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O luto do exílio – por Romildo do Rêgo Barros

“Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais”

(Chico Buarque)

Estamos homenageando nossa querida Stella, que se foi na última semana. Ficamos todos de luto: A Seção Rio, a EBP, a psicanálise, e muitas pessoas que com que ela tiveram algum tipo de encontro: das análises às supervisões, dos estudos ao cinema, da dança ao cultivo das amizades.

Stella pertencia à geração dos argentinos – dentre eles muitos psicanalistas – que foram obrigados a deixar o país, assim como tantos outros jovens latino-americanos que se espalharam pelo mundo nos anos sessenta e setenta, numa longa viagem de fim incerto que, tendo-os poupado do destino terrível dos trinta mil assassinados da ditadura argentina, das centenas de desaparecidos brasileiros e de milhares de chilenos, tornou-os no entanto estrangeiros: daí para a frente, outras línguas, outras culturas, e, em muitos casos, uma nova descendência.

Quem não lembra do uso bem particular que Stella fez da prosódia brasileira? A este respeito, veio-me nestes dias uma lembrança bem antiga, de uma pergunta que me fez ela certa vez:

Como vocês fazem para distinguir “avô” de “avó?

Isto exigia dela uma difícil diferenciação: entre dois acentos na vogal o, e entre duas consoantes que em espanhol não se distinguem, v e b.

Stella era uma exilada. Médica, psicanalista e exilada. Terá este termo, “exilada”, tido para ela todo o seu peso no instante preciso em que propôs Exílios como tema das nossas Jornadas Clínicas deste ano? Talvez nunca o saibamos, e nunca sabermos fará parte do nosso luto.

No seu seminário de número 8, A Transferência, Lacan descreve o trabalho de luto nestes termos:

“O luto consiste em identificar a perda real, peça por peça, pedaço por pedaço, signo por signo, elemento grande I por elemento grande I, até o esgotamento. Quando isso está feito, acaba.”[1]

Acaba o quê?

Não acaba a perda, como se o trabalho do luto pudesse devolver o objeto perdido. O luto visa, ao contrário, identificar o objeto como perdido, o que impõe um trabalho que o recalque não alcança. Para isso, o perdido se reparte em peças, pedaços e ideais, que nunca mais recomporão a unidade.

No bem dizer poético de Drummond,

Amar o perdido deixa comovido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”.

Diante disso, não bastará escavar em uma pedra Aqui jaz, apesar da grande importância que tem a inscrição simbólica, que eleva as sepulturas à dignidade de um Memento! que cada um lê como pode. A inscrição não bastará para que tudo finalmente se concilie, e as respostas derradeiras se reúnam num coro universal.

Naqueles que Stella amou, e nos que porventura tenha odiado, algo fica. Alguma coisa sempre permanece, mas exilada de si.


[1] Lacan, J.: Seminário A Transferência, JZE, Rio de Janeiro, 1992, p. 379-380.
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