skip to Main Content

Minha prática e o COVID-19

Isabel Lins

Queria falar a vocês sobre como percebo essa questão nos meus atendimentos, reduzidos hoje ao uso da tecnologia. Sem querer me precipitar, posso dizer que parte de meus pacientes está mais pronta para suas análises, que aumentaram sua disposição a associar livremente e vêm apresentando uma maior capacidade de elaboração.

Como entender que frente ao confinamento, ao exílio, ao isolamento, a um tal quotidiano, privado de suas costumeiras referências, um mundo inteiramente de cabeça para baixo, enfrentando riscos permanentes e imprevisíveis de contrair a doença, nos deparemos com inconscientes mais abertos, mais pulsáteis ou mesmo mais alertas?

A que podemos atribuir essa minha constatação, ou o que vem propiciando a alguns analisandos, esse maior comprometimento com os princípios da psicanálise, com o discurso analítico? Como pensar isso, que chamaria de um certo reflorescimento do inconsciente, justamente num período tão estranho, de reclusão, de clausura, e que se estende a toda a humanidade?

Pelo momento, vou me permitir avançar com as ferramentas que meu sintoma oferece, usando de metáforas, brincando um pouco com a precisão dos conceitos, afrouxando o rigor que se exigiria de um escrito. Deixar que fantasias e delírios possam ser nossos companheiros e nos tragam frescor. Afinal de contas, nesses tempos de pandemia, a natureza vem demonstrando com exuberância sua capacidade de regeneração e de renovação, sem que tenha havido nenhuma interferência do homem para isso, ao contrário, apenas a deixamos em paz.

Escusado dizer que falo, ou escrevo, também do lugar de uma ex-exilada, isso existe? Ou somos para sempre exilados enquanto sujeitos? Uma ex-exilada que durante quinze anos se viu privada do convívio com o seu país e com os seus.

Numa de suas comunicações, a propósito do que estamos vivendo, Bassols[1] nos traz o exemplo dos canais de Veneza, que, com suas águas límpidas, têm trazido de volta cisnes e peixes, numa nítida demonstração de que a vida ali era possível sim, quando então tudo indicava o contrário. Mas uma condição foi decisiva: o distanciamento social, a quarentena, que acarretou um afluxo muito menor de pessoas a transitar pela cidade, numa diminuição substancial de lixo despejado negligentemente nos seus canais.

Nem precisamos do exemplo italiano, o mesmo tem sido observado na nossa Baía de Guanabara, desaguadouro dos rejeitos industriais, dos também rejeitos de restaurantes e de residências, todos sem nenhum tratamento sanitário, In natura. Cessados ou diminuídos esses despejos, o que agora podemos ver são inúmeros cardumes e tartarugas felizes a nadar no habitat recuperado. Os exemplos são múltiplos.

De suprema importância também, é constatar que o vírus tem nos mantido, por força de sua propagação, afastados das tentações insanas e fúteis que a produção capitalista perfidamente nos oferece. Afastados do fascínio dos anúncios luminosos de gás néon e das vitrines que capturam nosso olhar, nos voltamos para o que há de mais essencial, de mais constitutivo da vida, para o que é mais simples.

Impulsos mais primitivos, marcas pretéritas dos significantes no corpo, nosso arcabouço psíquico submetidos ao recalque, se contentavam com prazeres mais imediatos, rompendo com outras relações de compromisso.

O imaginário de antes, que carreava uma certa representação do corpo e do mundo, já não se engata com o simbólico por este estar a se ocupar, principalmente, em dar significações aos novos acontecimentos, e a propiciar ao sujeito fazer face ao real e se arreglar com seus conflitos imaginários. Real, que, como diz Miller, está em desacordo com a ordem do universo, que não se confunde mais com a natureza, está fraturado, e a natureza, aviltada.

Miller[2], no seu Um Esforço de Poesia, nos diz também que uma epidemia instaura uma nova relação ao corpo, ao gozar e à fala. Para que o medo e a angústia não ocupem um lugar privilegiado na cena, fazemos ver ao sujeito que outros caminhos podem ser seguidos ou mesmo, desobstruídos.

Usando de uma licença poética ou de uma metáfora delirante, se a natureza respondeu à trégua que os homens lhe deram e vivificou-se, podemos considerar que esse tempo de pandemia e retraimento, de exílio, poderá também vivificar, fecundar o inconsciente do sujeito, aumentar sua produção, quer no nível do imaginário ou do simbólico, lhe oferecendo subsídios para que uma nova amarração com o real seja possível. Novas formas de gozo foram se apoderando do universo psíquico de cada um, carecendo de novos laços, de outros enodamentos.

Antes de terminar esse texto, vou falar de uma experiência: de quando, há muito tempo, estourou no estado do Ceará, Nordeste brasileiro, o açude de Orós. Mesmo que em muito, mas muito menor proporção, o ocorrido não deixou de ser uma grande calamidade para as comunidades inundadas pelas águas. Sabemos da importância que tem para essa região a água. É questão de vida e morte. Podemos imaginar o padecimento e o horror de ter vivido tal desastre.

Trabalhava então no Movimento de Cultura Popular e fiz, a pedido do Professor Paulo Freire, que aí também trabalhava, uma pesquisa para levantar dados para o seu método de alfabetização de adultos. Considerava ele a ocasião propícia para fazer um levantamento do universo vocabular dessas populações, sob o impacto daquela tragédia. Acreditava também no surgimento de um “pensamento mágico,” não tão raro por aquelas bandas do Nordeste – vide a lenda do Rei Dom Sebastião, as experiências místicas de Padre Cícero e a eterna devoção nordestina a este “santo”, a experiência de Canudos, os beatos que atravessavam terras e serras, pregando a palavra dos profetas! Euclides da Cunha e Glauber Rocha foram intérpretes, por excelência, desses episódios e das angústias e perdas que o povo nordestino teve que enfrentar.

No caso de Orós, como hoje no caso do COVID, uma nova realidade viria mudar a percepção das coisas e o modo de relacionamento entre os homens.

Munida de desejo e de um diário de bordo, partia para as periferias escutar que palavras usavam, que interpretações os moradores davam sobre o chamado estouro do açude de Orós e as registrava ao pé da letra. Bairro da Barriguda, do Alto Zé do Pinho, Bairro da Macaxeira, dos Afogados… Encruzilhada, Várzea. Quanta coisa aprendi!

Então vemos como aquele método, que alfabetizou tanta gente nas terras sofridas do Nordeste, precisava espelhar sempre as experiências vividas e contadas pelo seu povo, com palavras extraídas do seu universo vocabular, de seu linguajar único, de uma língua que, na ocasião, não suportava mais ficar exilada, soterrada. Veio à tona.

Talvez esteja pisando noutro campo do conhecimento humano, mas mesmo assim, o que adianto nos serve como um balizamento frente aos sujeitos. Aquela tragédia despertou e carreou mitos, que, como nos diz Freud, são protótipos, criações que explicam as origens; temos Édipo, como o mais importante dentre eles, temos o recalque primário, a própria pulsão e muito mais.

Antônio Galvão[3], comentando o livro de Fernando Caio Abreu, nos diz: “O exílio enquanto experiência traumática instala a necessidade das personagens em narrar os acontecimentos difíceis que o caracterizam”. E mais adiante: “Mas as tentativas de transformar as experiências de exílio em relato, narrar essas perdas e os destroços da errância, obstruem-se nos limites de uma palavra que parece insuficiente para alcançar a experiência daquela realidade indizível, que não pode ser “verdade”, que não pode ter acontecido. Por isso a insuficiência da palavra para descrever e narrar a experiência traumática das personagens dos Contos de Exílio de Fernando Caio Abreu”.

Por sua vez, Lacan nos diz que uma língua se faz ao falar. Não será que o Vírus COVID-19 – com sua carga mortífera e sua invisibilidade, que nos provocam medo, angústia, desamparo –, só o suportamos falando, falando e falando mais? O sujeito é vontade de dizer, de dizer ao Outro, nos lembra Miller. Talvez tenhamos aí mais uma explicação para a intensidade que venho observando nas análises, na produção dos analisandos, nas suas associações, nos sonhos, nos lapsos. Até mesmo numa certa moderação no seu modo de gozar.

Munidos de algumas das ideias tratadas no texto, poderíamos afirmar que tragédias dessa proporção trazem necessariamente novas cadeias significantes capazes de ressignificar modos de viver e de gozar. Será que é a isso que chamo de uma maior abertura ao inconsciente, de um florescimento, cuja produção vem aproximando mais alguns analisandos do método e do discurso psicanalítico?

Rio de Janeiro, 17 de maio de 2020.

Post scriptum: Escrevo ou falo para manter viva minha memória, seja ela de antes ou depois do exílio, pouco importa.

 


Bibliografia
  1. Miller, J.A. Seminário “Extimité”, 1985-1986 – Esse curso foi dado por Miller dentro das atividades do departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII. Transcrito a partir do texto de Jacques Peraldi, não revisado pelo autor.
  2. Lacan, Jacques, consultas esparsas.

[1] Bassols, Miquel – “A Lei da Natureza e o real sem lei”, publicado originalmente em Zadic Espanha, gentilmente cedido pelo autor para o Correio Express, 20/03/2020
[2] Miller, Jacques Alain. Un Effort de Poésie, Orientação Lacaniana, 2002/2003.
[3] Galvão, Antônio – Exílio, Ficção e História sobre os contos de Fernando Caio Abreu nos diz: “O presente trabalho consiste em um estudo das imagens literárias do exílio em contos de Fernando Caio Abreu.”
Back To Top