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Como transitar entre litoral e encruzilhada?

Andrea Vilanova

Para começar, vale repassar em linhas gerais algumas coordenadas da abordagem do corpo em Lacan, pelo papel que o tema toma nos tempos atuais, colocando o corpo no centro das discussões, desde a clínica à política, passando pela economia e cultura. Tomando aqui brevemente um percurso que ao longo do ensino de Lacan vai da primazia do simbólico à orientação para o real, temos ao menos três coordenadas fundamentais para pensar o corpo. Partimos de uma leitura na qual o corpo como imagem unificada antecipa-se ao sujeito[1], e sob a ação do simbólico apresenta-se como superfície de inscrição dos significantes do Outro, que o marcam de modo singular. Esta concepção do corpo mortificado pelo significante localiza o gozo fora do corpo e institui as balizas do sujeito entre o Outro e o objeto. As coordenadas fundamentais que sustentam o modo de satisfação – único para cada um – ancoram-se numa operação que celebra o nascimento do vivente como sujeito dividido no Outro da linguagem, ao mesmo tempo que só prescindindo do Outro é que poderá servir-se dele, tomando ao seu encargo sua posição no discurso.[2]

O imaginário participará dessa montagem como engodo que requer a operação do simbólico para restituir ao sujeito a nobreza de sua divisão sustentada na cadeia significante e na singularidade de sua resposta sintomática, que coloca em cena o Outro, o sujeito e o objeto. E o corpo sob os contornos das zonas erógenas ganha corporeidade pela perspectiva pulsional – o corpo libidinal –, no sentido que lhe oferece a série de objetos freudianos soletrados no corpo, aos quais Lacan acrescenta voz e olhar. Trata-se aqui de uma passagem fundamental que dará ao objeto freudiano um contorno renovado pela leitura de Lacan que inaugura um estatuto original para o objeto. O objeto a terá, então, um estatuto lógico, ainda que ancorado nas formas episódicas dos objetos soletrados no corpo, localizado entre gozo e significante. Quanto ao vivente na linguagem, Lacan avança e tira maiores consequências das relações entre as palavras e os corpos.

Nem só significante, nem só gozo, muito menos uma oposição entre gozo e significante, o que temos é um imbricado efeito de atravessamentos que marcam e, também, vivificam um corpo, como a noção de letra vem nos advertir e operar a partir da perspectiva do litoral.[3] Nesta trama, a linguagem vai ganhando materialidade e a língua que se fala, tomando corpo. A orientação pelo real desaloja a ordem simbólica, o real do corpo desliza do real pulsional em direção aos efeitos da língua e o imaginário sustenta muito mais do que a boa forma. Seguindo Lacan, vai se desenhando uma nova perspectiva para o que pode dar consistência a um corpo, e pode estar atrelado a artifícios que vão muito além da imagem do corpo próprio.[4]

Cabe aqui um corte na puxada de fios da teoria para retomar o percurso da provocação. Essas referências situaram o repertório que orientou a construção da provocação preparatória, dentro da construção da segunda estação das 27ª. Jornadas Exílios: sinthoma, corpo e território. A fim de lançar reflexões para dar tratamento ao binômio “sintoma e território”, decidida a falar para leitores de dentro e de fora de nossa comunidade de interesse, procurei falar desses conceitos utilizando uma linguagem capaz de transmitir a complexidade desses temas, ao mesmo tempo colocando-os o mais dentro possível da vida cotidiana. Flavio Cardoso produziu uma reação apoiado nos elementos históricos de suas aulas no circuito Pequena África; Maricia Ciscato escreveu um texto lindo que, se servindo da literatura, encontrou um modo poético para fazer reverberar esse binômio a partir da psicanálise; e Wallace Lino, por outro lado, nos enviou um vídeo.

Realizamos uma chamada de vídeo: eu, Flavio, Geisa Assis – coordenadora da estação –, Maricia e Wallace. Tivemos uma conversa da qual recortei algumas falas de Wallace Lino, sobretudo pelo que suas palavras provocaram em mim. Muito do que ficou daquela conversa foi ganhando forma com o passar do tempo e o desenrolar das jornadas. A conversa realizada por meio de uma videochamada foi um primeiro encontro entre nós. As palavras de Wallace saíam do repertório conhecido, algumas vezes era como ouvir uma língua, na qual reconhecia algumas palavras e ia seguindo, sem que fizessem sentido imediatamente.

Relatando perspectivas próprias sobre o trabalho que realiza no grupo de teatro, pelo modo como se enraíza na comunidade, Wallace me pareceu ir respondendo ao seu modo à “provocação” que elaborei. Apoiei-me na concepção de sintoma como resposta singular que se encontra com a noção de território como alteridade, cujas marcas se inscrevem em cada um de nós e nos constituem, um-a-um, pelo que se traça como lugar e, também, como laço – nos enlaces e desenlaces – nas trajetórias de uma vida, a partir das posições que vamos tomando nesse jogo. Quando Wallace reagiu fazendo questão de situar uma espécie de demarcação do seu território, a partir de signos não compartilhados com o que se situa fora do território Maré, algo ganhou relevo para mim, indicando que se tratava de uma perspectiva que me pedia um esforço a mais para alcançar os passos de sua fala.

Caminhando pela Maré e pelas propostas que vem desenvolvendo a partir de projetos variados, inclusive acadêmicos, aos quais dá um toque muito peculiar subvertendo o que se estabelece como uma expectativa de elaboração objetiva, Wallace falou en passant sobre um projeto. Partindo das religiões de matrizes africanas e seus rituais como canal de acesso à (re)construção de histórias pessoais e coletivas, vai vinculando os residentes daquela localidade a seus antepassados, ao mesmo tempo em que este giro retorna sobre esses atuais residentes, promovendo efeitos de “construção de identidade e de pertencimento”, nas palavras de Wallace.

Em dado momento a referência à encruzilhada se fez, por tudo que representa neste contexto a que ele se refere, mas especialmente, como um enquadre particular. Não avançamos naquele momento, mas o tema ficou ecoando e me levou a revisitar Luiz Rufino (2019), cujo trabalho, oriundo de uma tese de doutorado, pareceu-me inacessível ao primeiro contato, há algum tempo. A partir da reconstrução dos trabalhos preparatórios para a segunda estação, no esforço de decantação de onde surgiu este escrito, abriu-se uma nova via para acessar o termo encruzilhada. Alcançar um pouco do campo semântico a que este significante se refere, além do campo epistêmico que as palavras de Wallace sustentam, inaugurou-se para mim uma passagem que permite abrir questões que se colocam para a psicanálise, a meu ver, na medida em que nos apresentam leituras originais do que se apresenta na cultura e chega a nós na complexidade da problemática identitária, exigindo um novo giro com relação aos conceitos.

A encruzilhada é justamente um destes conceitos, que diz o seguinte: não há só um caminho. O projeto da modernidade ocidental construiu a dimensão do entendimento de forma polarizada. Existe o certo e o errado, o bem e o mal, deus e o diabo, o civilizado e não-civilizado, o eu e o outro, o familiar e o exótico. A encruzilhada desmantela isso tudo, rompe com os binarismos e aponta uma perspectiva de responsabilidade para nossas escolhas.[5]

Entre memória, reconstrução e invenção muitos efeitos subjetivos fundamentais para um grande contingente de pessoas vêm se apoiando em estratégias que parecem particularizar uma dimensão de alteridade circunscrita, na qual uma espécie de consistência para o corpo é convocada, ao mesmo tempo em que se apresenta mais encarnada em signos identitários, no fenótipo e até mesmo no genótipo[6]. Esta alteridade consistente coloca o corpo num lugar inédito e problematiza a concepção de imaginário tomada de modo desvalorizado frente ao simbólico, ainda que a forma cativante do corpo esteja presente desde a leitura de Lacan no Estádio do Espelho.

Se partimos de uma composição que colocava a alteridade do lado do simbólico e suas incidências sobre o vivente – formulada em termos de marcas e apagamento das marcas, deixando margens num campo de interseção de onde se extrai o produto, o gozo que, refratário à própria linguagem, insiste na fala e no modo como cada um pode se servir disso –, precisamos apreender a torção que Lacan promove, esvaziando a primazia do simbólico, ao promover uma equivalência entre os registros. De uma leitura na qual o imaginário é atrelado ao corpo como imagem à concepção de que o imaginário é o corpo, Lacan subverte uma leitura do imaginário como secundário frente aos efeitos do simbólico e lança uma perspectiva mais real sobre o corpo. Esta consistência, a única consistência para o ser falante, como recorta Miller[7] da elaboração de Lacan – a partir de sua elaboração sobre Joyce – o leva a demonstrar que o corpo é uma invenção com a qual tomamos lugar no mundo: é com o corpo que erguemos o nosso mundo.

A ideia de passagens que a letra comporta, entre objeto e significante, que acompanha o conceito de litoral, parece muito precisa por permitir o atravessamento entre campos distintos, o que resulta em territórios vivos, carregados de traços heterogêneos com matizes pulsantes. Que lugar para a retórica do litoral quando nos encontramos no coração da temática identitária, pois não se trata de tomar a marca pela perspectiva de uma singularidade carregada de certa ilegibilidade, suportada num modo de gozo próprio? Como pensar essa operação norteada pela singularidade mais radical quando deparamos com o corpo, cuja consistência é tomada a partir de traços compartilhados que operam como insígnias de pertencimento a um ou outro grupo? Como ler a encruzilhada que ressignifica pertencimento, história e lugar subjetivo frente à matriz de leitura que o litoral oferece a nós psicanalistas?

“Hoje, o que temos em comum, não é o laço social, político ou religioso, mas nosso corpo, nossa biologia. Transformamos o corpo humano num novo Deus: o corpo como a última esperança de definir o bem comum.”[8] No entanto, na impossibilidade de um bem comum diante dos efeitos nefastos da horizontalidade, fruto da dissolução de orientadores universais, trata-se de achar lugar em meio às categorias que proliferam, e, em alguns casos até operam, mas nem sempre são capazes de acolher o modo de cada um habitar um corpo. Neste campo híbrido, para além das fronteiras, é com o corpo que seguimos. O corpo segue como a própria encruzilhada onde cada um vai se ancorar, a seu modo e o psicanalista pode tomar parte nisso, como uma possibilidade de encontro nesses caminhos cruzados.


[1] Cf. Lacan, J. Estádio do espelho
[2] Cf. Lacan, J. Sem 11
[3] Cf. Lacan em Lituraterra em Outros Escritos
[4] Ver a elaboração de Lacan a respeito das possibilidades de sustentação da consistência corporal para além da imagem do corpo, Seminário, livro 23, na lição “A escrita do ego”, especialmente.
[5] https://educacaointegral.org.br/reportagens/pedagogia-das-encruzilhadas-
[6]https://www.almapreta.com/editorias/realidade/teste-de-dna-proporciona-encontro-com-passado-e-futuro-mais-conectado-com-origem-africana; https://revistapesquisa.fapesp.br/a-africa-nos-genes-do-povo-brasileiro/
[7]https://www.wapol.org/pt/articulos/TemplateImpresion.asp?intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9
[8] http://ea.eol.org.ar/04/pt/template.asp?lecturas_online/textos/laurent_hemos_transformado.html
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