fundou no sangue e no suor africano, como explicitou Flávio, que hoje lança mão de diversas tecnologias, como as palafitas, por exemplo, como defendeu Wallace. Cidade “identidade estilhaçada”. Por fim, estilhaçar a identidade nos apresentou ao “afeto rígido” que a sustenta, interpretação precisa que Aline nos deixou.

O que restou de toda a abertura possível e muito gostosa de presenciar – havia muita animação, alegria e surpresa por estarmos presenciando tamanha circulação da palavra – nas Estações, as Rodas de Conversa e os Cursos foi este “afeto rígido” (gozo?) que instaurou uma pergunta para mim: O que não foi possível ouvir? Por que é tão difícil ouvir que não somos todos leopardos? O que não temos de leopardo? Se não somos leopardos, o que somos? Nós produzimos leopardos?

Aqui, portanto, finalizo, primeiro pedindo desculpas por transmitir tão pouco. As Jornadas Exílios foram tão múltiplas e grandes, apesar de caber numa tela de celular, que é da ordem do impossível transmiti-las todas, só é possível transmitir alguma coisa. É com esta Coisa que trabalho aqui e será com a Coisa de cada um diante deste evento especial que poderemos fazer uma bricolagem, a única saída possível.

Agora sim finalizo, com um incômodo que me acompanha desde o início, desde a primeira reunião e que só agora posso transmitir: E os não-exilados? Não iremos questionar sua posição e qual sua relação com o exilado? Eu diria que em parte o não-exílio foi questionado, mas ainda há um gozo em não querer saber dos exílios que “empreendemos e endossamos” a partir de nossa posição de não-exilado, ou melhor, do gozo que temos da posição de exílio do outro. Este é o meu resto, meu objeto a causa, das Jornadas 2020 que estava lá desde o início: afeto rígido.

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