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2020

SEMINÁRIO CLÍNICO

Clínica da Extimidade: interpretação, construção, invenção.

Coordenação: Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros

Trata-se de demonstrar como a atopia do psicanalista, solidária do real de uma análise, incide em suas invenções.

Desejo, angústia, certeza

A prática da Angústia II (19/10/20)
Seminário Clínico da EBP-Rio
Coord: Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros

Abertura

Marcus: Estamos aqui para um último encontro dessa sequência. Segunda sequência do Seminário Clínico deste ano, que intitulamos a prática da angústia.

Lembro a vocês que selecionamos a lição 12 do Seminário 10 para abordar a angústia tal como Lacan a traz em seu ensino. Foram três encontros.

No primeiro encontro abrimos a discussão entre medo e angústia. A ideia geral é que a angústia marca a aproximação de um encontro, que implica toda uma perturbação. Só que não é medo, porque o objeto que se aproxima é muito especial. Aquilo que ela apresenta pode ser pensado como o encontro com um objeto desde que seja um objeto muito especial, uma espécie de desobjeto, abjeto, como Lacan falará às vezes que é o nosso objeto a. É o encontro com nossa própria estranheza, a raiz da estranheza.

Mas é o que se faz com isto que será decisivo. Por isso, a partir da angústia, Lacan teoriza o ato, sua teorização para o que ocorre neste momento em que, como vimos, a falta falta. Por isso, no segundo encontro, o anterior a este, discutimos a relação entre a angústia, a certeza e ato.

Na vida, reconhecemos a nós mesmos pelo fato de que desejamos, nos movemos pelo desejo. Quando encontramos com este ponto em que o desejo, como falta essencial, parece faltar, quando é como se tudo estivesse ali, nada estivesse mais faltando, isso é uma crise, um abalo na estrutura da vida cotidiana. É neste ponto de crise que um ultrapassamento pode acontecer, não no sentido de uma superação, mas no sentido de, como vimos, deixar cair esse objeto, deixar alguma coisa para trás e poder seguir de outro modo, como se houvesse, depois do ato, uma “nova falta” em que o sujeito se reencontra em outro lugar, ou como diz Lacan “o sujeito, após o ato, encontra sua presença renovada”.

A terceira parte da lição introduz o tema que abordaremos hoje. O que discutiremos um pouco é o coração do desejo. Deixamos cair alguma coisa que instaura a falta que permite que um objeto venha a entrar na cena do seu desejo. Por isto dizemos que o objeto a está atrás do desejo. É quando ele cai que o desejo se lança. O desejo não se lança em direção ao objeto em frente dele, isto é aos objetos da demanda. Estes são variados, são mais ou menos fixos, mas se não tiver a instauração da falta não tem como se lançar.

Então, no ato, mais especificamente no ato analítico, se trata de deixar cair a queda. Este é o ponto de hoje, mas antes precisamos retomar a ideia da queda como instaurando o desejo.

Na última seção da lição 12, Lacan vai introduzir essa ideia. É uma introdução a partir das coordenadas que eram as mais importantes do momento, que eram a de uma discussão sobre o falo e a castração. Ele introduz o tema da queda trazendo a mesma ideia do que dissemos, mas sem o objeto a, com o falo. O essencial dessa lição é quando ele diz que o falo é um órgão que funciona pela sua detumescência e isto é o ponto chave que falamos no último encontro. É quando cai alguma coisa que é possível nos instaurarmos no desejo.

Nesse sentido é porque o falo cai que há desejo e não porque ele se mantém ereto. Dito de outro modo, o falo funciona como um operador de negatividade e não de positividade.

Não podemos esquecer que estamos falando de falo, como falo simbólico e não imaginário. O primeiro é o da falta, o segundo o da positividade idealizada, o que completaria e na completude daria poder. Não. O falo que está no centro da clínica psicanalítica e no coração do desejo é o falo que cai, que nunca está ali, que estava, mas não está mais. E esse falo não dá poder, mas dá desejo, desejo de tentar de novo, por exemplo.

Isto é o que está em jogo na última parte da lição, mas achamos que podíamos retomar isto mais em termos de objeto a e menos do falo como objeto simbólico, significante da falta.

A maneira mais clara de fazer isto foi começar pela lição seguinte, a primeira parte da lição 13, que se chama “Aforismos sobre o amor”. É no amor que a falta vai aparecer como causa.

Comecemos por este espaço mediano, como Lacan fala da angústia. A partir daí, pensaremos sobre como se mover em direção ao desejo ou a outra coisa a partir do ato e da angústia. Depois, vamos a uma discussão, se conseguirmos chegar lá, sobre o amor.

 

Ponto mediano

Romildo: A grande questão do seminário inteiro e da discussão toda sobre a angústia é a de localizar onde e como se dá a passagem do gozo ao desejo. Esta é a questão mais geral que permite que se introduza a questão da angústia, mas não só da angústia. Veremos daqui a pouco que a questão do amor também passará por aí.

Lembramos, na página 192 do Seminário 10, um esquema muito simples que Lacan desenha.

A

S Gozo

a

Ⱥ

Angústia

$

Desejo

A angústia entre o gozo e o desejo         

 

Vocês estão vendo, são três andares: no primeiro, A sem barra, S sem barra; no segundo, a, Ⱥ; e no terceiro andar, $. No primeiro, gozo; no segundo a angústia; no terceiro o desejo.

O mais importante para se entender aquilo que Lacan chama dos três patamares é entender que o primeiro andar, usando um termo que Lacan usa, é mítico, quer dizer, nem existe $, nem existe S sem barra. Em Kant com Sade, o objetivo na fantasia de Sade é atingir o S sem barra. Este S mítico.

Vocês veem que para se passar ao nível da experiência desejante a angústia funciona como mediana, passa-se pela angústia para sair do gozo ao desejo. O que é interessante é que fala-se em sair do gozo ao desejo, mas o gozo é uma hipótese retroativa, já que não se situa este A e este S no campo da experiência. Ele é uma hipótese subjetiva e retroativa: através ou por meio do movimento da angústia ou da atuação da angústia é que o gozo se revela. Com a atuação da angústia existe a perda do objeto que dá o Ⱥ e o $ na dimensão do desejo.

Parece-me que este esquema de Lacan resume talvez toda nossa discussão sobre a angústia.

O aforismo lacaniano diz que a angústia é a única versão subjetiva do objeto a. Pensando neste esquema, podemos acentuar a palavra subjetiva. É a única versão em que de fato se pode falar de sujeito. Sujeito como existência, não como hipótese mítica, como é o caso no primeiro andar deste esquema.

A função da angústia – é uma das afirmações de Lacan – seria a de funcionar como a mediana, aquela que está no meio do caminho entre gozo e desejo.

O que é interessante é que como o primeiro andar do gozo é hipotético, é mítico, somente com a passagem para o desejo, com a experiência da falta do desejo é que se vai hipotetizar a positividade do gozo. É muito interessante, pois situa a angústia como nível 1 ou 0, da experiência subjetiva, quer dizer, ela é a única versão subjetiva do objeto a. Ou seja, o objeto a somente aparece como experiência de sujeito com o afeto da angústia. Isto me parece muito interessante. Todo o resto que discutimos neste seminário, a diferença entre angústia e o medo, a questão do objeto indeterminado, do objeto da angústia, se dará na passagem da angústia para o desejo, ou seja, onde já exista a dimensão da falta do objeto.

No primeiro andar, nenhuma destas hipóteses é pensável. Somente na articulação entre angústia e desejo é que se pode pensar retroativamente no gozo, no A e no S sem barra.

Marcus: Vale retomar isto com o tema da queda, pois Lacan falará demais em queda. No primeiro nível, que seria do gozo, vamos dizer, o gozo é absoluto. É o gozo se pudesse ser totalizado, se só gozássemos. Não é uma experiência humana.

Romildo: Lacan chama este S sem barra de sujeito do gozo.

Marcus: Podemos imaginar isto assim: seríamos o animal na natureza, a natureza não barrada, o A e o animal completamente imerso S. Ou então, Adão e Eva no paraíso, talvez. Coisas assim.

Romildo: Ou mesmo na fantasia sadiana, quer dizer, o objetivo final do Sade é chegar a uma profundidade tal da divisão do sujeito que ela se anule. No esquema do Lacan, num movimento de baixo para cima. A experiência para o esgotamento da experiência.

Marcus: Eu estava pensando no movimento de cima para baixo, mais mítico, mas podemos fazer de baixo para cima também. Na verdade esse andar “cima” não existe, este espaço de um gozo total. Chamamos de útero da mãe, coisas assim.

Romildo: É mítico. É alguma coisa que precisamos para falar do existencial depois.

Marcus: O que vamos pensar é que só tem gozo quando estamos no segundo plano, no plano da angústia. Esse é o plano do gozo “que temos para hoje”. Colocar o gozo lá em cima tudo bem, mas o único gozo que é subjetivável é este que está no plano da angústia. Ele só se apresenta quando deixamos cair alguma coisa do que seria o gozo absoluto.

Romildo: Quer dizer, tudo isto só pode ser pensado se existe uma maneira do pequeno a equivaler ao sujeito, em algum plano. Quer dizer se não existe esta hipótese, ou partimos direto para o mito como nos parece que Lacan faz no Seminário 4 na ligação de Hans e a mãe dele antes do sintoma fóbico. Então, se não tem como dizer a = sujeito ou sujeito = a, não temos como fazer este movimento. Ficaremos no plano do mito, que é estável, ele é parado.

Marcus: Este paradoxo é que é muito difícil, temos que imaginar e é isto que Lacan fará nesta parte 3 da lição 12. É imaginar que o que chamamos de orgasmo é exatamente quando cedemos do gozo máximo e não quando o atingimos. O que chamamos de orgasmo? O que chamaríamos de gozo fálico? É quando cedemos, largamos, nos deixamos cair. Quando nos deixamos cair temos alguma coisa do nosso próprio ser que desistimos, vamos dizer do gozo absoluto, e nisto gozamos. Gozamos antes e perdemos porque gozamos, aí queremos de novo. Este ponto quando cai alguma coisa é o lugar do gozo, este é o ponto da angústia.

Romildo: Esta articulação que Lacan faz, que é muito conhecida, entre orgasmo e detumescência.

Marcus: Ele dá um exemplo de alguém que entrega uma prova, um trabalho ou uma tese e tem um orgasmo na entrega. Nunca vi isto na minha experiência, mas vamos imaginar que isto aconteça. Ele quer assimilar que esta entrega tem um efeito de gozo. Ela não é feita de perda. Temos um efeito de perda cinco minutos depois. Por isto que o obsessivo segura, pois ele não quer perder. Ele não quer gozar.

Romildo: Esta é a uma maneira de ilustrar este segundo andar do esquema lacaniano.

Marcus: Estamos descendo, quando descemos, fica estranho por que chamar de angústia. Mas quando vamos de baixo para cima dá para entender por que chamar de angústia este espaço. De cima para baixo este espaço seria, digamos o orgasmo. Ou o momento de um prazer por ter saído do êxtase, saímos do absoluto, tem alguma coisa que é a satisfação. E a partir daí descemos para o andar de baixo e agora somos um ser desejante, perdemos alguma coisa que acabamos de experimentar e queremos de novo.

Romildo: Ou seja, para que o sujeito existente seja pensado é preciso que o objeto se constitua numa perda do lado do Outro e o sujeito se constitua nesta perda, isto é, que vale ao deixar cair, que torna pensável a existência do gozo. Por exemplo, quando Lacan fala do orgasmo, é neste sentido, orgasmo não é um gozo mítico. Ele supõe a queda de um objeto. A queda deste objeto constitui existencialmente, se podemos dizer, o Outro, este que tem barra e o sujeito que tem barra. Existe uma perda geral e é com ela que se constitui, primeiro o a, segundo o sujeito como a e terceiro a fantasia como articulação sujeito/objeto. Acho que estas três dimensões ficam explicadas a partir desta precipitação, digamos assim, do objeto quando sai do gozo mítico. O que é bem interessante é que neste quadro a angústia passa a ser uma experiência fundadora.

Marcus: Aí fazemos o caminho inverso. Começamos no andar lá embaixo, sujeito do desejo, sou alguém para quem falta, eu estou na falta, eu busco, eu tenho saudade, eu quero repetir o gozo que sei que já vivi. Como encontramos isto? Encontramos um lugar, este andar do meio que seria este encontro mediano, que Lacan chama angústia, porque o afeto de angústia fala disto. Encontramos um espaço de completude, digamos assim, onde a falta falta. Quando chegamos neste espaço de completude o que experimentamos é a angústia. Mas se deixamos cair alguma coisa, voltamos para o espaço do desejo. Em chegando neste espaço da angústia, chegamos mais próximo possível do gozo absoluto. E experimentamos algo disso.

 

O esquema do Rubicão

Romildo: Isto está ligado àqueles três momentos que distinguimos há dois encontros atrás, entre a falta, a falta da falta e que foi chamado aqui de uma nova falta, pegando o exemplo de Julio Cesar antes e depois de atravessar o Rubicão. É como se o Julio Cesar viesse de baixo, ele é um general no plano do desejo. Ele quer, por exemplo, fazer a guerra ou outras coisas, ele vai até a angústia, ele entra neste plano. Digamos que esta é a hora que ele está no Rubicão, ou quase, ou no limite, que foi a maneira que você definiu essa posição da angústia. Ele chega no limite. Ficamos achando que o ato de atravessar o Rubicão é ir para o lado de lá. Não é. Ao invés de ir para o gozo é voltar para cá, só que num novo lugar. O Rubicão é esta linha da angústia. Tem o Julio Cesar antes no nível do desejo e outro Julio Cesar no nível do desejo quando ele volta. O Rubicão é a linha da angústia se colocarmos na mesma linha o ato. O ato retirando da angústia sua certeza, como Lacan diz no Seminário 15.

Marcus: Como é angústia e ato?

Romildo: Você está dizendo que a angústia é o Rubicão. Eu estou dizendo que no Rubicão também está o ato. Só que o ato funciona na medida em que ele retira da angústia sua certeza. Sem a certeza retirada da angústia o ato é a paralisia obsessiva, por exemplo. Ele não se realiza. Dá pra ver?

Marcus: Dá. Coloquei a certeza aqui.

Romildo: Neste andar, estão pequeno a, Ⱥ e angústia, e mais uma palavra que acrescento, o ato. Daqui a pouco ainda falaremos do amor, que também está por aqui. Quer dizer em níveis diferentes. Mas acho que este outro aforisma de que o ato retira da angústia sua certeza é precioso para discutir esta lição 13.

Acho que o mais importante na leitura clínica deste esquema é pensar que o gozo só tem existência a partir, de uma retroação da angústia. De cima para baixo, do gozo para a angústia, o gozo tem que ser pensado como sem existência, mítico. Ele é um apoio mítico para se pensar a angústia.

Marcus: Colocaremos aqui o orgasmo para não ter dúvida.

 

Só temos acesso ao gozo como orgasmo ou como algum prazer, é claro que Lacan falou depois de um outro gozo. Podemos imaginar que temos notícias do plano da experiência subjetiva desse gozo mítico. De qualquer maneira, não é o gozo em si. O gozo em si é puramente mítico, seria a morte.

Quando estamos falando que é retroativo, estamos dizendo isto, vamos do sujeito para a angústia ou para o encontro com este objeto estranho e a volta dele é a experiência do prazer.

Romildo: Dá para ver aí claramente a função primordial que existe na ideia de que o sujeito se move com a fantasia. A fantasia é uma oposição segundo Lacan que existe entre o $ e o a. É esta posição que constitui a realidade psíquica como Freud chamava.

É isto que Lacan diz, que é conjunção e disjunção ao mesmo tempo.

Qualquer experiência vai se dar com o apoio da fantasia, pois a fantasia é a realidade. Desde Freud.

Marcus: Olha o que você está dizendo, que este a <> $ é a nossa realidade. Não tem realidade do gozo, tem a realidade do gozo parcial, o objeto a é o gozo parcial que é o gozo que podemos ter.

Romildo: Até certo ponto, por exemplo, se espera que possa existir uma travessia da fantasia. A travessia da fantasia desconjunta esta ligação que funda a realidade. Na travessia não podemos falar de realidade. É um espaço irreal, talvez não mítico, mas irreal.

Marcus: Aqui entre nós, é um espaço muito frequentado nos finais de análise. Tem qualquer coisa da experiência da transferência.

Romildo: O que se espera de um AE é que ele dê testemunho, se der testemunho só disto, já fez muita coisa.

Marcus: A transferência é uma relação a-passional, mas uma relação que enquadra a realidade. Quando estamos na análise estamos na realidade, por mais que dizemos que é a realidade subjetiva, estamos na vida. Quando vai chegando neste ponto que a fantasia está meio desmembrada, ou está nos seus cacos ou está meio frouxa, essa paixão da transferência vai ficando um pouco como se fosse uma ultrarrealidade, não é irreal, como falamos um pouco surreal. E tem muito testemunho dos AEs que vão voltar para a vida a partir deste espaço desrealizado.

Romildo: Aí aparece o que chamamos meio selvagemente num desses dois últimos seminários de uma nova falta.

Marcus: A nova falta eu vou tentar desenhar aqui. Está tudo no esquema, a nova falta.

Romildo: Este esquema é uma preciosidade.

 

Marcus: Eu queria desenhar este eixo que você está falando, mas eu não estou conseguindo fazer, mas seria descendo aqui. Quando você diz que a nova falta é esta volta para $, volta para o sujeito, depois da experiência da angústia ou da experiência do que chamamos de ato, que é um deixar cair. Júlio Cesar deixa cair o general, quando ele atravessa. Mas ele não faz: “Adeus general”, como nos filmes. Deixamos cair a minha criança que está traumatizada. Deixo cair meu pai que está em coma. Não é como nos filmes. Deixamos cair aquilo que está nos prendendo para podermos ficar leves. É verdade que ao me lançar na experiência da falta da falta, quando conseguimos estar nela o bastante, melhor do que se lançar, alguma coisa cai, essa alguma coisa que cai é o novo sujeito. É um novo modo de estar no gozo ou no prazer.

Romildo: É um novo modo. Existem milhões de perguntas, por exemplo, aqui o próprio Lacan fez: como é que vive a pulsão alguém que atravessou a fantasia? Esta é uma pergunta que Lacan se faz e talvez a finalidade do passe seja responder esta pergunta. A finalidade principal do passe é saber como vive a pulsão alguém que atravessou a fantasia. Ele vai testemunhar de um certo tratamento do mito.

 

Primeira discussão

Pergunta: A Angela Negreiros está lembrando que consta na história que Julio Cesar transava com a mãe na véspera da passagem do Rubicão. Esta eu não sabia.

Romildo: Lacan comenta no Seminário 15, ele não conta esta história, mas ele diz que atravessar o Rubicão para Júlio César era penetrar a mãe, a terra mãe. Eu não sabia desta história, mas lembro deste comentário de Lacan.

Perguntas: Sandra Viola perguntando que vantagem Maria leva a partir da frase que a Marcia Zucchi repetiu: do gozo só temos acesso enquanto efeito e a partir da angústia retroativamente?

Marcus: Que vantagem? É isto que tentamos falar Sandra, agora neste momento, tem alguma coisa de desrealização da fantasia, tínhamos um enquadre quase que montado em mim, do acesso meu ao prazer, é sempre uma chegada ao objeto mais ou menos no mesmo lugar e o recuo dele. É este recuo que dá prazer, a fantasia é a chave desta repetição e ao mesmo tempo é o esteio do desejo. Pois a cada vez vamos recuar do objeto, e a cada vez vamos voltar a ele. Esta é a fantasia.

Quando pensamos num atravessamento da fantasia, uma espécie de desrealização da estrutura que era a estrutura do meu desejo, temos uma nova condição. Esta nova condição não será uma nova fantasia, mas será uma nova relação com este ir e vir. Este é o máximo de vantagem que Maria leva, que saberíamos dizer, pois não queremos dizer que vamos para outro espaço fora da fantasia. Afrouxar os parafusos da fantasia dá esse ganho, precisaríamos ter trazido algum fragmento específico. Mas pode ser uma discussão que ficará para as próximas.

Pergunta: Tem pergunta sobre a psicose, como isto tudo fica na psicose?

Marcus: Teríamos que repensar isto tudo na psicose. Alguns fazem isso, por exemplo, retomando em lugar da fantasia o delírio, aí fica tudo diferente. Talvez desse para manter algum tipo de analogia. Ou ao invés do delírio, uma construção não delirante, mas uma construção de algum tipo de aparelhagem subjetiva, algum dispositivo, uma bricolagem que permitisse esta manutenção do desejo pela perda de alguma coisa, o deixar cair de alguma coisa.

Nas experiências com o autismo, foi contado várias vezes.

Lembro de um caso, acho que é o Miquel Bassols que apresenta, de um autista que ele não escolhe um livro na prateleira, ele lida com o livro queimado. Ele pega um livro queimado, sem texto, sem nada, ilegível, mas este livro é que faz uma extração e que produz a possibilidade de um desejo.

Vemos que tem qualquer coisa que é necessário mesmo no plano da psicose, de um deixar cair. Neste caso precisamos incluir alguma coisa que deixa cair alguma coisa, incluímos o livro e deixamos cair toda linguagem queimando-a. Isto seria outra discussão também. Estamos falando mais na neurose.

Romildo: Uma questão importante é saber se e como se dá a extração de objeto na psicose. Nesta questão que você está tratando ela é caudatária desta outra mais geral.

Marcus: Quando falamos de extração do objeto temos a ideia que vem um cirurgião e extraiu. Estamos tentando mostrar que esta dinâmica é uma prática cotidiana de quando gozamos, ou quando vivemos algo que não é só o desejo, alguma coisa caiu, um objeto se extraiu. Só que nós neuróticos extraímos mais ou menos sempre o mesmo objeto que cai e nem conhecemos. Por isto vivemos o gozo mais ou menos parecido.

Romildo: Você falou neste instante do exemplo que Lacan dá, que também é aquele de alguém que vai entregar uma prova ao professor. Ele no ato de entregar ele goza. Ele ejacula, ele tem orgasmo. Acho que ficou faltando localizar a angústia, que é anterior a este momento em que ele entrega o trabalho ao professor. De onde está a angústia, completamos o quadro.

Marcus: Eu estava tentando voltar aqui, mas é isto mesmo.

Romildo: De tal maneira que o gozo prazer é impensável sem a angústia. Desde que articulamos gozo e prazer como orgasmo temos que considerar a angústia.

 

Amor

Marcus: Você diz que a experiência do prazer não se pensa sem um tanto de angústia.

Romildo: Acabei de pensar agora, estou testando e falando ao mesmo tempo. Vamos dizer assim: não é certo que o ato sexual seja um ato, no sentido lacaniano.

Marcus: Não é certo, não. Certamente, na prática não é.

Romildo: Não é! Pois é. Então, a articulação entre gozo e prazer que caracteriza o orgasmo não é pensável sem este nível da angústia.

Marcus: Só não é pensável como não é experimentável. A angústia não é só conceito.

Romildo: Aí depende. Não sei se é experimentado a cada vez, pode ser que não. Mas enfim é. Não dá para pensar sem ela.

Marcus: Entendo o que você quer dizer. Não estou dizendo que a pessoa tem que sentir angústia, mas se colocamos isto no plano da fenomenologia dos fenômenos, da descrição dos fenômenos e da coisa, acho que ninguém vai discordar que tem alguma coisa a ver com a angústia este momento que está chegando perto de alguma coisa e que é de certa maneira de recuo disso que é o efeito do gozo.

Romildo: E daí ganha sentido mais forte a definição, vamos dizer assim, de Lacan, da angústia como única versão subjetiva do objeto a. Existe nesta definição, o objeto e ao mesmo tempo sujeito. É única versão subjetiva do objeto a, ou seja, existe sujeito e objeto a, que é a estrutura da fantasia. Então, podemos falar da ruptura da realidade cada vez que exista a experiência do gozo, do gozo existente, do gozo que se pode experimentar. Não necessariamente do prazer.

Marcus: Não necessariamente, exatamente. Estou vendo várias questões e vamos passar para o amor, talvez tenha muita coisa que o pessoal ainda vai dizer e talvez voltemos para a angústia.

Perguntas: Só queria lembrar a Maria Helena que ele ejacula no auge da angústia. Realmente é por aí. E a Marcia falando das compulsões, é neste sentido, beber infinitamente o mesmo copo, é um pouco esta ideia de não recuar, ou melhor, ficar só no recuo.

Romildo: Quem fala: beber infinitamente no mesmo copo?

Perguntas: Ela pergunta se seria o equivalente de deixar cair, é a Marcia Zucchi que está citando.

Romildo: Eu sei, mas o citado é de quem?

Marcus: Não sei.

Romildo: Eu me lembro em Deleuze tinha um DVD do abecedário e ele que já bebeu, ele era alcoólatra, ele diz que o alcoólatra busca é o penúltimo copo. Que a distância entre o penúltimo e o último é impossível de medir. É até o penúltimo.

Marcus: E é no penúltimo que está o gozo, não o prazer, mas o gozo. O prazer é se ele vem para o antipenúltimo.

Romildo: O limite está no penúltimo, ele não fala assim, mas me parece que dá para dizer isto.

Perguntas: A Bianca lembrando o filme Lua de Fel, onde eles percebem esse gozo mítico que acaba morrendo mesmo. Ela deu o spoiler.

A Gisele diz: se não houvesse angústia no sexo, não haveria prazer. E nem repetição do sexo, que é o retorno da falta.

Um certo movimento cíclico.

Perguntas: A Ruth já traz a frase que seria a nossa passagem e a passagem é esta mesma. Voltaremos para o esquema para não ficarmos muito no ar na hora desta passagem.

Marcus: Isto lembra o esquema do Saussure.

Romildo: Logo antes deste esquema Lacan fala de   .

Marcus: No ponto do ato, que trabalhamos bastante, é sempre do cotidiano. No trabalho da sessão, há a angústia como um meio, mas não tem nada depois dela. Isto aparece claramente: na prática da angústia a ideia não é atravessar a angústia e do outro lado dela encontrar o gozo, encontrar o prazer, seja lá o que for. É uma aproximação da angústia no sentido ambíguo; ela se aproxima, nós nos aproximamos e nessa aproximação alguma coisa se extrai e essa alguma coisa que se extrai não levamos conosco, ela cai, e reencontramos de alguma maneira. Temos a história do que caiu e trazemos isto na próxima sessão. Saímos às vezes da sessão numa espécie de angústia e ali na escada, descendo a escada do analista, encontramos alguma coisa que já caiu. Não voltamos a desejar esta coisa, é uma coisa que caiu. Isto é o movimento do César que agora se transformou num analisante neurótico médio.

Não só este movimento do ato, da angústia, do objeto que cai e do gozo que se envolve e da nova posição do sujeito é o que acontece numa análise e em outros lugares. Há uma proposta da cultura de que, neste espaço da angústia, ao invés de ficar lá o máximo possível até que alguma coisa caia, o que temos que fazer é colocar no lugar da angústia um véu. Neste espaço, neste rio, colocar uma ideia, uma imagem, ou uma ilusão se exagerarmos, e isto seria a obra do amor.

Remeto vocês ao texto do Romildo que ele apresentou nas Jornadas, onde ele contrastava a ideia desse rio que desenhei que é um ponto mediano, um espaço mediano, mas vocês já entenderam, é mediano entre a vida e nada. É um espaço mediano e neste espaço mediano acontece a angústia, acontece o ato e acontece o amor, só que o amor se estabelece como se houvesse a possibilidade de uma mediação entre a vida que levamos e este espaço do gozo absoluto.

Romildo: Aí cabe a diferença que é fundamental no capítulo 13, que é o amor como mediação ou como mediador e a angústia como mediana. Isto ao mesmo tempo indica que estão no mesmo plano deste esquema, que é o plano do pequeno a e Ⱥ, mas ao mesmo tempo mostra a diferença entre elas. A angústia que é uma versão do objeto a se coloca como mediana entre gozo e desejo, enquanto o amor faz a mediação entre gozo e desejo. Só o amor pode permitir, pode condescender ao gozo no desejo. Como é a frase? “Só a amor permite ao gozo condescender ao desejo”. O importante disto é que isto exige aquilo que é próprio da psicanálise desde Freud: que o amor é uma ilusão ou um véu, como Lacan chama. É um véu que tapa o buraco; existe nessa travessia do gozo a angústia.

Ele preenche, imagina. Por exemplo, Júlio Cesar atravessando e dizendo vou atravessar para a Glória de Roma: ele consegue com isto recobrir como um véu, recobrir o buraco que a angústia ocupa.

Marcus: Então, o mediano é uma falha, falha no sentido de uma fissura, e neste sentido o véu vai recobrir esta fissura, é como se chegássemos do desejo para a angústia, chegássemos no limite do que é possível viver. Além daquilo, parece que vou desaparecer, vou derreter. E neste ponto limite, que é o ponto da angústia, o amor é dizer: posso fazer uma ponte, isto é só um rio, posso ir para o outro lado, existe alguma coisa do outro lado. Neste sentido que é um véu. Neste sentido é a mediação.

 

Teresa e o acontecimento do amor

Romildo: A grande questão, que é um desafio para a psicanálise, Lacan insiste nisto várias vezes, é uma pergunta: será que o amor pode não ser só uma ilusão? Será que o amor pode ter uma dimensão que seja mais do que recobrir com o véu esta fissura que o Marcus está falando? Não vamos esquecer a expressão que Lacan usou em outro contexto de um amor mais digno. Eu li em algum lugar, mas já faz muito tempo, mas nunca encontrei o lugar onde Lacan faz um neologismo, faz uma brincadeira: ao invés de dignité (dignidade) ele faz ding-nité, de das ding. Infelizmente não consigo achar onde tem isto. Digamos um amor mais digno é aquele amor que inclui este contato tornado possível pela dimensão do ato psicanalítico.

Marcus: Gostamos desta ideia de um amor mais digno, um outro amor, um novo amor. Não estávamos falando disto. Mas neste plano, o amor não seria, como Lacan vai dizer na próxima lição, sublimação?

Romildo: É isto, o amor sublimação.

Marcus: É o amor tomado na sua vertente mais de ilusão do que nesse amor mais real. Só para ficar nele um pouco, eu estava vendo as perguntas.

Romildo: Num curso de Miller, A clínica lacaniana, ele fala exatamente disto. Vou ver se eu acho.

Marcus: Isto que é o amor real, continuar amando o Rubicão sendo que ele vai embora todas as vezes. Vou parar aqui, voltamos, só para acompanharmos, o pessoal está dizendo para retomarmos.

Perguntas: A Viviane retoma uma volta sobre o alcoolista.

Tem a ideia desse véu, uma pergunta se ao invés do amor poderia ser o consumo. Outras práticas que fariam o efeito de véu. Aí teríamos que discutir se é véu ou se não é véu. Estamos ficando com o amor que é mais seguro.

Perguntas:Tem a Poliana pedindo para falarmos disto a partir de uma situação clínica. Vai chegar. E a Ruth retomando, dizendo: a posição mediana tem um poder transformador e ativo de por ao trabalho o gozo, produzindo a causa do desejo.

Marcus: Pensamos num caso clínico mas é um poema que trará esta discussão sobre o deixar cair, o objeto a, o ponto mediano e o amor como mediação. Vamos a ele? Romildo você quer que eu projete ou você vai ler?

Romildo: Eu o tenho aqui. É um poema de Manuel Bandeira chamado Teresa. O poema é o seguinte:

Teresa

 A primeira vez que vi Teresa

Achei que ela tinha pernas estúpidas

Achei também que a cara parecia uma perna

 

Quando vi Teresa de novo

Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo

(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

 

Da terceira vez não vi mais nada

Os céus se misturaram com a terra

E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Marcus: O que é tocante é justamente a terceira estrofe quando o amor vem. Podemos discutir que amor é este, se este amor é mediação, ou se ele é véu, mas é isto, a experiência do amor é de uma espécie de totalização em que o sujeito parece se perder, mas queremos dizer que isto não é como no ato. Porque neste aí ele perde os olhos mais velhos, ele perde os olhos que nasceram e ficaram 10 anos esperando, ele perde as pernas estúpidas, não, ele ganha, ele ganha pois vai lembrar delas a partir da fusão que foi, o amor que foi este espírito de Deus que sinto agora em mim e nela, entre ele e a Teresa.

Romildo: Ele usa o linguajar do livro do Gênese, na Bíblia exatamente no momento da criação.

Marcus: Então, é isto a criação do amor como o amor do Universo, fomos feitos um para o outro, por exemplo. Deus já dizia isto desde a Gênese. O que sabemos agora é que eu e você somos o infinito. Nisto acho que ele se perde, é uma experiência deliciosa, mas num certo sentido ele perde estes objetos que eram nosso dos objetos a. Ele não deixa cair, isto talvez seja uma discussão. Ele não deixa cair, ele perde de vista, mas eles estão lá. Ele continua vendo, mas ele passa achar a coisa mais linda. Tem alguma coisa para diferenciar do que estamos chamando de ato. Tem alguma coisa desses objetos que para de funcionar para que o sujeito possa encontrar Teresa de outro jeito.

Romildo: Manoel Bandeira não era brincadeira.

Marcus: Podemos partir desta parte que é mais segura. As pernas estúpidas e a cara pareciam uma perna. É justamente os pontos onde somos atraídos, é a causa do desejo, os olhos muito mais velhos que o resto do corpo. A maneira que ele localiza estas coisas, são pedaços, não no sentido fetichista, são objetos que se extraem do encontro.

Romildo: Podemos até dizer que na segunda estrofe os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse e quando o resto do corpo nasceu veio com olhos. Feito Santa Luiza.

Marcus: Veio com estes olhos.

Romildo: Claro. Tem os olhos que estavam esperando, ou seja, que são depositados como objetos e tem os olhos do corpo. Como Santa Luzia que Lacan comenta no capítulo 12.

Marcus: Exatamente. Estava falando da experiência fetichista que é a masculina clássica que é: ele pega as pernas, as pernas são maravilhosas, ele tem tesão nas pernas, e elas são o objeto que atrai, a mulher não importa. Aqui não é isto. Perna estúpida é totalmente diferente do objeto fetichista. Vamos ver, até agora nada. Ah, o poema Porquinho da índia do Manuel Bandeira é uma versão oposta ao sublime do amor.

Romildo: Exatamente, Porquinho da índia, que ele teve na infância. Deixa eu ver se eu… Tenho medo de sair daqui e perder tudo.

Pergunta: Veridiana está dando a referência que você queria a chosiété, não sei se é dignité, mas é no Seminário 7. Fala das caixas de fósforo do Prévert.

Romildo: Não é isto não. É ding-nité, ele joga com a dignité, colocando o Das ding na frente. É uma brincadeira que ele faz, que me parece muito precisa. É pena que eu vi isto há anos e não sei onde é.

Pergunta: Viviane Tinoco traz uma passagem do Mia Couto, que é: quem se lembra tanto de tudo é que não espera mais nada da vida.

E a Marcia Zucchi traz esta fórmula que ela montou, ela veio com os olhos e aí não vi mais nada. É o corpo que veio com os olhos e aí não vi mais nada.

Amor digno? (segunda discussão)

Romildo: Estamos na questão do amor. Eu estava lembrando que o amor estará na mesma linha do a, do Ⱥ e da angústia e do ato. Com a diferença de que o amor visa recobrir com véu aquilo que seria um buraco nesta passagem.

 

Miller diz uma coisa bem interessante, exatamente sobre isto, ele diz que o amor de uma certa forma dá um certo tratamento ao objeto a, pois ele trata o objeto a como se fosse o objeto da falta e o objeto agalmático. Isto é bem interessante se pensarmos do lado da histeria, por exemplo. Me parece que cabe perfeitamente.

É isto, o amor tem tudo a ver com a angústia, com o ato, com a diferença que o amor faz o recobrimento, Miller usa uma palavra forte, ele diz: ele falsifica o objeto a. Ele trata o objeto a como se fosse um agálma e não como se fosse o dejeto.

Marcus: É neste sentido que eu estava dizendo que o objeto a não cai, não tem este deixar cair no amor.

Romildo: No amor não. No amor existe uma utilização, uma falsificação, esta palavra é boa, existe uma falsificação no sentido de que o objeto a que seria dejeto passa a ser agalmático. Tratamos o objeto a como se fosse um objeto do desejo, como se fosse ele que faltasse.

Marcus: Quando falamos de uma falsificação fica parecendo que o amor é só engano.

Romildo: Foi por isso que falei na procura eterna de Lacan de um amor mais digno, a importância desta procura é um procura do que há no amor, que é uma ilusão, além da ilusão. Isto é uma procura bem da psicanálise. Será que o amor é só um recobrimento da angústia e do ato? Ou o amor é um pouco como uma relação entre prazer e gozo? O que seria um amor que de alguma forma não falsificaria o objeto a, mas pudesse levar em conta o caráter, digamos real do objeto a? Isto é um desafio clínico de ponta. Fundamental.

Marcus: Poderíamos dizer que esta frase do condescender… é pelo amor que no desejo irá se escrever o gozo.

Romildo: É isto, exatamente isto. Condescender o gozo no desejo. Exatamente isto. Interessante a palavra condescender, o gozo no desejo é um presente do amor, num certo sentido.

Marcus: Ficou bonito. O gozo no desejo é um presente do amor. Isto tudo para dizermos que não está caindo o objeto, mas estamos tendo uma experiência do objeto incluído mantendo o desejo ainda. Na ideia de uma vida que continua.

Romildo: O que parece que é exigido no amor é a imaginarização do objeto a, para que ele possa ser agalmático. É interessante, porque na verdade no amor fundamos talvez estribado no objeto a, criamos uma nova dimensão positiva. É diferente do desejo. O amor tem uma positividade mesmo que seja à custa da imaginalização do objeto a. Não sei se está complicado tudo isto,.

Marcus: É difícil falar do amor de fora. É muito difícil. Gisele Fleury dizendo: o poema vai do objeto estranho ao agalmático. É bem isto.

Perguntas: A Poliana dizendo: é quando a pulsão escópica cai que o amor entra em cena? Acho que eu concordaria, mas ela não cai, ela é incluída neste novo espaço amoroso.

A Viviane está lembrando que hoje estamos em tempos de amores livres. E aí?

Amor líquido seria tudo de que não estamos falando, estamos falando sempre de uma estrutura neurótica e ela estaria perturbada com esta ideia do consumo. Encontraremos o objeto agalmático. Podemos comprá-lo, mas não este sentimento que só no amor vamos encontrar. Isto é próprio da neurose.

Romildo: Parece-me que o caráter líquido que se pode pensar no amor pode ser comparado com o consumo, a metonímia do objeto de consumo. Digamos, é uma sucessão supostamente infinita de objetos que iremos consumir, mas não vamos nem topar com a dimensão real do objeto nem topar com a dimensão da falta do objeto, nem com uma operação metafórica, se a metonímia pudesse ser infinita.

Marcus: Podemos imaginar da mesma maneira outra coisa. Estamos naquele rio da angústia, estamos na falta da falta. É o que faz a situação de hoje: podemos ter, é só comprar, é só adquirir. Não tem um sentimento que não temos como ter. O objeto não está perdido, o objeto está prometido e esta promessa é vivida como uma realidade, não como uma coisa vaga que podemos ter. Ficamos na falta da falta. Não tem como deixar cair nada para desejar voltar para ali. O amor líquido é muito mais um outro nome para o que estamos chamando de angústia. Ficamos no lugar, estamos afogados no Rubicão, mas a vida não é só isto. Isto seria a situação radical do tempo de hoje. De qualquer maneira, não estamos falando de amor como véu, mas estamos falando de amor como promessa do objeto que nos leva para a falta da falta. Ou como Romildo falou, uma infinitização da cadeia de compras em que estamos sempre comprando o próximo Iphone, então estamos sempre obtendo objetos, não conseguimos perder, não conseguimos perder o último Iphone, já vamos logo para o próximo, nem vemos o que fizemos com o outro, aliás, nem sabemos o que fazer. Damos para alguém, jogamos numa gaveta. É nesta relação entre deixar cair e o desejo que Lacan situa todo o drama do amor e da angústia neste Seminário. Isto que está difícil no amor livre.

Romildo: É isto. Se bem que o amor líquido não é uma opinião de Bauman, é uma constatação, é uma fotografia. Ele notou que o amor, a sociedade, a economia, tem uma porção de liquidez; ele notou que estas dimensões hoje em dia são líquidas. Não é uma militância dele pelo líquido. Ele constata.

Marcus: Pelo contrário, ele quer criticar. É uma descrição, é uma metáfora descritiva que quase vira conceito, nem sei se podemos chamar de conceito. Tem um valor de dizer uma verdade. O que é este líquido. Começamos a descrever os laços amorosos de hoje. Proporia que estes laços estão marcados pela falta da falta e não pela falta. A maneira de traduzir, acho que vários do Campo Freudiano já disseram isto. Por exemplo, o Dany Dufour diz que não estamos mais em tempo de culpa e perda, estamos em tempos de angústia e possibilidade, angústia e satisfação. Tempos de excesso como se diz também.

Perguntas: Ana Beatriz: o amor líquido estaria mais próximo do gozo absoluto?

Marcus: Quando estamos no nível da imposição da angústia, estamos mais próximos, ao mesmo tempo não estamos, pois o gozo absoluto não tem como chegar. O amor líquido seria viver num mundo que a promessa do gozo absoluto é uma realidade, pois a crença no gozo absoluto possível é uma realidade. Se vivêssemos nos tempos mais do Nome do Pai, a crença do gozo absoluto como possível não estava no ar. Agora está no ar. É possível, então temos que.

Romildo: A crença existe. Mas o gozo absoluto não existe. É por isto que estamos chamando atenção para a metonímia infinita da sucessão de objeto de investimento amoroso, por exemplo.

Marcus: O problema é que o infinito é muito romântico. Tem que ser o infinito do Tinder. Infinito não é que vamos buscando cada vez mais aquela que queríamos. Infinito é o infinito do Tinder.

Romildo: Não estamos buscando coisa nenhuma. Não tem busca nenhuma. Vamos reproduzindo o nosso consumo e cada objeto é só um sucessor. O objeto infinito é o sujeito quando ele próprio se torna objeto, por exemplo.

Marcus: Eu não estava dizendo que você estava romantizando. Eu estou dizendo que quando usamos o termo infinito para a sucessão metonímica é uma tendência tomar isto como quem vai em busca de Deus. Não é isto. É muito mais o infinito do Tinder.

Romildo: O infinito é da quantidade incontável. Tem uma série, mas não tem adição.

Marcus: Isto. Por isto às vezes fazemos a diferença de infinito e ilimitado.

Romildo: Temo que tenha sido meio difícil, mas chegou em alguma coisa. Quero aproveitar então, antes de encerrar, para agradecer a vocês todos a participação que tiveram neste Seminário. Eu pessoalmente agradeço a Marcus André o companheirismo e a presença e a discussão tão interessante que tivemos.

Marcus: Mais uma vez, um prazer e uma honra. É um prazer danado.

Romildo: Bola para frente.

Marcus: Andréa está dizendo que: no amor há um engano porque se esconde um objeto a como dejeto.

Agora tem várias coisas sobre o amor. A Andréa agradecendo, a nossa diretora. Temos que agradecer à Andréa também que nos convidou para renovar isto desta vez.

Romildo: Andréa e Marina Morena, que cada vez que tenho um impasse no Zoom ela me ajuda.

Marcus: Um abraço Marina, um abraço Andréa, um abraço gente. Boa noite.

Romildo: Tchau.

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Desejo, angústia, certeza

A prática da Angústia II (14/09/20)
Seminário Clínico da EBP-Rio
Coord: Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros

Introdução e recapitulação

Marcus: Fomos ambiciosos, para variar, por propor um roteiro bem ousado e em tempo restrito. São três encontros sempre com base na mesma lição 12 do Seminário 10 de Lacan. É um Seminário central no qual ele traz a ideia do objeto a a partir da angústia.

É um objeto paradoxal, estranho, é o objeto da estranheza, nos temos de Lacan. É o objeto da angústia, se podemos aproximar a estranheza da angústia. É esse, segundo ele o modo de apreender o objeto da psicanálise, o objeto que faz acontecer uma análise, ou o que é o referente de uma análise.

Concluímos que a lição XII seria a melhor lição para abordarmos o que é o fenômeno da angústia por um lado, e como a análise propõe alguma coisa com relação a este fenômeno, por outro. Lacan acaba de trazer seu objeto e delimitar sua especificidade, aqui ele revisa rapidamente esse percurso, com algumas analogias fortes e abre para o que segue: o uso desse objeto pelo analista que terá relação com o que vimos anteriormente com Nohemí Brown sobre a presença do analista e que hoje retomaremos com relação ao tema do ato.

Escolhendo esta lição vimos que dava para dividir em três partes, mesmo, como Miller dividiu, e pensamos que poderíamos dividir nossos encontros nas mesmas três partes.

A primeira parte, corresponde, grosso modo a uma distinção entre medo e angústia, como vimos no encontro passado e o nome próprio de base é Tchekov e seus Pavores. Lembro a vocês só duas ou três coisas. Lacan recusa a ideia clássica de que o medo tem objeto e de que a angústia não. Faz duas operações fortes. A primeira é dizer que sim, vale distinguir os dois afetos, partir dessa distinção e a segunda é a de que não é pela presença ou ausência do objeto, mas pela diferença qualitativa da apresentação dele nos dois casos. O objeto do medo, para começar, já não é tão simples quanto se pensa. Não tenho medo apenas quando um assaltante está na minha frente. O medo pode ser também medo de um objeto que só consigo definir como desconhecido. O medo pode vir do encontro com variados tipos de objeto, não apenas concretos, podem, além de ininteligíveis, imaginados.

A diferença não é se o objeto está presente ou não. Nem se ele é conhecido ou não. Mas é a de que o objeto da angústia é indeterminado, foi o termo de Lacan que usamos. É um objeto estranho, paradoxal, nesta paradoxal estranheza íntima. Não consigo colocar delimitar. E quanto a conhecer, tenho a impressão de que o conheço. Ao contrário do medo que pode ser de um objeto desconhecido, como demonstra Tchekov, que sempre tenho a impressão de um estranho íntimo, que tem a ver comigo, mesmo se não consigo apreendê-lo pelo saber. O desconhecido ganha formas, inclusive a forma do desconhecido. A forma do objeto é exatamente o que é difícil de fixar na angústia.

Lembrando que a angústia é o caminho usado por Lacan para chegarmos a isso a que ela nos apresenta. Este objeto está no coração da angústia. Mas a proposta de Lacan, que tentaremos desdobrar hoje, não é que temos que ficar na angústia, nem mesmo necessariamente experimentar a angústia, mas que com a angústia aprendemos sobre o trabalho com este objeto.

Romildo: A diferenciação que Lacan faz na parte 1 é bem radical. Ele liga o medo ao desconhecido e a angústia ao ameaçador de início. Talvez seja bom, dar uma parada nisto, ou pelo menos chamar atenção, pois não é a primeira intuição que se tem da diferença entre medo e angústia. Primeiro, a própria diferença não é tão intuitiva assim. E Lacan no Seminário 10 me pareceu que ele aproxima mais do que afasta o medo da angústia, a tal ponto, que somos levados a pensar que a angústia é a base, os alicerces do medo. Existe sempre uma angústia dando fundamento ao medo. Mas Lacan é bem claro quando ele chamou o medo do desconhecido e a angústia o objeto é indeterminado.

Marcus: Ameaça ainda é uma primeira distinção, pois ameaça parece que refere a alguém ameaçando, é difícil separar o termo da ameaça de um objeto concreto e conhecido na minha frente. Mas é uma ameaça indeterminada. A frase dele é que trata-se de uma ameaça que me toca no meu mais íntimo. Freud diria um “perigo interno” para falar desta ameaça. Esse objeto no mais íntimo de mim mesmo, mas que não consigo dizer o que é, que não consigo apreendê-lo, mas que me provoca essa mobilização intensíssima que vai nos interessar, a mobilização, não a angústia, essa mobilização tem a ver com o que acontece numa análise.

 

Três frases

A segunda parte é a que passamos a apresentar a vocês agora. Para desdobrar a segunda parte, achamos que para poder ir rápido podíamos tomar os três exemplos que Lacan dá nessa parte para desenhar um pouco o que é este objeto.

Ele faz isto de inúmeras maneiras no ensino dele, todos sabem, e muitas vezes durante muito tempo a partir deste Seminário ele dará preferência à matemática, à lógica, à topologia para termos a experiência desta coisa que é e não é e que é dentro e que é fora e que é minha e não minha, que não está nem em mim e nem no outro.

Neste Seminário a coisa é mais imaginada, mais imaginário, e por isto é interessante também, fica mais vivo. O que Lacan fará neste primeiro tempo, não darei as citações desta parte, mas darei as três frases que pensamos, que ordenariam um pouco o desenrolar que falaremos hoje.

Estas três frases não estão nesta segunda parte, mas extraímos desse Seminário. Elas desenham essa lição e balizam um caminho de chegada a esse objeto a, assim como um caminho de interrogação e aposta, a posta de que acionando este objeto produz-se a reviravolta e a subversão próprias de uma análise.

É uma sequência de fala sobre a angústia.

1) A falta é “uma carência positiva” (p. 283) um “vazio estruturante” (p. 67) “Se a falta de repente não faltar é nesse momento que começará a angústia” (p. 52).

Isto tudo podemos resumir com a famosa frase: “A angústia é a falta da falta”.

Lembro de um texto do Bernardino que dizia: a castração é a alegria dos homens. Mas tem alguma coisa neste sentido. Precisamos de falta para deseja. Então, A falta é “uma carência positiva”, um “vazio estruturante” e a angústia é o surgimento da falta sob uma forma positiva, ou seja, quando a falta de repente não falar. É neste momento que começa a angústia (p. 52).

Já abordaremos a falta da falta, mas antecipamos a segunda frase:

2) “Agir é arrancar da angústia sua certeza” (p. 88).

Este é o ponto que vai nos permitir fazer a virada que queremos, a de que não vamos à análise para nos angustiar, mas para descobrir o que a angústia traz como certeza.

Como isto será feito? Nisto que Lacan chama de ato analítico e que ele diz que se funda “numa estrutura paradoxal”. A estrutura paradoxal é que está aqui.

3) No ato analítico: “O objeto é ativo e o sujeito subvertido” (Outros Escritos p. 332).

Quem a princípio enuncia suas frases em análise, vai sair subvertido, e quem age essa subversão não é quem enuncia, mas o que, em seu enunciado é ele mesmo como objeto. Quem age é o enunciado e não quem o enuncia, para ficar de uma maneira mais simples.

São estes nossos passos hoje. O primeiro passo é o da falta da falta.

 

A falta da falta

Estamos agora no primeiro tempo que é o da falta da falta. É neste tempo que corresponde também a momento da presença do objeto, deste nosso objeto estranho.

O que é a falta da falta? Lacan recorrer a três exemplos: Édipo, Santa Luzia e Santa Ágata.

Não é o Édipo que conhecemos. É quando o ex-Édipo Rei já avançou em busca da verdade.

Estamos retomando uma parte do Seminário 17 e uma conversa que tivemos um pouco antes com a Rosário. Temos várias passagens do Seminário 17 que ajudam muito a retomar posteriormente o que estamos falando.

Vou contar como se fosse um personagem bem neurótico para facilitar. Édipo avança em busca da verdade sempre. Ele quer ver, poderíamos dizer que ele quer saber. Ele quer a visão da coisa em si. Por isso ele vai trás da esfinge, ele quer ver o perigo que assola Tebas. Vence-a por conseguir até abrir mão da necessidade da verdade e poder jogar com enigmas, mas isso não o cura do desejo da verdade porque torna-se rei e quando a peste cai sobre Tebas, ele quer saber, ele quer ver qual a causa da peste. Tiresias diz a ele algo como afirma Guimarães Rosa: o pior cego é o que quer ver, mas ele insiste.

Se pudéssemos, não sei se vai dar, mas seria ótimo poder pensar como indicação do Laurent e que o Ram retomou sobre a discussão sobre exílios, hoje deveríamos começar a pensar o que seria o Édipo a partir do ponto de vista da peste. Agora estamos no ponto de vista do Édipo.

Nisto ele vai encontrar o parricídio e o incesto dele e neste ponto ele arranca seus olhos e sai em exílio pelo mundo com sua filha Antígona a ajudá-lo.

Édipo em Colona parte daí. É desse édipo que Lacan fala nesse seminário. Estamos agora no pós-trágico da primeira tragédia. A cena que Lacan traz são os olhos de Édipo no chão. O que acontece com ele naquela hora dos olhos no chão? É muito estranho. Não pensem apenas em mutilação, perda, dor, mas perguntem-se: estes olhos olham? Édipo vê seus olhos? Os olhos não são materialização daquilo que era o excesso do desejo de Édipo? Não podemos dizer que de certa forma esses olhos nos olham dizendo isso? Vejam no que dá querer olhar demais?

Entendo que é o que Lacan quer marcar. Não é tanto o castigo, como se o gozo do olhar de Édipo tivesse sido arrancado dele, mas a materialização desse gozo. Ele não está mutilado necessariamente, ele não está castrado, ele está no horror, pois ele era este olhar.

Não é perda. Ali, acontece o impossível os olhos não estão mais ali, ao mesmo tempo estando. Ele não está mais no registro da falta, do desejo de ver como falta de olhar o que o faz olhar. Ele está na presença do que o faz olhar e não é um objeto que falta, é seu próprio gozo de olhar que ele vê. Não são os olhos como materialização do objeto que falta a ver, falta a ser de Édipo, mas os olhos como sua verdade presente: ele quer ver porque goza vendo, só.

Romildo: Tentaria completar um pouco com os dois exemplos seguintes que Lacan dá que é com Santa Luzia, que é uma santa importante no Brasil, ela é bem conhecida, é padroeira de vários lugares, e Santa Ágata, que é menos conhecida. São duas Santas mártires mais ou menos da mesma época, Século III e IV, bem no começo do Cristianismo e a história é praticamente a mesma das duas. As duas para defenderem a virgindade se negam a ceder e são condenadas a extração dos olhos para Luzia e dos seios para Ágata. É interessante notar que as imagens e a iconografia das duas na tradição cristã é muito semelhante. Luzia tem olhos ao mesmo tempo ela apresenta numa espécie de bandeja os dois olhos extraídos dela.

Isto é quase tudo. Os olhos estão em cena. E Ágata mantém os dois seios no corpo e também segura uma bandeja com os dois seios arrancados como punição do Imperador Diocleciano, ou alguma coisa por aí.

O nosso esforço é tentar localizar a angústia neste movimento dos objetos. Eu traria o falo nesse sentido. Podemos dizer que tudo começa com a função fálica destas partes do corpo cuja falta impõe uma falta fálica e falta fálica aqui é no mesmo sentido que se fala no Pequeno Hans, a falta fálica é aquilo que falta ao Outro, que o sujeito é condenado, é chamado a suprir.

Marcus: Aqui eu tinha vontade de fazer uma nota de roda pé e dizer que entendam “o falo que importa” é o falo como falta, o regime fálico é o regime da falta. Todos tendemos a pensar o falo mais como o falo imaginário, o falo do poder, da completude.

Me parece que o falo tem que ser pensado como algo que falta, um objeto que falta por definição, mas que está na base de fantasia de completar o outro. Tem que ser pensado na articulação, senão temos não entendemos qual é a máquina da neurose.

O caso Hans nos ensina muito. Lacan chega a falar no Seminário 4 que antes daquela experiência de angústia Hans vivia num paraíso, nunca esqueci este termo que Lacan usa. Hans vivia num paraíso que era o que a tradição psicológica chama de simbiose ou de coisa parecida.

Temos que pensar que a complementação do Outro que num certo sentido é o horizonte da possessão fálica é ao mesmo tempo fundada no objeto que falta.

Como isto se articula visando a falta da falta? Isto é o que podemos aprender com Luzia e com Ágata.

Na história se diz que Luzia teve um milagre de aparecerem novos olhos vendo, mais lindos que os de antes e que ela fica vendo os próprios olhos perdidos. Não precisamos ir nesta direção. Podemos dizer que aquela complementação que falta na relação do sujeito com falo, ou seja, aquilo que complementaria o Outro, qualquer criança para a mãe, fantasmas fetichistas etc. são de certa forma realizados na angústia. É quando o objeto aparece no sujeito, não mais faltante por definição, mas como positivo. Tem aqui esta expressão, acho perfeita, a falta sob uma forma positiva.

A passagem para a angústia é exatamente pela anulação do objeto fálico.

Marcus: Eu pegaria um exemplo, ante do ato ainda, na falta da falta ainda, vemos como é difícil a relação com o objeto que se perde. Por exemplo, o objeto que se perde e “era tudo para mim”, isto não produz falta, para lembrar este paradoxo; isto produz angústia, pois como ele era tudo para mim é como se tivéssemos como algo mais presente depois que ele vai embora. É só para mostrar o paradoxo. E ao contrário também. Quando temos um objeto que é tudo para mim e eu alcanço, temos este sentimento de falta da falta. O arruinado do êxito, do Freud, é mais ou menos esta ideia, se o objeto encarnou para mim aquela cobertura no Leblon quando cheguei do Ceará, encarnou tudo para mim e passei 20 anos trabalhando para ela, quando chegamos nela, a sensação não é de realização, exatamente, não é de certeza, é de angústia.

 

Desejo, angústia e certeza

Ontem, conversando, tínhamos pensado que podemos localizar numa análise esses três momentos de que acabamos de falar. Existe, primeiramente, o momento do objeto como falta. A seguir, existe a falta da falta, que é o momento da angústia. E existe o que chamamos de um novo tipo de falta, o que talvez seja nossa tarefa tentar definir hoje. É uma nova falta que já não é a falta fálica, mas que seria a falta localizada pela saída da angústia.

Não é que a angústia seja o horizonte ou a estratégia do psicanalista, mas quando Lacan diz que o ato retira da angústia sua certeza, ele também está falando, me parece do fenômeno da angústia. A função do psicanalista, decididamente não de angustiar seu paciente, mas não se deve esquecer que em algum lugar Lacan diz que a orientação que um analista pode ter de que em que ponto pode estar seu paciente é a angústia.

Marcus: A análise é não sem angústia, para usar a expressão.

Romildo: Talvez se possa dizer isto: a análise é não sem angústia, no sentido de que a passagem pela angústia pela análise também pode ser indeterminada. Como a própria definição do objeto da angústia.

Quero salientar a tentativa de estabelecer três momentos em relação à falta.

Temos a falta, por exemplo na neurose, isto pode perfeitamente levar um sujeito para análise, a falta do objeto, quer seja diante de uma reivindicação excessiva do Outro do seu objeto, quer seja do sentimento que tem o sujeito de que ele falta. Isto qualquer uma das duas situações pode conduzir o sujeito a pedir uma análise.

Há, por outro lado, certa aproximação do Real que estamos considerando do ponto de vista da angústia. Lacan começa o Seminário dizendo que a angústia é sempre por aproximação, na verdade ela não se apodera do objeto, ela é sempre algo por aproximação. Podemos dizer que há uma aproximação da angústia, não que seja uma estratégia do psicanalista, mas como efeito do trabalho analítico, o sujeito passa a ter uma certa aproximação com a duplicação do objeto, neste sentido como você estava falando da falta da falta.

E há a saída da falta da falta, isto é clássico no ensino de Lacan, pelo o ato.

O primeiro em torno da falta fálica.

Marcus: Que podemos chamar de tempo do desejo também, não no sentido maior.

Sim. O segundo é o tempo da angústia e o terceiro o tempo do ato.

Podemos usar, apesar de não serem os mesmos dados, aquela conta de divisão que Lacan faz, no começo do capítulo 12.

A relação entre o Outro, objeto e o terceiro é o efeito subjetivo da sua separação que é o $, é a própria dimensão do desejo.

Marcus: Temos que ir bem devagar. Poderíamos esquematizar dizendo dos três tempos. O tempo do desejo, o tempo da angústia e o tempo da certeza. Essa esquematização já mostra que não se trata de uma progressão. A análise vai andando em torno destas experiências, a experiência do desejo, da angústia e da certeza (que às vezes chamamos a experiência da causa do desejo).

Romildo: Se a análise visa o ato analítico, acho que mais do que nunca a ideia de Lacan, segunda a qual o ato extrai da angústia sua certeza.

Acho que aqui temos as três frases que trouxemos a partir de Lacan, a falta, a falta da falta, a certeza do ato vinda da angústia, o que a análise visa. No caso são quatro, pois há o momento pré-histórico da falta fálica, do objeto como falo.

Marcus: Agora passaríamos para pensar justamente este regime do ato que culminará na certeza.

 

Perguntas: Qual seria a diferença entre privação e castração? Luciana Monnerat perguntando. Eduardo Benedito: o analista convoca o sujeito a se depara com o horror e daí passar para o ato? Parece super angustiante a análise. Angela Bernardes: E a diferença entre ato e passagem ao ato?

 

O ato

Romildo: Para o ato eu queria usar o exemplo, já falei isto em outros lugares, o exemplo de Julio César. O contexto primeiro. Julio César era um general com tropas e o governo de Roma proibiu os generais de entrarem em Roma, por razões evidentes, se os militares entram em Roma, como eles podem dar um golpe de Estado. Eles tinham que ficar no riacho Rubicão. Eles podiam chegar até Rubicão e não podiam atravessar. A grande façanha de Julio César é que ele atravessou o Rubicão e a partir daí o destino dele mudou completamente. Ele terminou imperador e terminou assassinado. Era um grande general, era um escritor também, Julio César, o livros dele sobre a Guerra Gálica, De Bello Gallico é um livro muito bem construído que narra detalhes de como foi a batalha dele contra os gauleses, quem não conhece Obélix e Astérix que resistem a esta dominação romana.

Ele se aproxima do Rubicão, sabendo que é proibido. Neste momento, não tenho informação histórica nenhuma, mas podemos imaginar que ele se detendo na beira do Rubicão, isto é caracterizado pelo momento da angústia, pelo momento da falta da falta. Antes havia uma falta, ele é um general proibido de entrar em Roma, poderia ser uma formulação da falta. Diante do Rubicão, ele está no momento da angústia de que falta aquela falta que fazia que ele fosse somente um general que não pode ir à Roma.

Marcus: Para ficar bem claro fica assim: ele não tem mais volta. A angústia é um sentimento. Ele está ali, se ele quer voltar não tem problema.

Romildo: É isto, nunca vamos saber o que passou pela cabeça de Julio César, mas basta dizer, para saber o efeito da passagem da angústia para o ato, basta pensar que ele não tem outra coisa para fazer. Quando ele atravessa o Rubicão o destino dele foi retraçado e ele nunca mais será um general com comando de exercito etc. Ele vai se embrenhar na política de Roma até virar Imperador e até ser assassinado. O que eu queria chamar atenção de vocês é para a passagem da angústia para o ato. A passagem da angústia para o ato, significa a falta da falta. Podemos imaginar Julio César diante do Rubicão, é a falta da falta e tendo atravessado este riacho ele reestabelece uma nova falta que não é a mesma do General que nunca poderia entrar em Roma.

Marcus: A frase do Lacan no Seminário sobre isto é: após o ato, o sujeito reencontra sua presença renovada.

Romildo: É isto. Isto é o que estamos chamando de uma nova falta. Uma nova falta. Quando Lacan diz no Seminário 15, mas ele diz também no 10 que o ato retira da angústia sua certeza é a certeza necessária para se dar este passo. Aqui acho que clinicamente podemos encontrar exemplos numerosos. De como é que um ato é tornado possível pelo esgotamento da falta da falta ou pelo esgotamento da angústia. Isto que o Marcus estava dizendo que não é que o analista empurre o sujeito para a angústia, mas não há como se encarar o ato sem ter algum tipo de contato com a falta da falta. Que não seja necessariamente o afeto da angústia, você se arrebentar de angústia, mas o que acontece com o sujeito quando a lógica do complemento fálico não funciona. Esta seria uma outra maneira de definir a angústia.

Marcus: Colocando nos termos da nossa cultura liberal, você está dizendo que a certeza começa além da zona de conforto. Não é possível a gente chegar numa nova relação com a própria falta ou castração na certeza de uma outra relação se não deixamos em algum momento nesta área que é delimitada pela angústia, esta área que nos ideário liberais de hoje é “zona de conforto”.

Romildo: Não sei se a palavra conforto dá conta disto.

Romildo: Se supomos que a falta fálica nos leva para análise há um desconforto. A falta da falta, entendemos como algo desconfortável. E o ato, podemos pensar que há uma imposição absoluta, já que há uma dessubjetivção da passagem da angústia para o ato. Não podemos esquecer, não há sujeito do ato. Quer dizer, Julio Cesar do Rubicão, isto é importante, e atravessando o Rubicão existe um des-Cesar-Julicisação. Existe um esvaziamento, por exemplo, da divisão de Julio César de saber se enfrentava ou não o risco de entrar em Roma.

Marcus: Este paradoxo é excelente, pois senão, pensaremos no ato, como ato do herói, ele não tem divisão, ele avança na certeza. Não, ele vai porque é objeto. E esta é a terceira frase: no ato analítico o objeto é ativo e o sujeito é subvertido. O que ele era antes se torna outra coisa no final.

Romildo: O que ele está falando está em torno da questão de como alguém se torna analista. Não se é valiosa esta imagem da travessia do Rubicão, ela na formação do analista é interessante no sentido que existe um esvaziamento subjetivo, nesta travessia, na direção do ato. Não é nenhum horizonte místico, mas é verdade que não é com sua subjetividade que o sujeito extrai sua certeza da angústia. Essa extração não há.

Marcus: De outro jeito, para simplificar, se você não for arrastado e aí que é a ideia do objeto, se você não for arrastado você não faz, porque o sujeito não faz, quem faz é você como objeto.

Romildo: Isto significa que não é com minhas qualidades pessoais que faço isso, nem com meus talentos, nem com a beleza de meu caráter. Existe uma transformação aí. É difícil discutir isto e pode conduzir a uma má compreensão do analista ou como um herói ou como uma outra versão do perverso. Exige que esta relação da ausência ou da falta do objeto da positivação deste objeto e de uma nova falta do objeto, esta nova falta do objeto se deve ao fato de que foi o próprio sujeito que se tornou objeto. Diferentemente do falo materno nas fobias infantis, de Hans, por exemplo.

Perguntas: Questões em torno disto, Romildo. Duas questões em torno disto. Chegamos num ponto bom. Duas questões que vão para onde estamos falando. Uma é a Márcia Zucchi, então há uma restauração do desejo pós-acontecimento. Eu queria modular um pouco, aproveitando, quando falamos ato, fica parecendo, de novo, o ato é sem sujeito para Lacan. Então, eu não faço um ato. Quando falamos um analista fez um ato, não o analista fez coisas. Então, se aconteceu alguma coisa ali nos registros do ato, foi o objeto que agiu, esta é a tese do Lacan. O ato é sem sujeito.

Marcus: Poderíamos falar também além de ato, acontecimento. Se acontece alguma coisa na análise é porque houve esta passagem de um sujeito que enunciava para um lugar de objeto, o objeto aconteceu e o sujeito se reencontrou depois. Aí eu concordo com a Márcia que há uma reinstauração do desejo nessa nova reconfiguração pós-acontecimento. Proponho que se acrescente acontecimento para tomarmos igualmente um vocabulário deleuziano. Ato traz consigo a fantasia do ideal, acontecimento esvazia a ideia de um sujeito do ato.

Romildo: Ato tem uma dignidade muito grande no ensino de Lacan, ele tem um seminário que se chama O Ato Psicanalítico, o ato psicanalítico seria o paradigma do ato como tal.

Sobre o ato não ter sujeito. Podemos ver que na prática analítica o ato não tem sujeito pois é o sujeito tornado objeto. Na forma do psicanalista, mas em outras. Peguem Sergio Ricardo quebrando o violão em 67 e jogando na massa. Ali a há um ato e uma dessubjetivação. Ele nunca pôde responder por este ato, como sujeito. A menos que ele se diga herói, etc.

Marcus: O que não impede que possa encontrar sua presença como sujeito renovado depois do ato. Pode ser que ele fique na angústia, pode ser que não. Mas ele provavelmente encontra.

Romildo: Ele pode dizer foi meu desejo. Mas na hora do ato ele nem sabia disso.

 

Marcus: Mas a nobreza é essa. A nobreza do ato analítico. Fico imaginando Lacan rindo. A nobreza do ato é feita pelo dejeto. O resto é o nobre no ato, é o que age no ato. A dignidade do analista é poder ser objeto.

Romildo: Em A salvação pelos dejetos de J. A. Miller, ele diz que o analista não fica na posição de dejeto porque ele fica como base de um novo discurso.

Se da travessia do Rubicão não saísse nenhum ato, seria só dejeto, por exemplo, Julio César seria condenado às galeras. Então, existe em algum sentido uma resubjetivação, mas renovado é outra coisa, é desejarmos com a hipótese do objeto. Entenda que o objeto já não é o objeto que você anseia que lhe complete, mas é o objeto que é causado pelo objeto indeterminado. E que sua análise visa perseguir.

Marcus: Lembro também que ele diz, o que faz um analista transformar sua posição de objeto numa prática, condição de uma prática. Ele pratica ser o objeto a por um certo tempo.

Romildo: É mais ou menos isso que Miller diz na salvação pelo dejeto. O analista na posição de dejeto na base de um novo discurso.

Perguntas: A questão do Miguel, eu acho que ela pode ajudar porque ela coloca o tema de onde isto termina. Vou ler: “É natural que então nunca nos realizemos, em vez disso criamos novos propósitos quando concretizamos os primeiros ou permaneçamos na angústia e que só temos um destes dois destinos?” Podemos imaginar este processo se infinitizando, o objeto ligado ao sujeito.

Romildo: O quê se infinitizando?

Marcus: Um sujeito, um acontecimento, por exemplo, o acontecimento interpretativo, o objeto que eu sou para o Outro se apresenta para mim, eu saí modificado. Eu posso fazer isto eternamente, não?

Romildo: Sim, mas a modificação que ele sofreu vai ter efeito nesta nova experiência, é a mesma lógica de com fim ou sem fim da psicanálise.

Marcus: Exatamente.

 

Ato e certeza

Romildo: Uma marca fica dessa “nova falta”, mas ao mesmo tempo o sujeito está sujeito a experiências de confronto com a falta da falta. Seria pedir muito que a psicanálise livrasse o sujeito da angústia. O que ela facilita é a passagem da angústia para o ato, acho que isto é uma facilitação permanente. Esta o sujeito não perde, se tiver feito análise. Mas ao mesmo tempo existem as angústias.

Hoje eu estava me lembrando, acho que no Seminário 11, você me disse, eu não me lembrava, quando Lacan disse, seria interessante saber, como é que alguém que levou análise até o fim vive a pulsão. É uma pergunta preciosa. Talvez seja dificílima de responder. Mas é preciosa. O que acontece no sujeito quando ele se vê às voltas com uma irrupção do real. Na pulsão tudo bem, mas também na angústia.

Marcus: Estamos associando ato analítico à ideia da passagem, do final da análise. Eu afirmaria que esta estrutura se apresenta desde o começo da análise, acho importante. Algumas interpretações tem esta estrutura de “nova falta”, acontece alguma coisa, que estamos chamando de ato e a produção do novo lugar de sujeito.

Perguntas: Paola: ao final da análise o ato do lado do analisante parece uma saída, o ato do analisante também seria arrastado? Acho que sim. Seria ser arrastado, no lugar de objeto, mas poder estar nesse lugar, habitá-lo.

Nesse sentido, tínhamos pensado numa situação clínica.

Estávamos conversando e me veio uma situação, justamente, de relato de passe, mas que é uma situação de começo de análise. Tive uma ideia, vou apresentar para vocês a ideia que tive, que conversamos Romildo e eu. Depois fui olhar, não é bem assim, mas acho que dá para manter a estrutura, vou tentar defendê-la.

 

O falo e o fogo (fragmento clínico)

Trata-se de um fragmento do relato de passe de Patricia Bosquin-Caroz, a referência é Opção Lacaniana 58, o título “A-paixonada”.

É uma longa análise, toda vida dela, é só uma cena que vamos falar. Às tantas na análise ela tem uma posição, se eu me lembro bem, uma mãe abandonada, mais para melancólica e ela o guerreiro que vai sustentar a mãe, salvar a mãe, manter a mãe em vida, ela é super, diríamos no jargão corriqueiro, fálica. Ela é ativa, é o falo da mãe, sustenta a mãe. Ela traz para a análise uma cena marcando que foi ali o começo de uma fobia de avião. Esta situação será interpretada. É a seguinte:

Ela está com a mãe no avião, muita turbulência, noite escura, chuva lá fora, tempestade e ela ali vai pegar a mão da mãe, a mãe está olhando pela janela, ela chega perto da mãe para consolá-la e ouve a mãe dizendo vamos todos morrer, vamos morrer nós duas. A janela é a negra noite, a noite profunda.

Este ponto para ela é o ponto que ela desenvolve uma fobia, posterior à grande angústia que a cena traz. Estamos na falta da falta.

Romildo: Queria chamar atenção para o enquadramento da janela, o enquadramento de objeto nenhum. Isto na história da fobia que ela desenvolveu me parece importante.

Marcus: Não é a falta de objeto. O enquadre está ali e não tem nada, é a noite absoluta. Ela tentará pelo medo sair da situação de angústia, com a fobia do avião. Na análise, anos depois, vai retomar esta cena, e o que acontece é uma sequência de interpretações, no texto vocês vão ver é muito mais complexo é mais uma sequência de cenas e de histórias, mas acho que dá para resumir dessa maneira.

Será materializado que ela tinha a fantasia de tudo se acabar em chamas, mais que isso, dela se acabar em chamas como Joana d’Arc, numa espécie de martírio, martírio dela mesma. Há o gozo do incêndio e é isso que essa cena interpretada em análise vai revelar. A ato analítico de atravessamento da angústia a leva, pelas associações ao avião pegando fogo ao cair, e do fogo a seu gozo. Ela encontra então, uma vez atravessada a angústia, a certeza de que goza de seu martírio. Ela, que sempre tinha sido o soldado da mãe, sempre tentando compensar o falo paterno, estava ao mesmo tempo no gozo da mártir, se entregando em sacrifício, gozando deste sacrifício para poder salvar a mãe e de certa maneira salvar o pai também. O que vai aparecer é a certeza de um gozo, digamos da fantasia inconsciente em relação àquela conduta sintomática do desejo de salvar a mãe, de cuidar da mãe.

Acho que podemos conversar sobre esta situação um pouco, o que ela talvez dê uma situação mais de dia a dia do que estamos chamando de ato.

Romildo: Talvez se possa, inclusive, usar esta narrativa clínica para estabelecer os três tipos de objeto que distinguimos. Ela como falo da mãe, ou seja, como a falta permanente da mãe, a falta da falta quando ela se impõe, me parece, no momento do “nós vamos morrer”, e o ato que é determinado pelo relançamento da história do avião pegando fogo, que é uma fantasia que vai se mostrar em momento bem posterior à viagem de avião. Me parece que dá para fazer disto uma ilustração que é bem interessante.

 

A saída fóbica é clássica. Há um excesso de demanda da mãe e ela usa o sintoma fóbico como Nome do Pai, isto é o clássico da fobia. A grande questão é o que ela produz com o avião se esborrachando no chão e aparecendo o fogo, que é uma coisa que vai aparecer durante a análise, que ela vai dizer ao analista que ela tinha pensado nisto.

Marcus: Aparecem também no relato vários efeitos de retroação. Mais para frente ela arranja um novo marido e eles são super quentes. E o analista diz: é muito calor nesta relação, aí volta para o fogo e por aí vai.

Romildo: Podemos metaforizar como quisermos, mas existe um certo peso de Real, por exemplo no fogo, que tem a ver com o ato analítico. O analista, afirma mais ou menos isto, é calor demais nesta relação.

Quer dizer quebrar a inteireza da falta da falta. Neste sentido que ele retira da angústia sua certeza. A falta da falta fecha todas as saídas. Quebramos o liame entre as faltas, estabelecemos uma nova relação com a falta. Este é o objetivo da psicanálise. A psicanálise serva para isto. Para dar um destino a uma falta estruturante no sujeito. Que começa ele como objeto da falta do Outro ou da falta no Outro.

Perguntas: Vanda Almeida lembra: o ato implica na queda do objeto. Sim, dizemos aqui que o ato é a extração do objeto, que é análogo.

Marcus: Os momentos de certeza em análise estão sempre ligados ao objeto e não ao sujeito. Todos os momentos em que se tem a certeza de uma vida acontecendo, nestas horas você é objeto em cena, não é sujeito. É você no colo da mãe, é você sendo empurrado para cá ou para lá. São estes objetos que atuam, que fazem andarmos na análise. Neste sentido do objeto é ativo, o sujeito é subvertido.

Romildo: Acho que a conta de divisão que Lacan coloca no começo do capítulo 12 é bem clara neste sentido. Na verdade o aparecimento do objeto a, ele se refere a uma, o termo que pensei não é bom, há uma amputação do Outro. O Outro quando desce para o segundo andar é como o Outro barrado, que é o andar que Lacan chama da angústia. Descompleta.

 

Objeto ativo e sujeito subvertido

Marcus: A extração do objeto, ou seja, o objeto aparecendo como ativo é o resultado do atravessamento da angústia. Ela como objeto do martírio, por exemplo. Eu prefiro extração, pois queda fica parecendo que perdeu e agora vai sentir saudades, como se tivéssemos voltado para falta daquele objeto. O que está em jogo é a apresentação do objeto e re-perda.

Romildo: Acho que ele vai sentir saudades, a questão que me parece que a análise, a ética da psicanálise pode levar é não fazer desta saudade que é possível, desta saudade uma paixão. Dedicarmos a vida à recompor esta divisão.

Marcus: Ótimo, a saudade como paixão é que é problema.

Romildo: Isso, a saudade como paixão. A saudade de dizer, como era bom naquele domingo e tal, tudo bom.

Marcus: Que saudades da minha análise, podemos dizer também.

Romildo: Saudade da análise.

Marcus: É muito comum ficar com saudades da vizinhança do consultório do analista.

Romildo: Fazer isto a razão de ser da sua vida ou uma paixão, aí de fato a análise não funcionou. Isso podemos dizer com segurança.

 

Debate e conclusão: um novo discurso

Perguntas: Uma pergunta com psicóticos. Se nesse caso o analista ficaria na posição de dejeto. Não sei se eu consigo improvisar sobre isso. É difícil. Talvez a expressão secretário do alienado possa ajudar.

Romildo: Neste faz conta ele está como objeto na base de um novo discurso. Isto que é precioso naquela frase da A salvação pelos dejetos. Não é qualquer objeto, me bate, não é qualquer objeto, um lixo. Ela é um objeto, um dejeto necessário à produção de um novo discurso.

Marcus: Alguém pergunta: A posição do mártir, no caso da Patrícia, não seria masoquista? Quero mais usar para pensar o analista. O analista não é nem mártir, nem masoquista porque ele “banca” o objeto. Ele dá corpo a este objeto resto que não está muito claro para o analisante, para que venham os objetos e os objetos façam a festa.

Romildo: Estrutura como discurso. Isto que eu acho muito fundamental para evitar uma ideia possível. Já houve, hoje menos. Mas falar do analista como herói ou como um mártir. Me lembro da discussão em torno do Seminário 7, havia um pouco isso. As pessoas esqueciam que Lacan dizia neste Seminário 7 que um mundo dirigido por mártires seria um incêndio absoluto. É uma frase muito forte.

Marcus: Não queria ir para conclusão sem ir para outros lugares. Outra questão: podemos dizer que se a fantasia é a janela para o real, o seu enquadramento, atravessá-la modifica nossa relação com a demanda pulsional. Isto é da Luciene. Quer comentar?

Romildo: Há uma frase de Lacan que eu citei do Seminário 11. Não sei se os AE’s deram conta disso, mas pode-se pensar que é a tarefa principal dos AE’s.

Marcus: Pergunta: Não seria o atravessamento da janela da fantasia uma nova relação com a demanda pulsional? Romildo: Provavelmente, isso tem que ser demonstrado pela experiência. A pergunta de Lacan é afirmativa se a travessia da fantasia ou se uma análise levada ao seu final muda a relação do ser com a pulsão.

Marcus: Aquela mesa que aconteceu no último congresso em Barcelona, em 2018, foi num Congresso de Membros. Era como fica o seu programa de gozo depois do final de análise. Foi uma pergunta para os AE’s sobre isto. Os três, os quatro, não lembro quem estava na mesa comigo. A ideia tentar dar conta de como fica a fantasia que é um jeito de funcionar para viver. Você não fica sem ela, como ela fica depois que mais ou menos está fazendo que é atravessar. Remeto vocês à Opção Lacaniana 58 e esta mesa sobre o problema de gozo do Passe de 2018 também está publicada na Opção Lacaniana, lá tem os depoimentos dos ex AE’s.

Romildo: Nesta pergunta do colega ou da colega, que fala da janela, na verdade tem mais do que, como vive a pulsão, tem a questão do enquadramento da realidade. Isto volta para o nosso primeiro Seminário, quando a gente estava discutindo a realidade, é que o enquadramento define o espaço da realidade. Neste sentido, fantasia, quadro e pulsão… Eu nunca esqueço que Lacan diz que fantasia e pulsão ocupam o mesmo lugar na estrutura, talvez tinha a necessidade de enquadramento que está incluída nesta pergunta.

Marcus: Aquela janela do avião, resume, condensa para Patricia, o que era a vida dela, a realidade dela era olhar para onde a mãe estava olhando, ver o que ela queria e ir atrás. Era isto. O problema é que ao olhar era uma janela negra e a mãe dizendo: já era.

Romildo: É isto. Você acha que é o quê, o negro da janela?

Marcus: O comentário dela é como se fosse o Real. Ou é uma opacidade. Eu estou falando em negro, mas nem devia falar assim. É porque ela fala em negro, mas é uma certa coisa opaca naquela janela. Não tem nada a ser visto.

Romildo: De noite, né?

Marcus: Mas a experiência dela que vai fazer ela trazer o avião em chamas é isto. Ela está na angústia, porque aquilo é opaco.

Romildo: Tem também o vaticínio materno, que é um dos pontos mais costumeiros da análise que é dizer, “nós vamos morrer”. Isto não é isento do desejo materno. Aí existe, me parece uma passagem de nível do objeto que falta à mãe para o objeto dejeto de uma operação que inclui a mãe: nós vamos morrer. Parece que aí precipita nela esta relação com o objeto que estamos chamando com Lacan de falta da falta.

Para não perdermos o tempo que resta, podíamos seguir um pouco no que você trouxe da A salvação pelos dejetos e imaginar, como a profissão do psicanalista, essa ação do objeto, fazer disso uma prática, poderia ser uma política.

Como está isso hoje? Hoje qual é o problema na cidade para isso? Acho que talvez ajude a tirar um mal entendido sobre a ideia que tem a nobreza da ação do objeto, ficaremos com o termo de nobreza ou dignidade da ação do objeto, não é a ação de ser o objeto andando pela cidade, ser o resto, mas também não é a ação do herói. Então, esse fazer do analista, a gente encontra isso em algum lugar?

Romildo: Esta foi a discussão que depois do Seminário 7, nos meios lacanianos na época se fez em relação, por exemplo à Antígona. Uma figura comparada ao analista é aí que Lacan diz que o mundo dirigido por mártires seria um incêndio absoluto. A frase de Miller, é uma pena que eu não a tenho aqui. Eu queria citá-la literalmente, mas é mais ou menos isso: a diferença entre o analista e o dejeto propriamente dito, apesar dele ser chamado a uma posição de dejeto é que nessa posição ele está na fundação de um novo discurso.

Marcus: Isto eu acho importantíssimo.

Romildo: Maravilhoso, pelo seguinte, porque, retomando a nossa questão inicial, nesta frase, eu nunca esqueço esta frase, ela está sempre na minha cabeça. Nessa frase existe a ideia, justamente, do que o é que o analista faz com a certeza do seu ato. A base de um novo discurso não é a mesma coisa da posição do objeto complementar da mãe, na criança fóbica.

É renovação de uma nova falta se eu puder chamar assim, mas de tal maneira que desse objeto seja produzido um novo discurso a tal ponto de Lacan chamar no Seminário 17 o objeto de o motor que faz girar os discursos.

Como na civilização se pode garantir a presença e a atuação desse lugar, que é de dejeto. Dejeto discursivo, não é Diógenes vestido com barril, não é exatamente isso. Mas que é um resto de operação discursiva, por exemplo, falamos tanto atualmente de capitalismo, como se a análise fosse em si um atentado ao capitalismo. Podemos pensar antes disto, na produção capitalista do objeto que dá a uma vez ao analista, ao surgimento do analista no mundo.

Marcus: O princípio de um novo discurso é uma expressão de que vale a pena falar, até para modular um pouco. O novo discurso não é falar uma coisa original, mas sim que ali começa um novo assunto ou, como diz Lacan no Seminário 19, quando a coisa roda de outra maneira. Isto faz muita diferença.

Quando me encontro numa memória esquecida, quando eu encontro minha mãe espremendo minha espinha nas costas, é um caso famoso de Kohut, quando me encontro neste lugar, isto não vai ser para eu cair do discurso melancolicamente, não vai servir para eu fazer disso uma estética nova, mesmo que de dejeto. Não. Esse lugar de objeto vai servir para começar uma nova história.

Romildo: Não só novo discurso de uma retomada pelo sujeito de novas condições para sua vida, mas um novo discurso, no universo do discurso. O discurso analítico, o Lacan disse várias vezes, é muito recente.

Marcus: Também. Esse discurso na civilização, podemos perguntar sobre o lugar dele hoje.

 

Romildo: Podemos nos perguntar qual a função do objeto a no mundo de hoje.

Marcus: Do objeto mais valia, do objeto mais de gozar. Onde encontramos isto? Gosto muito de um texto de Lorenzo Mammi em que ele localiza como a arte hoje não tem mais objeto, ela não valoriza o objeto de arte como a arte mais clássica. Ela está mais na performance, na instalação, mas seu ato não é mais o que oferecer novos objetos a um mercado de galeristas milionários, mas sim de obter uma parada na circulação de mercadorias, suspensão, temporária que seja, da infinitização dos objetos de consumo, um após o outro todos do mesmo valor.

Romildo: Era esta a intenção dos dadaístas e os surrealistas, como descapitalizávamos o objeto para manter a arte. Um objeto na parede

Marcus: Isto é um lugar onde encontramos, por exemplo, o objeto a em ação, aqui e ali na arte e não, por exemplo, nos excluídos lutando para serem reincorporadas.

Romildo: Fico pensando que pode, pegando este exemplo de Marcel Duchamp, podemos dizer, me parece, que na verdade é a fundação de uma nova relação a partir da ironia. Colocar um mictório pendurado na parede numa exposição de arte. A salvação pelos dejetos é uma imagem que Valéry inventou, ele não gostava de surrealista, para falar dos surrealistas.

Marcus: O Miller usa com a ironia que você está buscando.

Romildo: Exatamente, Miller pega ironicamente a expressão. Valéry não era exatamente irônico nisso. Era uma crítica feroz a Breton, a Dali.

Marcus: Temos uma série de perguntas sobre isso que falamos em termos de: o lugar do objeto a na cultura, ou ação do objeto resto na cultura, como produzindo certezas ou produzindo suspensões interessantes da falta, ou uma nova falta. Tem gente perguntando e o amor como fica? Mais de um. A nova falta implicaria um amor, digamos mais real?

Romildo: Acho que é por aí. A ideia é essa, quer dizer, amor mais real, não sei… mas dá para entender amor mais digno, é uma expressão que Lacan usou. Me parece que o que estamos chamando da nova falta é sem as ilusões da complementação fálica. Isto é da experiência, isto não é um ideal romântico, é o contrário até. Mas de fato uma modificação…

Marcus: Voltando para Patricia posso imaginar isso, a complementação fálica dela era ser a Joana D’Arc da mãe.

Esta complementação fálica deixa de funcionar no mesmo registro, ainda fica a mesma coisa, mas do mesmo registro, quando ela vê o quanto ela é mártir também nisso. O quanto ela goza do fogo que está pegando. Ela começa a desejar o fogo, tanto é que ela vai casar com um homem que pega fogo. Tem uma revolução por aí que vale à pena ler o caso.

Coisa que era impossível para ela antes.

Romildo: É bem interessante, pelo menos na minha experiência deste seminário de hoje e do preparo dele, como facilita o pensamento, você estabelecer momentos diferentes. Claro que existe um risco de um certo esquematizmo, mas de qualquer forma você se situar numa carreira de sujeito num itinerário de sujeito, o momento de complementação do Outro, a falta da falta como angústia, e uma saída pelo ato, acho que organiza muito bem a compreensão clínica.

Marcus: A Glória Maron trouxe a seguinte situação, não sei se era essa, mas, o discurso analítico é o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto. Representante que daquilo que do gozo resta inssocializável.

Marcus: Nesse texto o Miller joga muito com o social, o dejeto, a inserção, desinserção, lembrar de um PIPOL que era sobre a desinserção e não falamos disso da ideia do social e do objeto a como inssocializável, mas é ele. Quando começamos a falar que ele é o estranho, que ele é um dejeto que não é lixo exatamente, mas que está ali. É o material recalcado que retorna, tudo isto Miller define como a parte inssocializável do sujeito. É uma outra maneira de dizer.

Romildo: Tenho a impressão que tem que colocar em paralelo com o objeto a no zênite. Acho que se se põe em paralelo a parte inssociável do sujeito mais objeto elevado nos nossos tempos ao zênite, acho que introduz um paradoxo que é muito atual.

Marcus: A Carla Ceres fala: então, pode chamar para voltar para o título: Prática da angústia. É isto que vocês estão falando? Esta prática da angústia seria clínico orientada pelo Real?

Romildo: Acho bem correta, bem dentro do que pensa no nosso meio, da orientação lacaniana. A primeira parte eu posso contar essa história. Estávamos conversando Marcus e eu e a gente disse: seria bom que o seminário fosse eminentemente clínico. Então, não me lembro se o Marcus ou eu ou um dos dois disse, uma boa coisa seria chamar a prática da angústia ou as práticas da angústia é meio estranho como título, mas nos empurrava para função clínica da angústia. Esta foi a história desta expressão. Eu sabia que era uma expressão meio esquisita, mas ela nos ajudou a pensar a sequência dos três seminários.

Marcus: Olhando agora, a posteriori, acho que ela diz bem o que tentamos dizer no começo também, a angústia não é um objetivo a ser perseguido, mas na prática passamos pela angústia. Então, prática da angústia faz sentido.

Romildo: Tenho a impressão que uma leitura que seria interessante ou uma releitura provavelmente é “A fantasia” de Miller em Comandatuba. Ele situa a crise da psicanálise e a partir do fato que o objeto está no zênite. Me parece que uma leitura desta conferência seria bem vinda, bem apropriada.

Marcus: Está na Opção Lacaniana também de 2004.

Romildo: Boa noite para todos.

Marcus: Um abraço para todos, boa noite. Mais uma vez um prazer. Até o próximo.

Romildo: Até a próxima.

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Prática da Angústia I

 Romildo do Rêgo Barros

Estamos começando a última fase deste seminário, depois da boa experiência com nossa amiga Nohemí Brown. Tivemos a ideia de dar este título, Práticas da Angústia, que na verdade é incomum. Eu nunca tinha usado antes a expressão “prática da angústia”, que soa como se esse afeto pudesse ser modulado, mexido para lá e para cá, pois a angústia se apresenta em geral como um fenômeno maciço. Depois de escolhermos o título, no entanto, vi que ele estava de acordo com o que pretendíamos fazer. A prática da angústia nos orienta para uma discussão clínica, sem deixar de ser, ao mesmo tempo, um tanto paradoxal.

Existe um termo que Lacan usa para o objeto da angústia – Marcos André o citou outro dia -, que é indeterminado.A angústia não é sem objeto, mas este é indeterminado. Com a expressão “não é sem objeto”, talvez Lacan tenha se baseado na dupla negação que existe em algumas línguas, como por exemplo no latim. Em português, pode-se dizer: “Eu não quero não!”. Em latim, não se pode dizer isso. Se alguém disser em latim “eu não quero não”, vai estar está dizendo “Eu quero”, pois duas negativas equivalem a uma afirmativa. A frase de Lacan, “a angústia não é sem objeto” quer dizer, portanto, “tem objeto, mas não sabemos qual é”.

Angústia x medo

Nesta primeira discussão a primeira coisa que devemos tentar fazer é distinguir clinicamente a angústia do medo.

Se saímos da oposição clássica segundo a qual o medo tem um objeto preciso, um objeto claro, enquanto a angústia não tem, vamos poder dizer que, na verdade, não é tanto “ter” ou “não ter objeto” que distingue para Lacan medo de angústia, mas é muito mais a determinação ou a indeterminação desse objeto. No mesmo seminário, no Capítulo 12, Lacan diz a um certo momento mais ou menos o seguinte: temos medo de um objeto desconhecido e nos  angustiamos diante de um objeto indeterminado.

Um objeto desconhecido quer dizer precisamente que o nosso medo não corresponde, não é do mesmo tamanho do objeto. Há uma discrepância entre o sujeito e o objeto do medo, que transcende a forma do objeto. Ora, a mesma coisa acontece à sua maneira com a angústia. Enquanto a angústia irrompe diante de um objeto que nos ameaça, o medo se dá diante de um objeto cuja configuração nos escapa. Claro que isso tem que ser visto clinicamente ou literariamente para se ter uma ideia de quê diferença se trata exatamente – por enquanto podemos guardar esta diferença: o medo ocorre diante de um objeto desconhecido ou, melhor dizendo, diante do que há de desconhecido no objeto conhecido – digamos alguma coisa que excede o objeto do medo, enquanto a angústia, que “não é sem objeto”, não tem a determinação do objeto.

No Seminário 10, Lacan cita e discute uma narrativa de Anton Tchekhov, exatamente sobre o medo. Sobre os três maiores medos que o escritor tinha sofrido na vida. Como ele é escritor e brilhante, a narrativa é muito bonita, mas não é exatamente um conto. É mais um testemunho.

Todas as três experiências de medo se passam durante viagens noturnas. Na primeira, Tchekhov vai chegando num vilarejo, chega no alto de uma colina, e de lá avista o vilarejo… Vê a igreja, o campanário, e começa a descer na direção do vilarejo quando, de repente, vê que no campanário há uma luz que vacila um pouco. Isso chama sua atenção e ele se pergunta “Que luz é aquela?”. Desce então para o vilarejo, tenta olhar de vários ângulos e de todos os ângulos de onde avista o campanário, vê essa luz, como se viesse de um pequeno lampião ou de um pequeno candeeiro… Sai do vilarejo e, de repente, olha para trás e não vê mais a pequena luz.

Ele está acompanhado de um garoto, filho de um empregado, que está dormindo. Ele acorda a criança para perguntar se ela tinha visto a mesma luz. A criança olha, vê a luz e diz: “Estou com medo!”. É nesse momento que Tchekhov é tomado por um medo intenso, que se dirige a um objeto que ele não pode definir qual é. O medo se refere a algo na lamparina, na luz ou no que quer que seja que excede  a forma de uma luz.

Em Francês, língua em que li por não ter encontrado ainda a tradução em português, a narrativa se chama Frayeurs. Este termo não significa exatamente medo: frayeur é susto, pavor. É uma coisa que tem um caráter mais súbito do que o medo. Eu não sei como se chama em Russo, mas dá para sentir desde já que existe alguma dificuldade na definição desse objeto.

Ter encontrado essa diferença feita por Lacan dificulta por um lado a nossa tarefa, porque medo e angústia se tornam muito mais próximos do que a gente pensava. Mas, por outro lado, facilita, porque nos tira da armadilha da alternativa clássica entre ter e não ter objeto.

Lacan dá uma definição do medo também na conferência A Terceira, de 1974. Ele se pergunta o seguinte: “Do que é que nós temos medo? Isso não quer dizer, simplesmente a partir de quê temos medo, é de que temos medo?”. E responde em seguida: “Nós temos medo do nosso corpo”. Ele faz aqui uma diferença entre angústia e medo dizendo que a angústia é justamente alguma coisa que se situa em outro lugar do nosso corpo. É um sentimento – no Capítulo 12, no Seminário 10, Lacan já fala a respeito – que surge da suspeita que nos acomete de podermos nos reduzir ao nosso corpo.

Para terminar a diferenciação entre angústia e medo, Lacan vai dizer o seguinte: “Nós nos apercebemos que angústia não é o medo do que quer que seja, do qual o corpo pudesse se motivar”. E segue-se a frase que se tornou igualmente célebre: “A angústia é o medo do medo”. Ou seja, a duplicação do medo na angústia é o que indica a indeterminação do seu objeto.

Encontrei no livro de Araceli Fuentes – nossa colega da AMP que esteve aqui conosco há algum tempo atrás -, Os mistérios do corpo falante, um bom esclarecimento da questão de termos medo do nosso corpo. Ela diz que certamente não é do corpo configurado, do corpo imaginário, do corpo que a experiência especular nos deu a cada um na infância que temos medo, mas de alguma coisa que ultrapassa o corpo na direção do desconhecido. No medo há um corte nas relações que existem entre o corpo e o mundo. É exatamente no encontro entre Tchekhov e a pequena luz – que o autor vai terminar sem descobrir o que é -, entre o corpo e algum objeto que ultrapassa a forma, que surge o medo.

Araceli Fuentes escreve o seguinte: “nós temos medo do nosso corpo porque o corpo goza”. E, mais adiante: “o corpo do qual temos medo, não é o corpo da forma, mas o corpo habitado pela pulsão”. Podemos guardar esta explicação de Araceli.

Parece-me que é por aí que a gente pode tomar a expressão de Lacan para angústia, “medo do medo”. O “medo do medo” – ou seja, o medo reduplicado – rompe com a boa relação que existe entre o corpo da boa forma e o mundo. É o medo diante de uma ameaça – isto é um termo que Lacan usa para a angústia, – de que algo possa escapar do corpo.

Nesse mesmo capítulo, Lacan utiliza os exemplos de Santa Luzia (+304 DC) e Santa Ágata (+251 DC) – em cujas imagens estão representadas duas mutilações. Ambas são mártires dos primeiros tempos do cristianismo: Santa Luzia tem uma espécie de bandeja na mão onde estão os seus olhos arrancados, enquanto ela tem olhos e está olhando os próprios olhos arrancados, e Santa Ágata, por seu lado, é retratada com seus dois seios retirados do corpo também numa bandeja. Lacan vai situar a angústia exatamente nessa exteriorização do objeto do corpo, que descompleta o corpo mas ao mesmo tempo não impede que se entre em relação com o objeto caído. É nesse intervalo aí que sobrevém a angústia.

A frase de Lacan que aponta a diferença entre angustia e medo é a seguinte: “O que ele (Tchekhov) teme não é coisa alguma que o ameace, mas algo que tem a característica de se referir ao desconhecido do que se manifesta”. Acho que temos que considerar a expressão inteira: o desconhecido do que se manifesta, ou seja: não é o desconhecimento geral, absoluto que provoca o medo, mas o entrechoque entre aquilo que se conhece e aquilo que leva o objeto na direção do desconhecido.

Clinicamente, sobretudo no que diz respeito à clínica das fobias, sabemos que a relação entre o medo e a angústia é muito mais próxima do que parece. Não só existe uma passagem do medo para a angústia e da angústia para o medo, como também existe alguma coisa que permanece como um fundo de angústia em qualquer medo. Isso tem exatamente a ver, novamente, com o estatuto do objeto, indeterminado do lado da angústia e desconhecido do lado do medo.

Existe um gap ou intervalo, um corte, entre o desconhecido e o manifesto, e é nesse intervalo – eu estou retomando aqui uma expressão que nos serviu no comecinho de seminário – neste intervalo, nesse gap – é aí que o medo se situa ou talvez a gente possa dizer que ao invés de um gap existe algo que vai além do manifesto. É a maneira que Lacan encontra neste capítulo para falar desse além. Ele diz que: “o nosso medo não corresponde inteiramente ao objeto”. Ou seja, o nosso medo não é do mesmo tamanho do objeto do qual nós temos medo – isso me pareceu realmente uma explicação extremamente interessante.

Eles têm algo em comum – com eu disse o medo e angústia, e o interessante aqui esses dois afetos no nível em que Lacan explica no Capítulo 12 do Seminário 10 – ambos os afetos (o medo e a angústia) supõe o sujeito diante de um objeto que tem alguma maneira o ultrapassa. A partir deste ponto em comum, dessa ultrapassagem que há entre sujeito e objeto, que a gente pode pensar numa diferença entre os dois. Existe – como na luzinha lá de Tchekhov – alguma coisa de desconhecido que está contida no conhecido – Tchekhov conhecia o que é uma luz – o desconhecido está contido no conhecido, mas não revela o seu segredo. Não é um reflexo, porque não tem lua, não tem nenhuma janela, não tem nenhum espelho, nada que possa fazer a imagem revelada de uma luz. A narrativa termina s… em que Tchekhov possa dizer que finalmente descobriu. Nestes outros contos ele vai chegar a uma solução. Nesse primeiro não. Segundo o que diz Tchekhov concluindo a narrativa, eie nunca pôde saber o que provocava aquele fenômeno que lhe deu tanto medo.

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O que não se diz

Por Nohemí Brown

O que se presentifica do que não se diz.

Agradeço a Seção RJ e, especialmente, o Romildo do Rego Barros e Marcus André Vieira pelo convite ao trabalho. Hoje é a última reunião.

Aproveito essa oportunidade para trazer algumas colocações e inquietações de pontos que me interessam com relação à presença do analista. Uma maneira de afinar este assunto que tem se destacado ultimamente.

I

“O que não se diz” pode nos dar a ideia de que não se diz, mas que poderia chegar a ser dito caso haja as condições necessárias. Neste sentido, a excelente obra de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, nos dá um belo exemplo. Brás Cubas se autoriza a dizer, em sua condição de morto, o que não se autorizava quando vivo. As memórias póstumas ultrapassam um certo limite do dito. Mas é disto do que se trata?

Pensar nestes termos nos faz crer que é possível dizer o que não se diz. Que seria uma questão de ultrapassar o silenciado, de enunciar o segredo ou de esclarecer o mistério. Contudo, o dizer que se trata não é da ordem da confissão.

Podemos colocar como elementos separados: o que não se diz, o que não se quer dizer, e o que não se deve dizer. Cada um deles pertence a ordens diferentes.

O que não se diz nos interessa não porque não se queira dizer por falta de vontade. Senão porque é da ordem do ilegível, do incomunicável se queremos, mas que se faz presente de alguma maneira.

Talvez convenha colocar em termos do que não se pode dizer, no sentido de que há algo da ordem do impossível de dizer em jogo nos ditos. O que não se diz, está na encruzilhada do íntimo, está entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito. Essa é sua moldura.

Colocado isto, podemos localizar que é necessário que algo se diga para que apareça a cara do que não é possível.

Se colocamos a experiência analítica como uma experiência onde a palavra e os ditos tem seu lugar, é nela que o que não se diz encontra sua função.

Na própria regra fundamental – dizer tudo o que vem à cabeça já implica algo do impossível de dizer. É quase uma ironia, no melhor sentido do termo, uma lógica do todo que em si mesma é furada pela própria regra. Enquanto imperativo é imaginário, enquanto regra, sabe-se que não é possível dizer tudo, mas obtém-se um impossível ao submeter-se a ela.

II

O analisante demanda um saber, o analista lhe responde “fala”! E fala do que está errado, do que incomoda, do que o angustia. Com os ditos, diz mais do que acredita dizer.

Não há ser falante que não se encontre ligado aos traços, aos ditos e dizeres de uma história singular. Neste sentido, uma análise “só progride pelo veio da lógica, da extração das articulações do que é dito…”[1]. É necessário que se diga para extrair a função do que não se diz.

Neste sentido, se dá um lugar aos ditos, mas eles também se desvalorizam um pouco. Seu valor não está neles, somente.

Dizer o que não se diz, significa acolher o que se pode ouvir do que é dito entre as palavras. Dito de outro modo, esvaziar o sentido dos ditos do paciente, o que o preenche, o que o tampona. Contudo coloca-se uma certa contradição: dizer o que não se diz, com a condição de ser sob transferência. Destacam-se os efeitos do silêncio, que fixaram certas imagens, olhares, gestos ou frases.

III

O impacto de uma língua que não se sabe ler e escrever.

Uma anedota: um guia turístico em Berlim dizia – um pouco em tom de brincadeira—mas que foi sancionado pelo riso de todos os que estavam—que era importante seguir certas indicações muito atentamente, pois ser reprendido em alemão é bem mais impactante do que em português.

Há algo que se diz, mas não passa pelo dito, contudo impacta. Algo ressoa, se equivoca, se evoca. Considero que não se trata só de equivocar o sentido, de brincar com o significante, em um deslizamento de sentido. Mas bem, de certo esvaziamento do sentido por essa dimensão de impacto que presentifica o que não se diz nas palavras e excede o sentido.

A ressonância é uma propriedade da fala que consiste em fazer escutar o que ela não diz. É uma propriedade metonímica da fala. A interpretação não diz, faz escutar, e aí é barulhenta. E impacta.

Presentificar o que não se diz, entre o que se diz e o que não se pode dizer. Entre o que se diz e o que se escuta. Presentificar, introduzir um barulho na comunicação para fazer ouvir outra coisa. Ou um silêncio eloquente do qual não se fica impune. O que não se diz evoca uma presença, sempre incômoda e inquietante. Podemos pensá-lo como ressonância corporal da palavra.

Lacan, quando escreve no Seminário 19 “que se diga, como fato, fica esquecido por trás do que é dito”[2], coloca justamente antes desta frase algo que chama a atenção: tudo o que é dito é semblante. Tudo o que é dito é verdade. Tudo o que se se diz faz gozar. O dito implica a ordem do semblante e da verdade. O dizer implica um corpo que goza. Talvez possamos considerar que: detrás do que se diz, se esquece o dizer do que se goza.

Esse estatuto do dizer é paradoxal. Pois o que não se pode colocar em um dito, é algo que ressoa, se evoca, se equivoca. O corpo, com sua satisfação opaca diante da qual, através dos ditos, tenta dizer o que não se pode dizer.

IV

Pensar a fala, o falar em uma análise, em termos de ato de fala, desloca a ideia de pensar a fala – ditos e dizeres- só como palavras. O ato de fala implica um corpo que se coloca em jogo, em ato.

Isto reverbera no lugar do analista como ato analítico. Gostaria de tomar o ato do analista em seu laço pontual com a presença real do analista. O ato analítico é disruptivo, não é o tempo todo. Tem algo da ordem do que irrompe como Romildo indicava. Ele tem efeitos. O ato do analista implica uma interrogação sobre seu “fazer”. Como diz Pierre Guéguen é uma questão “sobre a operatividade da análise como ato de palavra- sob transferência.”[3]

O ato implica essa “reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real”[4]. Achei interessante trazer a questão da janela e o ponto de vacilação que implica o ato. Desse ato se espera operar “sobre o vivo, ou seja, sobre o corpo”, e esclarece a posição do analista como objeto a, ou de semblante de objeto como Romildo tem pontuado.

Por isso, gostaria de retomar a questão do que não se diz em relação ao “ininterpretável” que a presença do analista sustenta, como trouxe a vez passada a partir de Lacan no seminário 16[5].

Trata-se de uma função real –uma presença da ordem do real, não só do encontro dos corpos físicos, senão do encontro com algo da ordem do que não se vê, não se diz, mas que se presentifica – se pressente como indicava Marcus – esse objeto que está aí quando se faz vacilar a certeza que se obtinha do fantasma.

Vou retomar um exemplo citado por M. Bassols, e bastante conhecido, de Hilda Doolittle. Esta poetiza e novelista se analisava com Freud, quando este já estava com uma idade bastante avançada. Ela relata uma situação com Freud, seu analista, que a marcou.

Ela relata esse encontro em seu texto “Por amor a Freud. Memorias de minha análise com Sigmund Freud”. Hilda tinha enviado um buquê de flores para Freud no dia de seu aniversário. Ela teve este gesto até a morte dele. Mas numa ocasião, ela esqueceu de escrever o nome dela na pequena nota que acompanhava o buquê. Freud marcou o esquecimento e respondeu com uma carta supondo que era ela quem tinha enviado o presente. Apesar de não estar seguro, acrescentou “Em todo caso, afetuosamente seu… “-e também não escreveu o nome. Hilda Doolittle em sua sessão falou com certa indiferença, com pouca implicação até que Freud interrompeu batendo com a mão no encosto do divã dizendo: “O problema é que sou um idoso; você não acredita que vale a pena me amar”. O impacto destas palavras foi terrível para ela e não conseguiu dizer nada mais.

Não se trata do que diz, do que quis dizer, do que não se pode dizer, do que se silenciou. Senão do que não se diz e se coloca como limite do dito. Se presentifica, inclusive na nota escrita por Freud, como um ponto do que não se diz… e os efeitos de separação entre o que se diz e o que não se pode dizer. Se tomamos como tinha colocado antes, implica o impacto… do que não se diz.

Ela coloca em seu texto: “Foi exatamente como se o Ser Supremo tivesse batido com sua mão na parte posterior do divã onde estava deitada”. Entre o que se pode dizer e o que não se pode dizer. Com essas palavras, porém, o Ser supremo que exerce certa sugestão, fala desde esse lugar para dizer que ela não o considera um ser tão adorável. Sempre há, portanto, algo da ordem de uma mentira na idealização do objeto. A equivocidade que Miquel Bassols destaca é que na língua inglesa é igual o gerúndio deitando-se – lying– que mentindo – do verbo to lie.[6] Neste sentido, se pode brincar com a equivocidade das palavras do sujeito e dizer que a interpretação do Ser Supremo bate no divã onde ela tem estado mentindo sobre o objeto de amor.

Uma interpretação que impacta o sujeito e o acorda da sugestão, da demanda de ser amado. Abre a pergunta pelo objeto do desejo. Gosto da precisão de Bassols: não é uma interpretação da transferência, senão uma interpretação que se apoia na transferência, com o fim de esclarecer os efeitos de sugestão.

Neste ponto, o analista sustenta, com sua presença e seu dizer, o limite do que se diz enquanto semblante desse objeto estranho e ininterpretável que perturba e inquieta. Neste sentido, o ato analítico não é correlato da significação, senão da pulsão, da qual o analista passa a ser semblante de objeto.

O ato analítico faz ressoar um dizer. Eco do dizer no corpo.

O que nos interessa do que não se diz é o que se decanta em seu estatuto de resto. Não se trata de lembranças das coisas ditas… mesmo que os exemplos que trouxe curiosamente são de textos que tem a palavra Memória (Memórias póstumas ou Memórias de uma análise). São restos do que não se diz que impacta, perturba e de certa maneira fica como resto e empuxa para a interpretação ou a fazer algo com eles. Cernir e circunscrever esses restos implica o que se pode inventar com eles. Uma gambiarra? Uma bricolagem? Retomando o que Marcus trazia a última vez. Talvez se faz uma vida com eles.

6 de julho 2020

[1] Lacan, J. Seminário, livro 19. RJ: Zahar ed., 2012, p. 224.
[2] Lacan, J. Seminário, livro 19, Op. Cit., p. 221.
[3] Guéguen, P-G. Ato analítico. In: Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras-sob transferência. SP: EBP, 2018, p. 60.
[4] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Escritos. RJ: Zahar, 2003, p. 259.
[5] Lacan, J. Seminário, livro 16. RJ: Zahar, 2008, p. 338.
[6] Bassols, M. Las paradojas de la transferencia. In: Virtualia, n. 29, novembro 2014.

Comentário do Seminário Clínico A Presença do Analista  06/07/2020

O que não se diz (silêncio? barulho?)

Por Maria Corrêa de Oliveira

Compondo o Seminário Clínico A presença do Analista, de Marcus André Vieira e Romildo do Rego Barros, a corajosa apresentação de Nohemí Brown fechou o último encontro dessa série de três.  A cada encontro apresentador e debatedores permutaram seus lugares. Contar com a voz e com a presença êxtima de Nohemí em todos os encontros foi um presente que o plano virtual nos disponibilizou.  Um diferencial e tanto em um Seminário reestabelecido a partir da contingência pandêmica que nos atravessou.

Com precisas intervenções dos debatedores nas reverberações de uma língua que insiste em leituras e escritas próprias, a palavra circulou de modos distintos. Similar a uma figura topológica, onde não se localiza uma ruptura na passagem de um lado a outro, o formato de conversação se sustentou como fio condutor de apontamentos e indagações em enunciados que fizeram barulho, impactaram e apontaram a opacidade presente na comunicação.

Subindo em um trem em movimento, como se refere à sua participação ao longo do Seminário, e com uma minuciosa precisão na depuração de seu argumento, Nohemí apresentou algumas vias para expressar suas reflexões. Elegi aquela que me pareceu atravessar de fio a pavio sua apresentação.

Valendo-se da  célebre passagem de Lacan, “Que se diga, como fato, fica esquecido por trás do que é dito, /no que se ouve”[1]  a apresentadora debruçou-se sobre esse enunciado para tratar do que se apresenta no que se diz sem exatamente se apresentar no dito, ao que excede o sentido.  Algo dessa presença que se faz presente entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito, “uma encruzilhada do íntimo”, como denomina Nohemí, “na delicada extração do que não se diz, do que não se quer dizer, e do que não se deve dizer, cada um pertencendo a ordens diferenciadas”.

Para que se faça dizer e ouvir o que vibra, perturba e inquieta não se trata de ir em busca de segredos ou mesmo propiciar condições para uma confissão. Também não se está tratando de negativas, pois dizer que não é, já é dizer alguma coisa, mas sim de alguma coisa como uma presença que se encontra e se decanta entre, entre um dizer e o dito, como sublinha Marcus André.

Algumas questões guiaram o debate em torno da extração de um dizer e do fazer do analista a partir do ato e de seus efeitos. Apresento algumas delas: será preciso introduzir algo da ordem de um barulho para que se evoque o que não se apresenta? Sem o esvaziamento do sentido, de sentidos, como ouvir o silêncio dos balbucios pressentidos?  Que efeitos recolhemos do ato analítico em sua função transgressora?

Para atravessar tamanhas inquietações, Nohemí traz à cena a função de impacto presente na interpretação como ato analítico, a intervenção do analista como um barulho disruptivo que rompe com a cadeia de associações e possibilita o despertar do sujeito de seu sonho de ser amado, abertura para a via do desejo.  Valendo-se do exemplo de um ato de Freud na condução da análise da poetisa Hilda Doolittle, esmiúça o comentário de Miquel Bassols[2] sobre essa passagem, descrevendo   esse ato como um corte, um ato que faz vacilar a janela para o real.  O ato analítico promove o analista em sua função de objeto a, ou mais precisamente, como semblante do objeto, como recorda Nohemí trazendo pontuações recentes de Romildo.  Tratando do que não se diz, o analista se coloca como limite, borda do dito. Se presentifica como ponto do que não se diz, assinala Nohemí.

A ruptura que o ato promove apresenta uma precipitação, o “arrepio da significação presente na cadeia”, e nesse regime, às voltas com alguma coisa que se decanta entre o dito e o dizer. Estamos no regime da pulsão e não da significação, como indica Romildo em suas múltiplas contribuições para o debate. Na direção do real, enfatiza.

O comentário de Romildo me levou a uma entrevista feita com Lacan e transcrita no Triunfo da Religião. Em determinado trecho o jornalista afirma estar escutando atentamente o entrevistado.  Lacan ironicamente intervém, “Está escutando sim. Mas será que está agarrando daí um tantinho que se pareça com o real?”[3]

E o que nos interessa agarrar? “O que nos interessa do que não se diz é o que se decanta em seu estatuto de resto”, afirma Nohemí.

O ensino de Lacan aposta nos restos; traços, marcas, pedaços de histórias[4] de cada ser falante que se esgueiram nos ditos contidos na palavra/corpo e vibram, fazem vibrar, para que algo desse impensável possa ser pressentido.  Esses serão decisivos nessa perspectiva de um dizer. Extraídos como função, podem vir a fazer valer a partida em jogo.

A partir de Miller[5] localizamos   justamente nessa salvação dos dejetos que se precipitam entre os ditos, a incorporação da função de dejeto, o que pontualmente instaura a contingência de uma possível escrita. O ato analítico, de largo alcance, resgata a dignidade do analista ao marcar a oportunidade de trazer à cena o que se apresenta como mero dejeto. A função do analista encontra seu coração nesse movimento de resgate, nesse relançamento para dentro da cena do que seria pura perda.

“São restos do que não se diz que impactam e perturbam”, mas sobretudo se recolocam como resto, para que se possa fazer, quiçá, uma vida com eles. Gambiarra, bricolagem, um empuxo ao fazer, como remete Nohemí a formulações anteriores de Marcus André.

Na introdução de uma presença entre um não dizer e um dito, o analista é aquele que se detém a apreender o silêncio falante na borda do ruído. Dos buracos presentes na trama dos barbantes sempre que se diz de uma rede, como exemplifica Marcus, citando Guimarães Rosa, ao barulho silencioso do cabelo em crescimento, como canta Arnaldo Antunes, o fazer do analista traz para travessia o que fica esquecido, por trás do que é dito, no que se escuta.


[1] Lacan, J. Seminário, livro 19. RJ: Zahar ed., 2012, p. 213.
[2] Bassols, M. Las paradojas de la transferencia. In: Virtualia, n. 29, novembro 2014.
[3] Lacan, J. O triunfo da religião. RJ: Zahar, 2005. P.68
[4] Vieira, M.A. Restos.  RJ: Contra capa, 2008.
[5] Miller, J.A. Persperctivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. RJ: Zahar, 2011.p 227
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A presença do analista – o que não se vê da janela[1]

Por Romildo do Rêgo Barros

Será que a presença do analista é a reprodução mais ou menos fiel de outras presenças que foram surgindo ao longo da história de um sujeito? Todos se lembram que Freud comparou o analista a vários personagens da história do analisante: pai, educador, cirurgião…, etc.

Com Lacan, a expressão “presença do analista” diz respeito ao que justamente escapa ou excede os personagens. Quando um analisante associa, por exemplo, o analista a um dos personagens da série enumerada por Freud, está circunscrevendo alguma coisa do analista, claro, mas, sabendo ou não, está igualmente apontando para um além do personagem.

Quando um analisante, por exemplo, diz que o analista parece ou mesmo repete tal traço do seu pai, não está simplesmente apontando uma correspondência fechada, no sentido de que cada um dos dois personagens recobriria inteiramente o outro traço a traço, mas que há na verdade um elemento a mais. Neste caso, temos três elementos: temos o pai, o analista da comparação (“você é igual ao meu pai”) e, se posso chamar assim, o analista da função, que escapa a qualquer comparação. Digamos que este último, o analista da função, excede não somente o personagem como também o enquadramento da situação na qual a comparação foi feita, e é neste sentido que a ideia de um setting é insuficiente para nomear o que se passa em uma análise, o seu enquadramento. O termo discurso é bem mais apropriado, pois nomeia o dispositivo, o jogo de relações que há numa análise, e mais aquilo que escapa ao dispositivo, mas que é o motor do dispositivo.

II

O nosso seminário clínico deste ano, portanto, vai tratar da presença do analista, e esta nossa reunião de hoje, mesmo com os limites do virtual, são a sua abertura.

E já que falei mais acima de enquadramento, achei que seria oportuno lembrar um quadro, ou alguns quadros de René Magritte que dilui a separação entre o interior e o exterior, a partir de uma indecisão – indecisão nossa, os que olhamos o quadro – entre um quadro pintado e o exterior de uma janela, a tal ponto que não se sabe muito bem se se trata de um quadro emoldurado, ou da moldura de uma janela que dá para a paisagem.

Nas palavras do próprio Magritte,

“Eu coloquei em frente de uma janela, vista do interior dum quarto, uma pintura representando exatamente a parte da paisagem oculta pela própria pintura. Portanto, a árvore representada na pintura escondia a árvore localizada por trás dela, fora do quarto. Ela existia para o espectador, desta forma, ao mesmo tempo dentro do quarto na pintura e fora do quarto na paisagem real. Que é como nós vemos o mundo: nós o vemos como existindo fora de nós próprios, mesmo que seja apenas uma sua representação mental o que nós sentimos dentro de nós”.

O que nos interessa nessa explicação dada por Magritte ao seu trabalho, é que ele, com os recursos dados pelo ironia surrealista (que Paul Valéry chamava criticamente de “salvação pelos dejetos”, expressão retomada por Jacques-Alain Miller em um artigo que trata, entre outras coisas, da sublimação e do dejeto), cria um espaço de indecisão que não somente dilui a separação entre o dentro e o fora, como também nos mostra em que  medida cada espaço (a cena do quadro, ou o espaço exterior à janela…) depende do outro para se afirmar como realidade. Para nós, esta é precisamente a função da fantasia: considerar o ideal sem desconsiderar o resíduo. A separação entre o ideal e o resíduo é, no sentido psicanalítico, uma interpretação que, como dizia Lacan, deve visar o objeto.

O quadro de Magritte esconde a paisagem, mas ao mesmo tempo só subsiste, como ironia surrealista, a partir daquilo que ele esconde. Entre o quadro e a paisagem que se vê da janela, precipita-se um resíduo – que não é nem o quadro, nem a paisagem e nem mesmo a correspondência entre os dois -, um diferencial que é a própria causa do quadro.

III 

Voltemos ao analista e à sua presença. A primeira coisa que se pode dizer, me parece, é que há uma diferença fundamental entre a presença e o lugar. Enquanto este último reenvia ao simbólico – o lugar, por definição, está vazio -, a presença tem um peso de real.

O lugar diz respeito a uma articulação mais ou menos estável, como, por exemplo, um organograma sociológico ou institucional. A presença, como a entendo, se dá como irrupção, como uma exceção, quase como uma objeção ao lugar.

Podemos citar como exemplo da presença como irrupção o que dizia Freud sobre o súbito silêncio feito por um analisante. Para Freud, esse silêncio era indicação de que o analisante estava pensando no analista. Freud, aliás, não se privava de expressar essa sua interpretação para o seu paciente. No caso, a presença surgia como ruptura da continuidade das associações do analisante, e o analista irrompia no pensamento como um ponto de resistência, ou traumático.

Mas a presença do analista como irrupção é apenas um lado da questão. Além daquilo que a presença tem de súbito, existe a utilidade do analista dentro dos laços e dos discursos. Eu queria terminar por hoje com um trecho do artigo de Jacques-Alain Miller chamado A Salvação pelos Dejetos, expressão com a qual Paul Valéry criticava os surrealistas. Miller diz dos analistas:

“o que os salva mesmo assim – é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso.”

O que tentei apresentar hoje não é a única maneira de entender a presença do analista. Mas foi uma abordagem que me pareceu útil para iniciar o seminário clínico da Seção Rio deste ano.

[1] Seminário Clínico da EBP-RJ, em 04/05/2020.
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Sem.-Clínico

O que não se vê da janela¨

(e que só se pressente do vizinho)

Por Marcus André Vieira

I

O tema da janela tem longa história no ensino de Lacan.

Um primeiro aspecto é uma analogia, a de tomar a consciência, a estrutura do ego, como a de uma janela. Não no sentido de proteção ou barreira, mas de recorte.

Assumimos que é preciso, para suportar o excesso de estímulos do real, para sair do “sem recursos” da criança freudiana, de óculos. Não para ver melhor, mas para ver menos. A cultura, ou simbólico como dizemos às vezes, é o enquadre que nos permite discernir coisas, colocar algumas sob nosso foco enquanto outras se perdem, fora de cena. Neste sentido a janela equivale a um par de óculos.[1]

É todo um modo de estar no mundo. Seria ele exclusividade do recalque, da estruturação neurótica da vida? A discutir. De toda forma, quando a realidade psíquica e a fantasia, no sentido que lhe dá Lacan, são constituídas por esse jogo, o do par janela x fora da janela é quase impossível viver a vida sem ele.

Nesse contexto, é uma tentação pensar que uma análise se interessa pelo que não se vê da janela da consciência, pelo que ficaria de fora. Não é bem assim.

A célebre definição freudiana do inconsciente como Outra cena é relida por Lacan para mostrar que, como tantas outras, não é bem o que parece ser. O perigo é entendê-la apenas como cena oculta. O analista se liga a alguma coisa que não se vê, não acessível diretamente pelo esforço consciente, mas não a imagina como uma cena que, para ser vista, bastaria que se deslocasse o ângulo da câmera.

Esse tipo de cena que promovem tantos famosos em suas lives em tempos de quarentena. Vemos o interior da casa, tudo alegre, limpo e fofo. Esse tipo de cena complementar, apaziguadora é “outra”, mas não a que nos interessa.

A Outra cena do inconsciente não é nem mesmo quando alguém abre para nós seus armários e vemos uma cena secreta, feita de objetos escondidos nos porões da existência. A chave não é tanto onde estão os objetos, é o regime de desrealização que instaura uma análise e não a realidade alternativa que ela desenterraria.

II

É o espaço da estranheza e seus objetos que contam.

Para isso, não basta procurar o fora de cena, mas sim a desrealização que nos interessa e que acontece apenas em situações especiais.[2]

A mais comum ocorre quando duas cenas, duas realidades se contrapõem e torna-se indecidível saber em qual cena estamos. Na indecisão entre a paisagem comumente representada e a que nossos olhos apresentam, surge a estranheza.

É o que mostra a célebre situação de Freud. No trem, caminhando no corredor buscando sua cabine, vê chegando um senhor antipático até descobrir que é ele próprio refletido no vidro. Instaura-se um espaço entre Freud e Freud, o da

estranheza de Freud diante da antipatia dele mesmo para com ele mesmo.

O que importa, porém, é que o a desrealização vem apresentar, neste exemplo a rabugice de Freud e que lhe traz um aspecto inesperado de si mesmo. De maneira análoga, a perturbação da realidade sustentada pela presença “entre-dois” do analista, esse tão íntimo e tão estranho personagem, convoca lembranças, representações ao modo da antipatia de Freud. São coisas também feitas de elementos híbridos, colagens, fragmentos, tudo o que Lacan chamou de resto, dejetos a serem descartados, mas que não conseguimos jogar fora e que vão morar no “entre-dois” do recalque.

Por seu poder desestabilizador da realidade, esses elementos produzem revoluções, forçando reconfigurações do ego. Lacan reúne todas as características deste tipo de objeto em uma só letra ao denominá-lo objeto “a”, estranho objeto da psicanálise.[3]

III

Até ontem, a presença do analista, física quase sempre, quase sempre indefinida, instaurava esse espaço de estranheza praticamente por si só.[4] O que lhe acontece, porém, quando precisamos prescindir do corpo no ambiente virtual?

É preciso primeiro notar o quanto a situação especial e relativamente rara de Freud é hoje nosso quotidiano. Vivemos na pandemia todo o tempo entre a janela da casa e a do computador ou do celular. Já era nossa vida desde antes, mas o isolamento nos instaura radicalmente nesse “entre”. Não só entre janelas, mais ainda entre o antes e o depois da epidemia. Habitamos agora o espaço perturbado, que até então encontrávamos apenas raramente, esse espaço desrealizado tornou-se nossas vidas. Não à toa há tanta estranheza e angústia nesses tempos.

Como, já que a estranheza não é mais uma operação do analista, está em toda parte, fazer valer sua presença? A questão crucial da análise on-line me parece se concentrar nesse ponto, bem mais do que na presença ou não do corpo. Mesmo antes, não bastava estar fisicamente presente para que o estranho do corpo se apresentasse, no entanto, a presença do analista como coisa indefinida, parece ainda menos garantida, o que não significa que não possa haver análise on-line.[5]

IV

Há outro objeto a fundamental, não mais no campo visual, a voz. Bem mais difícil falar dele, mesmo assumindo que ele também se insinua no entre-dois da estranheza.

Seguindo o mesmo raciocínio empreendido para o campo escópico, o de sua estruturação ao modo cena x fora de cena, tendemos a pensar que haveria um jogo entre o que se ouve e o que não se ouve, mas que poderia ser acessado. Como se houvesse uma cena musicada, por exemplo a melodia, e um fora de cena, que se apresentaria como ruído, ou ainda um detalhe oculto da entonação, prosódia etc.

A experiência auditiva resiste a este modo de estruturação porque se estabelece não como descontinuidade, como o olhar, mas em um regime de continuidade. Sempre se ouve alguma coisa. Não é como na visão em que basta fechar os olhos para que a cena desapareça. A paisagem sonora não desparece nem mesmo se tapamos os ouvidos.[6]

A presença do Outro se objetaliza como olhar e voz, mas de modos distintos.[7] Para o objeto voz, de Lacan, como apresentação da presença do analista e de seu poder de interpretação, será preciso pensar menos em ternos de dentro e fora, visível e invisível e mais de ritmo e intensidade.

Então o objeto que nos interessa ganha outro aspecto. Melhor falar, em vez de objeto-mancha, de uma presença não exatamente ouvida, mas pressentida. Uma coisa que se insinua, que é presença pressentida. Que melhor exemplo dessa presença pressentida que a do vizinho que faz sons estranho ao lado? Ou ainda no panelaço?

Esse será o tema de nosso próximo seminário clínico. Quero apenas, para concluir, interrogar a que ponto lidar com o que não se vê da janela ou só se pressente do vizinho, objetos da psicanálise, poderia participar de nosso momento coletivo.

V

Não vejo sentido retomarmos estes temas sem quebrarmos também a cabeça sobre como e de que lugar eles podem participar de uma ação coletiva de mudança da situação concreta do país. Não porque teríamos certeza de uma contribuição válida, mas porque é necessidade vital.

Quando tudo que resiste a se definir ao modo “pão-pão, queijo-queijo” torna-se inimigo e ser destruído ou massa a ser eliminada, como ainda sermos difusores irônicos de estranheza, catadores de objetos estranhos?[8]

Quase em contraponto com tudo o que foi dito até aqui, creio que precisamos defender a realidade. Sabemos que ela é um sonho, nosso trabalho habitual é o de desrealizá-la, mas hoje, diante de tanta fragmentação, talvez tenhamos que escolher ao menos uma e reafirmá-la.

Qual seria, então, o comum que nos apoie? Um nós que nos reúna?

Entendo como o do humano tomado como podendo ser outra coisa do que é.

Não se trata de buscar Outra cena como realidade alternativa, mais ou menos utópica, mas sim a possibilidade das coisas, na distopia em que vivemos, sempre poderem ser Outra coisa. Na luta contra a necropolítica assim como na contramão do identitarismo ao modo americano, é preciso sustentar a todo instante, como em nossa clínica, que um pobre possa ser outra coisa que não pobre, ou um negro, ou uma mulher.

¨ Esse texto reúne o essencial de minha apresentação no primeiro encontro virtual do Seminário Clínico da EBP-Rio, com alguns acréscimos da apresentação do mesmo tema na atividade preparatória para o XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tmSzVsMGd2k&t=2196s). O que se lerá, deriva diretamente das conversas com Romildo do Rêgo Barros na preparação do seminário, assim como com Nohemí Brown a quem agradeço.
[1] Aqui vale o exemplo de Win Wenders no filme “Janelas da alma” várias vezes citado por Romildo e por mim mesmo. Ele lembra quando colocou lentes de contato e não suportou o excesso de visão, foi preciso voltar para o enquadramento de seus óculos de míope.
[2] Por exemplo, como produz a série de telas de Magritte denominadas “A condição humana”, trabalhado por Romildo no seminário clínico da EBP-Rio.
[3] Para homenagear o grande Aldir Blanc, quero destacar um desses objetos no bolero, Dois para lá, dois para cá, inesquecível na voz de Elis Regina. Um homem tira sua diva para dançar. No ambiente de realidade perturbada do salão da boite, “sentindo frio em minha alma”, com a cabeça “rodando mais que os casais”, a descrição da musa, entre ideal e cafona, delimita com precisão esse poder de estranheza do entre-dois, que atravessa toda a canção e se concentra no objeto que se introduz no clímax de sua descrição: o seu perfume gardênia, no dedo um falso brilhante, brincos iguais ao colar e a ponta de um torturante band-aid no calcanhar. Como em uma análise a estranheza precipita um objeto singular, que toca o inseguro dançarino da canção analisante como nenhum outro e faz com que ele nunca mais seja o mesmo depois desse encontro.
[4] O analista se insinua como presença indecidível. Isso pode ser feito pelo silêncio. Um silêncio que abra o espaço do estranho. Parece difícil, mas não é, basta que o analista não acredite a 100% que a realidade vivida no dia a dia é o real que interessa, nem que o material inconsciente é em si o real. Vale mais o que surge no entre-dois.
[5] Além disso, a estranheza no isolamento se desloca para o que está entre mim e o próximo. Entre mim e minha esposa ou filhos, ou o vizinho. É preciso, na sessão, online ou não, materializar o objeto estranho, que nos interpreta e nos reconfigura.
[6] Por isso instaurar um fora de cena sonoro é muito forçado, quando durmo com o ar condicionado ligado crio um fora de cena, mergulho no meu quarto, mas aquele ronron elétrico não é silêncio, vem forçar um dentro fora que não há por si só.
[7] Em meu livro A escrita do silêncio, propus essa diferença em termos de objeto olhar / janela/ fantasia de um lado, e voz / sinthoma / vizinhança, de outro.
[8] Lacan, em “Lituraterra”, já dizia que o ocidente (hoje diríamos o mundo eurocêntrico) é fundado no assassinato. Contrapunha a ele o oriente, em que um traço não é rasura, apagamento, mas marca de gozo. Com A. Mbembe, diríamos de outro modo: se a pólis eurocêntrica se constrói a partir de uma necropolítica, no Brasil, vemos como a necrópole do capital, em sua versão paranoica, pode ser suicida.

2019

Seminário Clínico: sonho e tempo

Coordenação: Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros

Vamos nos apoiar em fragmentos de análise envolvendo a interpretação dos sonhos para abordar o modo muito particular da presença do tempo no dispositivo analítico e de seu uso por parte do analista. Duas hipóteses nos nortearão: “O inconsciente tem existência temporal e não espacial” e “O real do sonho é o tempo”.

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