Licene Garcia A Comissão da Diretoria de Biblioteca da EBP-Seção Sul, nesta 7ª edição extraordinária…
O SUPORTE CORPORAL
Graciela Brodsky (AME, EOL/AMP)
Obrigada pelo convite, obrigada por estarem aqui. Ontem soube que a última vez que estive em Florianópolis tomando a palavra foi no ano de 2007. Passaram-se muitos anos, mas aqui estamos. Vamos falar do discurso e dos corpos, que é o tema que vocês escolheram para esta quinta jornada da nova Seção Sul da EBP.
“Há quatro discursos”. Lacan escreve isso em um panfleto, onde defendia o departamento de psicanálise que ele havia criado na Universidade de Paris VIII. Esse departamento estava prestes a fechar. Lacan escreve um panfleto e, nele, figura a famosa frase “há quatro discursos”. Contudo, há somente um que não tem pretensão de domínio, ele diz ali mesmo – é o discurso analítico.
Para seguir a inspiração de vocês, que toma como eixo indubitavelmente o último capítulo do Seminário 19, os corpos aprisionados pelos discursos, poderíamos nos perguntar o que é que cada discurso pretende dominar. Para começar, poderíamos dar uma resposta rápida, que nos orienta no que se segue. Se há discursos, é para dominar o corpo e seu gozo, dado que não há relação sexual.
Não sei se vocês sabem disso, se calcularam isso, mas a última aula do Seminário 19 abre a perspectiva do que vai ser o tema do Congresso da AMP em 2026 em Paris, que tem por título o aforismo lacaniano “não há relação sexual”. Portanto, pelo tema que vocês trazem, os corpos aprisionados pelos discursos, seria possível considerar que esta conversação é o primeiro andar que vai em direção ao Congresso do AMP sob o aforismo “não há relação sexual”. Se houvesse relação sexual… sabem, que a tradução ao espanhol da fórmula francesa é ruim, mas não há nenhuma melhor, não sei como é em português, também dá confusão? Ah, sim. Em francês, que é como o formulou Lacan, já que falava francês, é il n’ya pas du rapport sexuel, a palavra que ele utiliza é rapport, poderia ter dito il n’ya pas du relation sexuel, mas não usou isso. Ele utilizou especialmente a palavra rapport, que supõe proporção. Quer dizer que entre os gozos masculinos e femininos não há relação, não há proporção, o que não quer dizer que não existam relações sexuais – que é claro que existem e todo mundo sabe. Na relação sexual mesma não há proporção entre os gozos; são gozos que não se acomodam, não há melhor maneira para dizê-lo em espanhol, porque dizer “não há proporção sexual” não quer dizer nada para ninguém. É preciso fazer toda uma aclaração como a que estou fazendo agora. Então, não serve.
Se houvesse proporção entre os sexos, se houvesse relação sexual, os corpos saberiam como se orientar no mundo. Lacan diz isso muito sutilmente nessa última aula do Seminário 19 fazendo, ao mesmo tempo, uma referência ao termo Umwelt, que é o entorno no qual vivemos, nosso meio ambiente, dizendo que precisamente os corpos não sabem como se orientar no mundo em que vivem. Não sabem como se cuidar e aí faz uma crítica contundente a Foucault, porque introduz a questão do higienismo. Quer dizer que coloca de entrada uma dificuldade que os corpos humanos têm para se virar com seu entorno e com seu próprio corpo, algo que as teorias da adaptação, Umwelt, e as teorias do higienismo, o cuidado de si de Foucault, colocavam em primeiro plano.
Nessa aula, Lacan rejeita essas duas ideias para colocar em evidência que o homem é um inadaptado, que não sabe se adaptar ao mundo em que vive e que não sabe cuidar de seu corpo, não sabe nem como se cuidar nem como acasalar. O gozo dos seres humanos é um gozo alterado, desviado de sua satisfação natural. Com seu corpo, o homem não sabe o que fazer e muito menos o que fazer com o corpo do outro. Se fosse um animal, esse problema estaria resolvido, é o que o instinto resolve, que permite saber onde está o perigo e, então, ir na direção contrária, e saber qual é o partenaire adequado e qual é o inadequado. Mas isso não funciona no humano. A consequência para a qual Lacan aponta é que, ao não haver relação sexual, é preciso haver um discurso que estabeleça um laço. Isso porque o que “não há” coloca em acento a falta de laço, a falta de relação.
Um discurso, qualquer dos quatro, estabelece um laço ali onde não há laço. Essa é a função essencial do discurso. Por isso, o discurso é um laço social. Seria possível dizer que o discurso estabelece um laço social ali onde não há laço sexual. O problema é que há gozo e não há laço. Esse é o impasse fundamental em que nos encontramos. Esta é a estrutura e, ao mesmo tempo, o impasse de nossa clínica: há gozo e não há laço.
Muitas vezes, falamos do que há de novo, que para nós implica a clínica contemporânea. Entretanto, tenho a suspeita de que aquilo que a clínica contemporânea faz é colocar em evidência um impasse que sempre existiu. Não temos um novo impasse, os impasses não são novos. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes. Não é apenas que os semblantes vacilam, senão que são reconhecidos como semblantes. Isso faz com que os grandes significantes que organizavam o laço em outra época – Lacan sempre menciona a igreja, o exército, a família, poderíamos dizer – esses grandes significantes se revelam como semblantes. Isso não quer dizer que, antes, eles não fossem semblantes, mas simplesmente que, antes, se acreditava neles e agora já não se acredita mais. A contemporaneidade não é uma nova ordem simbólica, mas a questão é que não se acredita na ordem simbólica como antes. É um pouco como quando falamos da queda do Nome do Pai: o que caiu é a crença. Nunca existiu, sempre foi uma criação, mas se acreditava nisso e essa crença regulava os laços. A falta de crença é o que dizemos que, da função do Nome do Pai, deixou de funcionar. O que deixou de funcionar é nossa crença, porque nunca funcionou de fato.
Em qualquer dos discursos há um real, e esse real é que não há relação sexual. Isso vale para os quatro discursos. Esse impasse, que percebemos em nossa clínica, Freud o resolveu, acreditou resolvê-lo, e como acreditamos em Freud, a coisa andou durante muito tempo. Freud o resolveu com o Édipo e o Nome-do-Pai. Lembro-me de uma fórmula que J-A Miller usou uma vez, que sempre me pareceu muito bonita ao dizer que o Nome-do-Pai tinha, para Freud, o manual que regulava as relações sociais: com quem era permitido casar-se, com quem não, as relações proibidas. O Édipo finalmente é isso, um aparelho que regula o laço, o manual do permitido e do proibido. Dessa forma, uma vez que se estabelecia esse manual, graças ao Édipo, abria-se o espaço dos laços possíveis.
Os quatro discursos de Lacan são uma maneira, mais além do Édipo, de fundar um laço e suas impossibilidades. Impossibilidades que vêm no lugar das proibições freudianas, mas, é possível dizer que, ali onde Freud estabeleceu esse sistema de laços permitidos e proibidos através do Édipo, Lacan colocou nesse mesmo lugar os quatro discursos. São uma maneira de substituir a proibição pela impossibilidade. Cada discurso, se olharem bem, inscreve um laço possível e um laço impossível. É uma maneira de apresentar, no andar de cima, o laço possível entre um significante e outro significante, entre S1 e S2, o laço possível que funda o discurso do mestre e do inconsciente. O laço possível entre o saber e o objeto a, o laço possível entre o objeto a e o $, o laço possível entre o $ e o significante mestre. No piso superior, cada discurso escreve um laço, e o escrevemos fazendo uma seta quer dizer que estabelecemos a relação entre esses significantes. Enquanto isso, no andar de baixo, ao passo que escreve dois significantes, no meio há uma barra para dizer que esse laço é impossível. Dessa maneira, cada discurso, a seu modo, escreve um laço possível e um laço impossível. Os quatro discursos recuperam o laço impossível, escrevem no piso inferior o que posteriormente terá a forma radical de que não há relação sexual.
É preciso ter presente que quando Lacan diz que não há relação sexual, é uma das formas de que não há relação. O importante não é que não há relação sexual, o importante é que não há relação. A bomba que Lacan põe em sua própria teoria é a fórmula não há. O não há relação penetra toda a sua confiança no simbólico, toda sua confiança na cadeia significante, não há relação é fundamentalmente não há relação entre S1 e S2. O escândalo que Lacan produz com isso reformula sua teoria do sintoma, do inconsciente e da interpretação.
É possível dizer que cada discurso escreve a relação possível, a relação impossível, e que a relação na parte de cima é sempre uma relação de semblantes. É possível dizer também que há um laço que não existe, e porque há um gozo inapreensível, todo discurso é do semblante, porque nenhum discurso consegue aprisionar esse gozo inapreensível. Isso faz com que todas as maneiras com as quais pensamos tratar o gozo, dominá-lo, refutá-lo – e cada discurso o faz à sua maneira -, todas essas são formas de semblante. Isso é efetivamente um gozo que não entra no circuito do discurso. Entre o laço que não existe e o gozo que há, inapreensível, abre-se toda a dimensão de nossa clínica.
E o corpo? Que lugar ocupa o corpo no discurso? Onde está? O que nós analistas sabemos do corpo? Se olharmos os quatro discursos, há quatro lugares: o agente, o Outro, a verdade e o produto. Ou, segundo o Seminário 19, não sei se viram, Lacan muda o nome dos quatro lugares, e passam a se chamar: o semblante, o gozo, a verdade e o mais-de-gozar. Outro dia é possível se dedicar a pensar nisto, o que o levou a abandonar esses nomes. Olhem os significantes que circulam nesses quatro lugares: o S1, S2, $ e o objeto a. Onde Lacan situou o corpo? Primeiramente, o que se pode dizer é que o corpo não figura nos quatro discursos. Entretanto, se pensarmos um pouco mais, para falar, é preciso de um corpo.
Estamos acostumados a dizer que é preciso de um corpo para gozar. Repetimos nossas fórmulas como se fossem evidentes, mas há fórmulas mais evidentes ainda que não levamos em conta, que é que para falar é preciso de um corpo. Não apenas para gozar é preciso de um corpo, mas para falar também. Ao paciente, não apenas lhe é solicitado que fale, mas que venha. Ainda que, às vezes, como ouvimos agora, também podemos consentir que não venha, mas isso, quando não faz parte da pandemia, faz parte da estratégia do analista. Se quer que o paciente venha de corpo presente, como se diz, é porque o corpo faz parte de nossa prática, o corpo próprio e o do analista. Quando nos resignamos ao Zoom tudo isso se perde. Um espirro, um bocejo, o barulhinho dos papeis, uma ausência.
Tudo faz entrar em jogo o corpo do analista. E se a psicanálise segue sendo praticada na presença de ambos os atores, é preciso considerar que a palavra não é tão independente do corpo, e que a palavra no telefone e a palavra na tela não têm a mesma função. A presença corporal não é contingente, assim como não é contingente que vocês estejam aqui de corpo presente e que eu não esteja falando para uma tela.
Escutem seus pacientes. Não é fácil escutar os analisantes sem notar que o corpo não tem um lugar circunstancial. Alguns pacientes falam do corpo? Não, todos falam do corpo. O corpo parece concentrar uma libido, um interesse, um motivo de preocupação, de queixa, de satisfação, de sofrimento que nos faz falar. O corpo nos faz falar. Inclusive quando vamos ao médico queremos falar e nos incomodam muito as novas práticas da medicina que não nos deixam falar, que nos passam diretamente à máquina. Queremos falar do corpo, porque há algo do corpo que não conseguimos representar.
Numa análise, traz-se o corpo, fala-se do corpo, do corpo próprio, do corpo do outro, com o qual normalmente não se sabe o que fazer. O corpo, longe de ser uma variável interveniente que teríamos que neutralizar para dar lugar à palavra, o corpo parece ser, na realidade, o referente dos ditos do analisante. Se na análise falamos do corpo, do nosso corpo, do corpo do outro, é porque o corpo sempre é Outro.
No fim do seu ensino Lacan dirá: o único Outro é o corpo. Sempre incômodo, sempre inadaptado. Quando falamos do corpo, entendemos que se trata de um corpo afetado. Afetado por algo que, por defeito ou por excesso, por muito ou por pouco, localizamos em nosso vocabulário como gozo. Um gozo em excesso ou um gozo que falta. Quando falamos do gozo, quando falamos do corpo, falamos do gozo do corpo. Esse é o corpo que levamos para a análise, do qual não podemos nos desprender.
É preciso ler a última aula do Seminário 19, é o que vocês estão fazendo: o gozo existe, diz Lacan, então, devemos poder falar dele, está em todo lugar nos ditos do analisante. O dito é o que se escuta, mas o discurso somente aprisiona esses ditos como mais-de-gozar. É isso o que permite falar do gozo. Esse parágrafo é fundamental. É possível falar do gozo? Pareceria que não falamos de outra coisa, mas Lacan precisa: esse é o gozo do qual se fala. E o gozo que se fala é o gozo que ele escreve como mais-de-gozar, quer dizer, objeto a.
O corpo está aprisionado nos discursos, a partir do objeto a. É assim que o corpo está presente nos discursos, mas o que é o corpo presente como objeto a? É um corpo fragmentado. É um corpo fendido, desenhado pela linguagem. É o que fica do corpo, uma vez passado pela máquina trituradora do significante. É o que fica do corpo, uma vez que a pulsão desenha seu percurso. O objeto a não é o corpo, mas é o que fica do corpo, é o resto de corpo, uma vez que o corpo foi capturado pelo significante.
Do corpo, em seu sentido radical, não do objeto a, mas do corpo, em seu sentido radical, não há captação nenhuma, diz Lacan nessa última aula do Seminário 19. Somente pode se articular algo desse suporte do corpo que é o discurso, e ali o encontramos como um corpo cujo gozo foi talhado, recortado pela pulsão, seja anal, oral, escópica, invocante. Isso é o que o discurso aprisiona, e o escreve como a. Por isso, no Seminário 20, apenas depois do Seminário 19, Lacan poderá dizer este parágrafo que nos deu voltas na cabeça em seu momento: o objeto a é um semblante. Nos quatro discursos, não há outra coisa senão semblantes. Sabíamos isso a respeito do S1, do S2, do $, mas do a, foi preciso chegar ao Seminário 20, para ler esta frase: todos os significantes não são mais do que semblantes incapazes de nos dar um acesso ao real.
Entre o gozo que há e a relação que falta, o núcleo elaborável do gozo é o objeto a, diz Lacan em A Terceira. O núcleo elaborável do gozo é o único do gozo do qual podemos falar. O objeto a, diz Miller, é a face dócil do gozo. É o gozo enquanto seu lugar que lhe é assignado pelo significante, ali onde deve estar. Trata-se de um gozo localizado, o objeto a é a domesticação do gozo, é a domesticação da libido. Daí a importância que tem, em nossa clínica, poder distinguir em nossos casos quando o gozo está localizado como objeto a e então entra a funcionar no fantasma como objeto oral, anal, olhar, voz, a despeito do que se produz no nível da clínica quando o gozo não está localizado. Quando o gozo é errante e toma o corpo de uma maneira que não chega a se circunscrever em um objeto, ali temos uma percepção de um gozo fora do discurso, de um gozo que não foi aprisionado pelo discurso.
Poderíamos dar um passo a mais e nos perguntar: de que maneira cada discurso pretende aprisionar o corpo? Mais precisamente: como cada discurso acredita aprisionar o corpo? Sendo que apenas aprisiona esse gozo em menos, ainda que se chame mais-de-gozar, é um gozo em menos que é o objeto a.
Discurso do mestre
O discurso do mestre, está escrito, é o grande produtor de mais-de-gozar, é a máquina. Ele nos faz digerir esse resto em um excesso do objeto olhar, com a proliferação do espetáculo e da tela, nos faz digerir os bons alimentos, os que são saudáveis, que não engordam, que são light, que são para aumentar a expectativa de vida. Ele nos faz ingerir uma proliferação de objetos a, em cada mesa que servimos tem o pão de fermentação natural, tem o iogurte desnatado e o adoçante natural, porque é de stevia. Tudo isso é uma produção de mais-de-gozar; passamos a vida nisso.
Também com nossos gadgets a analidade é colocada no lugar da produção do discurso do mestre. O que isso quer dizer? Bem, diferente do caso que ouvimos, do caso que a paciente tinha em sua analista a tia do cocô, isso é, o objeto a no consultório analítico. Entretanto, nós estamos o dia todo com isso na mão, ainda que pareça feio, mas quanto dura hoje em dia o Iphone 15 antes de que saia o 16? Um suspiro e já estamos prontos para o novo.
Vivemos num mundo em que o discurso do mestre está se apropriando completamente de nossas vidas, somos os consumidores desse objeto a que está no lugar da produção do discurso do mestre. Somos seus consumidores e se pode dizer que somos seus consumidos. Assim como Lacan diz, que, finalmente, a imagem que vemos na tela nos olha, nós, que acreditamos ser os agentes do discurso, acabamos sendo os escravos do discurso.
O discurso universitário
O discurso do mestre pretende capturar o gozo no objeto a, em sua produção com suas quatro variações. Como o discurso universitário pretende capturar o gozo? Ontem falamos disso com alguns de vocês, é fazendo do saber uma domesticação do gozo. O discurso universitário, quando Lacan o distingue do discurso do mestre, traz sempre como exemplo Sócrates, como o mestre antigo. O mestre antigo caminhava e interrogava a cidade sobre o bem, o belo, a verdade e todo o resto, e as pessoas o seguiam. Ninguém pensava que, depois, Sócrates diria: tirem uma folha e escrevam o que aprenderam sobre o bem, sobre o belo, e vamos fazer uma prova. Isso era um saber que circulava pela cidade e que tinha adeptos; era a ideia que Lacan tinha de como deveria ser sua escola. O discurso universitário ensina sobre a verdade, o bem e o belo, e, depois, avalia, coloca um número, uma nota, uma letra, ao que sabemos. Nós colocamos uma nota ao professor também. Isso é algo novo. Não sei se vocês têm isso também. Como iríamos imaginar que o professor que avalia os alunos iria ser, por sua vez, avaliado pelos alunos e que dessa avaliação iria depender seu futuro? Isso é uma novidade do discurso universitário que permite ver de que maneira o saber pretendendo dominar o gozo resulta totalmente inútil.
Há algo do gozo que é indomável, há algo da aprendizagem que resiste. O discurso universitário é especialmente interessante. O que ele tem no lugar da produção? Ele tem o $, o discurso universitário produz sujeitos barrados. Bom, isso não soa mal! No entanto, produz sujeitos barrados com uma dupla barreira a respeito do S1, ou seja, sujeitos barrados que não têm nenhum significante que os represente. Essa é a melhor definição da errância que encontramos na clínica: esses sujeitos que não têm um significante que os represente.
Hoje escutamos um caso que colocava em evidência isso, alguém que poderia querer ser médico, estudante, mas não tinha um documento de identidade. O discurso universitário produz sujeitos desidentificados de uma má maneira, porque não tem um significante que os represente. Uma boa parte da clínica contemporânea é uma maneira de ler as consequências do que é o discurso universitário, entendendo que o discurso universitário é o discurso da burocracia. É o discurso do qual Lacan fala no Seminário 21 quando fala do ser nomeado para, a lei de ferro de être nommé à, ser nomeado para produz sujeitos sem um significante que os represente.
Os quatro discursos mostram, cada um à sua maneira, uma tentativa de capturar esse gozo e, ao mesmo tempo, um fracasso. É interessante ler os discursos desde a perspectiva do que conseguem e do que implicam de fracasso. O fracasso, se colocarmos no horizonte do que se trata, é de capturar o gozo que há com uma relação que não há. Esse é o paradoxo que os quatro discursos não resolvem.
Poderia me deter aqui. Talvez possamos conversar um pouquinho. Retomaremos com o discurso da histeria, do qual hoje tivemos exemplos maravilhosos, um pequeno plano para amanhã: ver de que maneira a histeria pretende domesticar o gozo, como a histeria se vira com isso. E, depois, de que maneira os quatro discursos não servem a Lacan para seu propósito de dar conta desse gozo do corpo que não consegue se inscrever nos discursos para além do objeto a. Há um limite dos quatro discursos. Tentaremos avançar nisso amanhã.
Intervenções
Nohemí Brown – Quero agradecer a Graciela, pelos pontos trazidos. Você trouxe precisões muito interessantes. Uma das coisas que fiquei pensando, a partir da sua fala, foi o lugar do que faz sintoma. Você coloca que em todos os discursos há um laço possível e um laço impossível. De alguma maneira, posso dizer, os discursos fazem sintoma. Pensava nesse laço impossível, no que se decanta disso, pois é algo que já nos orienta para ler qual o sintoma que se produz, a cada vez e em cada época, a partir dos diferentes discursos.
Também aproveito que Sérgio já introduziu a ideia de acontecimento de corpo. Vou deixar minha pergunta, mesmo que você a retome só amanhã: o que me perguntava era sobre o sintoma como suporte do corpo e como acontecimento de corpo, como pensá-los? Pois não são da mesma ordem.
Por último, quando você trazia a questão de que os discursos nos permitem localizar o objeto a, o gozo a partir do objeto a. Ali, de alguma maneira, nos ajuda a pensar como a psicose está a linguagem, mas não no discurso, pois não tem a localização do gozo, a extração do objeto a. Pensava que por isso foi importante a introdução da clínica borromeana, que nos permite outra maneira para localizar o gozo fora do discurso e tratá-lo.
Graciela Brodsky – Efetivamente, quando digo que os discursos têm o limite de que somente podem capturar o gozo e o corpo através do objeto a e que, a partir do Seminário 20, para Lacan, o objeto a é semblante, se abre para Lacan a possibilidade, a necessidade de pensar uma nova forma de capturar o gozo. Isso porque não há clínica sem isso. Poderíamos dizer que – e o digo brevemente porque o retomarei amanhã – Lacan sempre pensou de que maneira fazer entrar o corpo e seu gozo no aparelho simbólico. O primeiro exemplo disso é o estádio do espelho, que enquadra o corpo e o gozo, e quando percebe que não alcança, vai um pouco mais além, e temos os quatro discursos. Podemos ver tudo que há no meio, mas fortemente temos o estádio do espelho, os quatro discursos, a insuficiência deles, e a última tentativa de Lacan que dura muito pouco, porque os nós surgem no Seminário 20, estão no Seminário 21, no 22, no Seminário 23 já não tem a mesma lógica que no 22, e no Seminário 24 já desapareceram para sempre. Não há referência aos nós no Seminário 24 nem no Seminário 25. Então, encontramos ali um Lacan que procura, mas não é isso que nos interessa, o que nos interessa é ver de que maneira em nossa prática temos que resolver o problema do gozo que não está aprisionado pelo discurso. Porque nossa prática está regrada pelo discurso analítico, e ao mesmo tempo que dizemos isso, dizemos que não todo gozo, que o radical do gozo e do corpo não está aprisionado em nenhum dos quatro, não mais do que como esse gozo domesticado e débil que é o objeto a. Do acontecimento de corpo falarei amanhã.
Leonardo Scofield – Agradeço muito, Graciela, quando você faz essa construção, porque você toca o título de nosso Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Você aborda através de nossa Jornada o título do Encontro, “Os Corpos Aprisionados Pelos Discursos”, e a comissão científica introduz “… e seus restos”. No entanto, me parece muito esclarecedor que você trate dos restos enquanto objeto, que ainda está no discurso. A sua pergunta inicial, onde está o corpo nos discursos, é respondida pelos restos, e até então eu localizava o resto como aquilo que estava fora dos discursos. Então, essa pergunta que você faz ao final, como dar um tratamento ao corpo outro que não é o corpo próprio tampouco é o corpo do outro? Me leva a interrogar: como dar um tratamento àquilo que goza no sujeito sem que ele possa se apropriar disso?
Graciela Brodsky – É isso que faz com que toda a doutrina da interpretação se transforme. Se fizermos um percurso da doutrina da interpretação de Lacan, ele vai desembocar em suas especulações sobre a poesia chinesa, no haikai, na jaculação, no famoso exemplo que temos de geste à peau e Gestapo. O geste à peau é um exemplo que utilizamos e que tenho que dizer que é impressionante. Por que Lacan não disse simplesmente geste à peau? E teria se ouvido Gestapo com seu equívoco entre um gesto da pele e a Gestapo. Por que ele teve que ir e fazer uma carícia? Por que teve que tocar o corpo? Por que não alcançou com o equívoco significante que estava ali? É impressionante. Vemos o limite a que chega Lacan em sua tentativa de tocar o gozo mais além do objeto a. O problema de que maneira o significante toca o corpo é o que Lacan não deixa de pensar em todo seu último ensino. Que não seja magia – como com a palavra se toca os corpos? Você diz “abre-te, sésamo” e a porta se abre. Sim, mas como se consegue isso sem ser magia? Esse é o problema do último ensino de Lacan, não é um problema resolvido. É nosso problema, é o nosso problema da interpretação. Falar do gozo está muito bem, mas nosso problema é a prática da psicanálise. Quando Lacan finaliza com um saber se virar com é porque chega à conclusão de que não há modo de tocar isso que não se pode tocar e que, com isso, tem que se virar. Quando diz, finalmente, ao real é preciso se acostumar. É preciso se acostumar, não há nenhuma expectativa de redução, de superação, de sublimação, são os limites de nosso ensino. Mas, para chegar a isso, é preciso ir passo a passo, senão nos entusiasmamos com os limites e é melhor ir aos poucos.
Liège Goulart – Graciela, eu ia perguntar justamente qual o estatuto da interpretação a partir do não há e do gozo que há e você já colocou bastante agora sobre isso. O outro ponto que ia articular a partir dessa pergunta da interpretação, sobre essa observação que você fez, que não tenho tão claro assim, que no Seminário 24 e 25 Lacan não fala mais da topologia dos nós, mas topologia dos cortes, mas acho que a topologia do corte vem a partir de quando ele trabalha a questão dos toros com os cortes, com a banda de Moebius. Eu acho que esse ponto da topologia dos cortes diz um pouco do estatuto da interpretação, mas não tudo, tem a questão da equivocação. Eu não consigo pensar ainda como separar esse ponto, esse estatuto de interpretação como corte, como pontuação, equivocação, como jaculação, enfim, separar isso da topologia dos nós, me parece que é uma consequência.
Graciela Brodsky – É possível ir fazendo a cada momento. O equívoco aparece muito antes dos nós no ensino de Lacan. O problema da interpretação, bom, efetivamente é o limite. Não tenho um gosto pessoal por chegar demasiado rápido ao impasse. A prática da interpretação que se desprende do ultimíssimo ensino de Lacan é mais precisamente uma constatação e sequer um corte, a constatação do há. É preciso localizar os momentos da análise, uma análise não é a mesma coisa quando começa e quando acaba.
Cleudes Slongo – Algo que fiquei pensando a partir de algo que você falou sobre se tornar refém, fiquei pensando como… considerando que nós enquanto analistas ocupamos esse lugar de semblantes de objeto a, parece que há ali uma tentação… não é muito difícil escorregar para o lugar de mais um dos objetos mais de gozar, objeto de consumo de nossos analisantes. Claro que talvez você não tenha a fórmula e talvez nem a resposta, mas algo para pensarmos juntos, como não encarnar esse lugar de objeto mais-de-gozar, de mais um objeto de consumo para os analisantes?
Graciela Brodsky – Isso depende da análise do analista, mas recordo uma intervenção muito bonita de Miller, em um antigo congresso da AMP, em 1984, onde havia muita crítica grande da formação da Escola, um momento muito odioso. Miller se levanta e diz: “me mordam, mas docemente”.
Luis Francisco Camargo – Graciela, gostaria de te agradecer por essa conferência. Gostei muito da maneira como você construiu o argumento que me parece muito interessante: a leitura de que Lacan sempre buscou uma forma de capturar o Real. Eu lhe pergunto se isso não é um paradoxo próprio da afirmação de que o discurso analítico não tem pretensões de dominação. Por um lado, você apresenta um Lacan na busca de uma aplicação da teoria dos quatro discursos, dos nós e da topologia para capturar o gozo, mas,. Por outro, um fracasso da psicanálise e, por que não, de Lacan, na medida em que nunca consegue capturar totalmente esse gozo, somente uma parcela. É interessante porque isso me parece um paradoxo do último ensino de Lacan.
Graciela Brodsky – Em certo sentido, contudo, se se sabe que esse gozo não vai ser capturado, para que perder tempo tentando fazê-lo? Efetivamente, é algo que orienta a prática. Não vamos pretender curar, que é uma forma de capturar o gozo, de fazê-lo entrar no bom caminho. Simplesmente não tem pretensões de domínio, porque sabe que não vai poder dominá-lo.
Luis Francisco Camargo – Complemento com a seguinte pergunta: Lacan apontou um limite à prática de Freud, aqui não teríamos um limite à prática lacaniana?
Graciela – Certamente sim. Eu penso que o limite, vou dar apenas um exemplo, e apenas um exemplo, não vou entrar nesse assunto. Mas vou dar um exemplo: o desafio que apresenta na atualidade o problema da redesignação de gênero e o mundo trans não tem resposta no Seminário 20. As fórmulas da sexuação são binárias, basta olhá-las. Temos dois gozos, um gozo fálico e um gozo mais além do falo. Ambos regulados pelo falo, um porque há e o outro porque o excede, mas para excedê-lo é preciso localizá-lo, não é sem, é um suplemento. A fórmula da sexuação não explica completamente o fenômeno que os psicanalistas hoje em dia têm que encarar. E, quando pretendemos responder às críticas que nos são feitas com o Seminário 20, fracassamos. O Seminário 20 pertence ao ano de 1972 e estamos em 2024. Lacan não imaginou outra possibilidade que associar o transexualismo à psicose. A prática atual não é a prática de Lacan. Os sintomas atuais não são os sintomas com os quais Lacan se viu confrontado. Portanto, temos que fazer um grande esforço para poder pensar as novidades que, no plano da sexuação, se nos apresentam, com recursos que datam de outro momento. É melhor escutar muito, antes de tentar responder com o saber já sabido. Estamos em um verdadeiro “não se sabe” e é melhor saber que não se sabe do que dizer “Lacan disse”, “Lacan disse”, “Lacan disse”. É melhor saber que Lacan não poderia ter dito nada sobre isso, porque isso é muito novo, e podemos usar o que Lacan nos dá para pensar um pouco mais. Não sem Lacan, mas não somente com um pensamento fechado de Lacan.
Sérgio de Mattos – Fiquei pensando numa questão sobre como agarrar o real pelo simbólico: como é possível? E que, portanto, parece que uma certa resposta a isso é uma certa fórmula de que com o real é preciso se acostumar. Fiquei pensando, gostaria se pudesse comentar alguma coisa sobre isso, se a ideia que Lacan coloca no Seminário 25 de que temos que aprender a lidar com o modo com o que as coisas sabem como se comportar, se não tem algo aí desse se acostumar, mas algo também um pouco mais ativo. Quer dizer, saber como se comportar, saber lidar com como as coisas se comportam por si mesmas, não é simplesmente se acostumar, mas aprender a fazer alguma coisa com esse comportamento próprio do real. E, nesse sentido, é uma certa indicação para não depor nossas armas diante do real, apesar de todas as dificuldades.
Graciela Brodsky – Estou de acordo, é assim. Obrigada.
04 de outubro de 2024
SEGUNDA PARTE
Aprisionar algo de gozo. Se há uma experiência dentro da prática da psicanálise onde o corpo falou, foi na clínica da histeria. Ali, o corpo falou e se fez escutar por esse destinatário privilegiado que foi Freud. O que é que Freud aprendeu, tarde? Tarde como sempre, aprendemos tarde. Freud aprendeu, graças ao destino de Dora e suas notas nos rodapés de página, com o caso da famosa jovem homossexual, que o corpo da histérica recusa obedecer ao significante-mestre. Isso foi apresentado a Freud de diversas maneiras e precisamente a Freud chegavam pacientes diante das quais o discurso médico não podia entender porque o corpo não respondia aos significantes-mestres. Os órgãos não estavam em seu lugar, não funcionavam como deveriam funcionar, as dores não tinham uma localização, os tratamentos não serviam para nada e, sem mais nenhum remédio, eles as mandavam ao bruxo, ao mago, ao charlatão, que era Freud. Freud tinha um método novo que os colocava para falar em vez de dirigi-los aos banhos termais e localizava a hipocondria como uma libido que se desloca, que não tem lugar. Ontem, escutamos um caso, acredito que foi de Paula, o caso da jovem que tem que fazer a cirurgia no rim. É isso, esse caso apresentado por Paula, que a paciente tem dor, tem um tratamento que lhe é proposto, nega, finalmente consente a esse tratamento, êxito total, e depois começam a aparecer dores por todo lugar. A primeira dor concentrava algo, depois começam a fazer um percurso diversos sintomas que vão se deslocando pelo corpo. É um caso extremamente ilustrativo do que é o corpo na histeria. É um corpo inexistente para a medicina, para o discurso médico.
O que Freud não compreendia é que o rechaço da histérica ao domínio médico era o próprio domínio da histeria. Rechaçar o significante-mestre é uma posição de domínio. Por isso, no discurso da histeria, o sujeito barrado está no lugar do agente, tem a capacidade de dizer não. Rechaçar a demanda do Outro, desobedecer ao discurso do Outro. Lacan formaliza isso e diz que a histeria é um sujeito que está em rebelião. Freud formula isso e Lacan o purifica com o termo “defesa”. A defesa como um não radical do sujeito, o sujeito histérico diz não e isso é uma defesa. Aqui, é preciso fazer uma pequena distinção: diz não ao significante-mestre, ao discurso médico, mas o não mais profundo, esse que Freud chama de defesa, é um não ao gozo. Um não radical do sujeito e isso deixa o sujeito como sujeito esvaziado de ser, é o que escrevemos como $, um sujeito esvaziado de gozo. Enquanto isso, por onde passa o gozo? É aí que Lacan entra para escrever o discurso. O gozo passa por baixo do sujeito. Se pensam no discurso da histérica, no lugar do agente, está o $, o sujeito esvaziado de gozo; por isso, o sujeito lacaniano é um sujeito vazio, mas vazio do quê? Lacan assinala: é um sujeito vazio de gozo. E onde está o gozo no discurso da histérica? Abaixo da barra, sob a letra a. Trata-se de um sujeito, que Lacan escreve no discurso da histérica, um sujeito esvaziado de gozo, que se constitui como sujeito no ato mesmo da defesa.
É sumamente interessante esse momento de Lacan, porque estamos acostumados a pensar o sujeito barrado como o efeito da cadeia significante – S1 e S2 e, como efeito, o $. Mas aqui é outra leitura de como se constitui o sujeito como vazio, e é o momento em que Lacan recupera a ideia de defesa em Freud e formula que o sujeito se constitui como sujeito na defesa a respeito do gozo. Então, o $ passa a ser o sujeito vazio de gozo. Entretanto, não é um gozo totalmente eliminado. Esse é o paradoxo, porque se trata de um gozo que opera. Trata-se de um gozo eficaz, que tem consequências, e inclusive é possível dizer que todo o campo das neuroses, com o qual nos encontramos frequentemente em nossos consultórios, está determinado pelo retorno desse gozo rechaçado. Por isso, Lacan não escreve o discurso da histeria, da obsessão, da fobia, senão que considera que a estrutura é a histeria, a estrutura é efetivamente a de um sujeito que rechaça o gozo. Esse é o sujeito que vem ao nosso consultório, com seus sintomas.
Vale a pena ler no Seminário 5 de Lacan, o capítulo dos sonhos de “água parada”. Uma jovem inteligente, fina, reservada, do tipo “água parada”, relata um sonho a Freud. Ele pede detalhes e a jovem diz que ia ao mercado com sua cozinheira – eram essas épocas – e a cozinheira levava uma cesta. O açougueiro lhe dizia, depois de ela lhe pedir alguma coisa, que isso já não se podia mais ter, quis dar-lhe outra coisa, dizendo isso é bom, entretanto ela o recusava. Ia então comprar legumes, a vendedora de legumes queria vender legumes de uma classe singular amarrada em pequenos pacotes e de cor preta, mas ela dizia: não conheço, não vou levar. E assim retorna a sua casa, com as mãos vazias. Certamente, comenta ali Lacan, nada pode ser mais prazeroso para uma histérica do que retornar com as mãos vazias. E se com isso deixa também ao Outro com as mãos vazias, é um dano colateral que está disposta a suportar.
Se olharmos a estrutura do discurso da histeria, é possível entender do que se trata o discurso analítico. Falo do discurso analítico, não do que se fala em uma análise, falo da estrutura mesma do discurso analítico. Por quê? No discurso analítico, o objeto a, esse resto de gozo do qual a histeria não quer saber nada e é o que recusa do açougueiro, da vendedora de legumes, do encontro amoroso, esse gozo recusado é o que vem no lugar do agente no discurso médico. O analista encarna em si mesmo o retorno do gozo rechaçado da histeria. E se pensam no andar superior do discurso analítico, esse objeto a que o analista encarna se dirige ao sujeito barrado. Quer dizer que a operação analítica tal como a escreve Lacan com os quatro discursos tem por objetivo reintroduzir no sujeito barrado esse gozo enviado ao andar inferior no discurso da histeria.
Isso que a histérica enviou ao subsolo, abaixo da barra, o analista o coloca no lugar do agente e reintroduz o objeto a no sujeito barrado. Por isso, podemos falar de analista trauma, por exemplo, e podemos dizer, ainda que pulando épocas do ensino de Lacan, mas se entende perfeitamente, já aqui, a maneira que a operação analítica vai contra a defesa, perturbando as defesas. Se entendemos qual é a defesa, essa defesa radical onde se constitui o sujeito, diz Lacan, se entende melhor o que é perturbar a defesa, e entendemos bem como no próprio discurso analítico está escrito no andar superior o que implica perturbar a defesa: reintroduzir no sujeito vazio de gozo, o gozo rechaçado. Por isso, podemos dizer que na operação analítica do que se trata é de orientar-se pelo gozo.
Enfim, cada discurso aprisiona, à sua maneira, esse mais-de-gozar que fica como resto – dando um passo a mais – que fica como resto pela incidência do trauma da língua sobre o corpo. Mas irei aos poucos, prefiro. Cada discurso gira ao redor desse suporte que não está aprisionado e que Lacan chama, em sua última aula do Seminário 19, esse ground, esse suporte, fora do discurso. Vejam bem que disse isso ontem um pouco por cima em nossa conversa, que finalmente quando Lacan, em seus inícios, propõe o estádio do espelho, o esquema dos dois espelhos permite ver bem como para Lacan está o corpo, que o representa com um vaso e umas flores, mas as flores estão abaixo do vaso, soltas. E tenta representar assim um corpo que não está em seu lugar, as coisas não estão no seu lugar. É um corpo que se define pela agitação, é um corpo agitado, é um corpo que se retorce. É o corpo da criança que move seus pés e braços, um corpo movido pelo gozo do movimento, o gozo da própria agitação. Posteriormente, vem todo o aparelho do espelho, que é um instrumento simbólico sustentado em certa posição pelo Outro, porque não é em qualquer posição que se produz. E, assim, o corpo desmontado se reflete no espelho como um vaso com suas florzinhas dentro, como corresponde. O corpo dominado pelo simbólico, bom, na realidade, estou dizendo isso um pouco rápido, é um corpo montado pelo imaginário mediante a condição do aparelho simbólico. Mas, a ideia de Lacan no estádio do espelho é que é preciso uma operação para dominar algo desse corpo que se contorce.
Quando Lacan fala do júbilo no estádio do espelho, não é para confundi-lo com o gozo do corpo desse primeiro momento, do corpo que se contorce. O júbilo é pela imagem, é o júbilo pela boa forma, pela Gestalt, ali é onde se constitui o eu: que belo sou, esse sou eu. Contudo, o que estava antes, essa agitação prévia, é o gozo do corpo. É possível ver isso muito cedo em Lacan, o esforço que faz por representar o domínio do gozo do corpo através da imagem e o júbilo que isso produz. É interessante – se tiverem vontade – fazer o grande marco que conecta este momento com a ideia do escabelo, do Seminário 23. O homem ama a sua imagem e não ama mais que isso, o escabeau. É interessante fazer a curva que une o escabelo com essa operação que Lacan localiza como o júbilo da boa forma e que faz esquecer esse gozo desorganizado do corpo vivo.
Com efeito, para pensar o estatuto do corpo por fora do corpo talhado pela pulsão, para pensar o estatuto do corpo quando a pulsão não está articulada com o objeto a, Lacan teve que deixar de lado os quatro discursos. Mudar de paradigma e colocar a lupa sobre aquilo que os discursos não aprisionam. Fizemos uma primeira volta sobre aquilo que os discursos aprisionam, depois sobre aquilo que os discursos acreditam aprisionar e o que os discursos deixam por fora. Isso leva Lacan a mudar a ótica, não porque o anterior não exista, pois não estaríamos aqui se não estivéssemos praticando os discursos, mas, no seu interesse por aquilo que a prática não resolve, por aquilo que resiste a sua prática. Lacan muda a ótica e o paradigma. Já não se interessa tanto por aquilo que os discursos aprisionam, mas se dirige para aquilo que os discursos não aprisionam e, a partir desse momento, sua reflexão é outra.
A prática analítica, a partir disso, passou a estar orientada, por exemplo, pela forma de tocar com a interpretação esse gozo que há. O final de uma análise passou a estar orientado por um saber se virar com esse gozo que há, impossível de imaginarizar, impossível de significantizar. Esse gozo impossível está do lado do real, fora do discurso, esse gozo do corpo vivo, não do corpo mortificado pelo significante, tampouco do corpo remontado pelo estádio do espelho, nem do corpo recortado em seus orifícios pela pulsão. Agora é o corpo vivo, esse que não está aprisionado pelos discursos. Esse corpo é o que se apresenta como acontecimento de corpo.
Há um corpo que fala. Esse é o corpo que falou a Freud. Freud transpassou esse corpo em significantes, um corpo aprisionado pelo significante, portanto, interpretável. É o que chamamos de significantização do corpo. Um exemplo fundamental da significantização do corpo é o falo, é a maneira que um órgão passa a ser um significante. O que dizemos quando ensinamos, o falo não é o órgão, cada vez que dizemos isso estamos precisamente falando de um corpo que pode ser transposto em significantes. É uma desmaterialização do corpo. Com esse corpo se inventou a psicanálise e com esse corpo nos deparamos toda vez no consultório. Mas e o corpo que não fala? Do corpo que não diz nada interpretável, nada que possa ser transposto em significantes? Trata-se de um corpo, diz Lacan, que goza de si mesmo – e formula a expressão: é um corpo que se goza. Goza de si mesmo, ou seja, não goza do objeto oral, não goza do objeto anal, não goza do olhar, não goza da voz; desses objetos se goza no fantasma. Lacan, ao ter se interessado por essa outra parte, já não se interessou tanto, a partir de certo momento, pelo atravessamento do fantasma.
Há um gozo da palavra, que inclui o sentido, e há um gozo opaco do corpo, insensato, ou seja, refratário ao sentido. Desse gozo, é o que na última aula do Seminário 19 Lacan pode dizer, desse gozo não se sabe nada, exceto quando se transforma em acontecimento. Quer dizer, quando irrompe e deixa marcas, fazendo do corpo uma superfície de inscrição, um sem sentido encarnado – gosto muito dessa expressão de Miller. Ao que chamamos um acontecimento de corpo? Uma doença é um acontecimento de corpo? Uma queda na rua, é um acontecimento de corpo? Um vaso que cai em cima da cabeça enquanto se está caminhando, é um acontecimento de corpo? De fato, ao corpo sucedem coisas, imprevistas, muitas vezes, e que não entendemos. Vale a pena recordar este pequeno detalhe: a fórmula “acontecimento de corpo” Lacan a utilizou apenas uma ou duas vezes. Acredito que apenas uma, para falar do sintoma, em um pequeno texto que acompanha a época do Seminário 23. É ali onde usa pela primeira vez, e acredito que pela última, a expressão “acontecimento de corpo”. Não a pensou para a histeria, nem para as doenças, tampouco para as quedas ou os vasos que caem em cima de nossas cabeças. Ele pensou isso em relação a algo muito preciso em seu ensino: em relação ao sintoma.
Em determinado momento, o sintoma passou de ser uma metáfora a decifrar para ser um acontecimento de corpo. Quer dizer, tomar o sintoma não sob seu aspecto de significação, do que quer dizer, senão sob o aspecto de satisfação. Finalmente não é tão distante da ideia freudiana de que no sintoma se satisfaz um desejo. Se o sintoma implica uma satisfação, vamos lhe dar o nome lacaniano, se o sintoma implica um gozo e o corpo é condição para o gozo – somente há gozo do corpo, o corpo é condição de gozo -, portanto, se o sintoma implica um gozo e o corpo é condição de gozo, é preciso de um corpo para gozar. Então, o sintoma é relativo não apenas ao jogo significante-significado, senão que o sintoma é relativo ao corpo. O sintoma é o efeito de um corpo afetado. Efeito de afeto, diz Lacan no Seminário 23. É nessa articulação entre o sintoma como gozo, o gozo como relativo ao corpo, que Lacan pode fechar a fórmula de que o sintoma é um acontecimento de corpo. Vamos dar um passo a mais.
Desse acontecimento de corpo, eu não sei como soa em português, mas em espanhol soa mal. A fórmula “acontecimento de corpo” está mal formulada, não existe, já que é uma preposição que não funciona. Seria preciso dizer que é um acontecimento no corpo, é um acontecimento do corpo ou um acontecimento corporal. Acontecimento de corpo não soa bem, mas nós entendemos. Há um aspecto do acontecimento de corpo que é para todos, tem a fórmula do universal, para todo x, phi de x. Se a linguagem é trauma – Lacan vai purificar isso, a linguagem quando é trauma se chama lalíngua -, não se trata da linguagem que se escreve S1-S2, não é a linguagem com o par metáfora-metonímia. Se falo de uma linguagem que traumatiza o corpo, eu a chamo de outra forma, eu a chamo de lalíngua. Se lalíngua é trauma, se o primeiro trauma do corpo vivo é o impacto de lalíngua – o impacto do murmúrio de lalíngua, como dizia Schreber, porque efetivamente é uma língua que não tem sentido -, é preciso entender que esse corpo vivo fica marcado. É como quando nas fazendas os animais são marcados a ferro e fogo, o corpo vivo fica marcado.
Entretanto, o que quer dizer marcado? Porque não marcamos nossos bebês e, quando os marcamos, nós os marcamos de uma maneira simbólica, como, por exemplo, a circuncisão. É uma maneira de marcar o corpo para que ele passe a estar inscrito em uma comunidade, mas isso não é para todos. Há um texto precioso de Miller que se chama Ler um sintoma, que seguramente conhecem, em que explica de uma maneira singular o que chama o clinamem do gozo. Quer dizer, o ponto no qual o gozo do corpo vivo fica desviado e isso faz com que sejamos todos animais desviados, perdidos a respeito da orientação e cuidados de si. É o ponto no qual o corpo fica afetado por esse trauma de lalíngua, e no que consiste esse trauma, essa marca? Lacan o chama de troumatisme, fazendo um jogo de palavras em francês entre traumatismo e furo, trou, entre troumatisme e traumatismo. O que se fura? Não se furam as orelhas das meninas para colocar brincos; isso é uma maneira de corporizar essa operação. O que se fura é o simbólico, o trauma de lalíngua cava um furo no simbólico. O simbólico é incapaz de significantizar esse golpe; portanto, o simbólico fica furado, inconsistente, incapaz de significar esse murmúrio, esse impacto. Mas também essa marca introduz um mais, é um menos a respeito do simbólico, uma impotência do simbólico para significar esse impacto, mas um mais que se introduz no corpo e o converte em um corpo desnaturalizado. O mesmo impacto tem um efeito sobre o simbólico, sobre o imaginário e sobre o real do corpo, sobre o gozo do corpo vivo, que passa a ser um gozo do corpo humano, vivo, mas humano, que se chama parlêtre.
Esse impacto faz do corpo vivo um parlêtre, desorientado a respeito de sua sobrevivência e reprodução. O que Lacan chamou de sinthome é, de certa forma, a pegada, a marca, para cada um, desse acontecimento primeiro. Ok, isso é o para todos. Há também irrupções posteriores. São acontecimentos, podem ser banais, que em certo sentido evocam, replicam, voltam a fazer presente esse impacto inicial que o fantasma dotou de sentido. A esse impacto inicial o fantasma lhe dá sentido e, com isso, se constrói a neurose.
Há irrupções posteriores que voltam a fazer presente esse impacto inicial e, então, vacila a tela do fantasma, rompe-se a articulação significante e temos o que se chama acontecimento de corpo. Entretanto, esse fenômeno, que se produz contingentemente na vida de alguém, responde a uma lógica, não é o vaso que cai em cima da cabeça e, nesse sentido, é apenas a partir da psicanálise, da prática da análise, do dispositivo analítico, que podemos localizar um fenômeno que tem lugar no corpo como um acontecimento. Às vezes, pode ser momentâneo e, às vezes, acaba por ordenar a vida do sujeito.
Na conversação clínica que se chama Embrollos del cuerpo, tem uma discussão muito linda sobre o acontecimento de corpo, onde Miller distingue o que chama de acontecimento de corpo em eclipse, quer dizer que é algo que toma o corpo e desaparece, um fenômeno pontual, e o coloca em relação ao que chama de acontecimento de corpo constante, que organiza a vida do sujeito. A vida de um sujeito passa a estar ordenada pelo acontecimento e aí se entende o parentesco com o sinthoma, que ordena a vida do sujeito.
Escutei outro dia – e com isso vou encerrando para conversarmos – um caso de um controle de uma jovem anoréxica. Na análise, foi possível reconstruir a origem do transtorno: aos seus doze anos ela tem a menarca, sem nenhuma orientação nem explicação por parte de sua mãe, família, irmã ou amigas, nada. Ela se encontra, então, com um sangramento que provém de seu próprio corpo, que lhe resulta completamente insensato. Não consegue significar, não pode dar-lhe um nome e desmaia, se apaga. Esse desmaio é um acontecimento de corpo? Nesse momento, foi um desmaio, se podemos considerar isso um acontecimento de corpo é porque a partir dali se instala uma anorexia, que a leva à beira da internação em várias ocasiões. Assim é como chega na análise, como uma anoréxica. É na análise que, depois de muito tempo, se pode ler o desmaio como um acontecimento, porque marcou um antes e um depois em sua vida. Isso porque a anorexia foi a maneira – e isto me pareceu impressionante – em que desapareceu para sempre a menstruação. Esse acontecimento ordenou sua vida. E uma vez elucidada a anorexia como solução, a orientação de seu tratamento já não pretendeu mais eliminar a anorexia, senão mantê-la em um equilíbrio que não a condenasse à morte. Uma vida ordenada ao redor de um acontecimento de corpo, sempre presente, através da solução sintomática.
Em todos os casos, um acontecimento de corpo se produz em um corpo, não em um organismo. Quer dizer, em um corpo atravessado pelos ecos de um dizer. Enquanto analistas buscamos inserir o acontecimento na linha do tempo, localizar o momento anterior ao qual se inscreve esse fenômeno aberrante, amarrá-lo com o simbólico, quer dizer, ordená-lo no tempo. Amarrá-lo ao imaginário, ajudar a dar-lhe um sentido, quando possível. Ou inventar, junto com o paciente, uma melhor maneira de se virar com isso. É isso. Obrigada.
Intervenções
Gresiela Nunes da Rosa – Obrigada por esse presente. A ideia é que a gente possa conversar. Enquanto isso, tenho duas questões, uma que toca exatamente nesse ponto que você está dizendo e outro um pouco mais genérico, mas é sobre o que diria sua posição teórica em relação a isso. Sobre o acontecimento de corpo, isso que regula o funcionamento de um corpo, a gente poderia pensar que o trabalho analítico é capaz de produzir um acontecimento de corpo, nesse aspecto de que uma análise é capaz de produzir um novo arranjo na relação com o corpo? A gente pode dizer que a análise produz um acontecimento de corpo? E uma pergunta que tenho para você e toca esse ponto que me parece que eu interpretaria como uma posição teórica sua, que, pelo menos no congresso, me pareceu um elemento importante, em relação a tudo isso que estamos dizendo, tem uma maneira que a gente articula teoricamente que faz quase elogio ao trou, ao furo. Enquanto me parece que sua posição teórica é fazer um certo elogio ao semblante fálico como tratamento dessas coisas. Bom, se puder dizer algo sobre isso.
Graciela Brodsky – Bom, uma análise pode produzir um acontecimento de corpo? Como se insere isso em nossa prática? A ambição de Lacan era que a interpretação produzisse um acontecimento de corpo. Essa é a última virada que temos em Lacan a respeito da interpretação, de que maneira a interpretação produz um efeito de corpo. Somente produz um efeito de corpo se de alguma maneira está enlaçada a esse efeito de corpo inicial. Por isso, a interpretação tem cada vez mais o formato de murmúrio, a forma de lalíngua. Não a forma de um significante equívoco, senão de que maneira a interpretação pode se mimetizar, se assemelhar, se parecer ao impacto de lalíngua sobre o corpo. E, então, assim são suas ideias da ressonância, de que maneira tocar o corpo com a palavra. Isso porque sua doutrina passa a ser que o parlêtre está constituído sobre o impacto da lalíngua sobre o corpo, e então a interpretação deveria reduplicar isso, para enfrentar o sem sentido que há nisso, e não para lhe dar sentido.
Nesse sentido, a interpretação tem como meta abolir o sentido, mas não apenas abolir o sentido pelo jogo de palavras, não apenas com o jogo significante, porque finalmente isso sempre dará lugar a outra nova significação. Todo equívoco lança uma nova interpretação e uma nova significantização. A ideia de Lacan da interpretação como réson, como ressonância, acompanha aquilo que Miller chamou como forma de interpretação, a constatação, que é exatamente o contrário do equívoco. O equívoco é duas palavras que soam parecido e remetem a outra coisa, quer dizer que o equívoco sempre tem como sustentação a fórmula “não é isso”, “quis dizer isto, mas, na verdade, quis dizer isto”, que remete a isto e aquilo, e ali tem o jogo de palavras que pode se estender ao infinito. A constatação tem outra forma de jogo de palavras que é “é assim”. É isso. É a constatação de que é isso. No equívoco, estamos na dimensão de não há, até imaginar chegar a um não há absoluto, não há sentido último. Mas a constatação é um é assim, isso é assim. Uma maneira de indicar, de fazer signo do que há. É diferente da interpretação, é um plus que Miller agrega às modalidades da interpretação que vai na direção de há. Uma vez que formula o “há-Um”, em seu último curso, a interpretação passa a ter essa modalidade de é isso. Enquanto no equívoco a ideia de base é não é isso. É interessante ver como se complexifica a prática a partir dessa nova perspectiva de Lacan que toma como referente o corpo vivo e não o objeto a.
É outra maneira, com a qual não implica que numa análise não se tenha que localizar o objeto, atravessar o fantasma e fazer tudo o que é preciso fazer. Mas, com isso, não se chega a tocar esse gozo que há e que se nidifica no sintoma. O sintoma pode ser interpretado mas há um núcleo ininterpretável no sintoma.
Sobre o tratamento fálico, não sei o que possa ter dito, mas não me parece que minha ideia se trate de um tratamento fálico.
Gresiela Nunes – Não, não um tratamento fálico, mas uma certa sustentação teórica em relação ao semblante. O tratamento dirigido a poder sustentar um semblante diante disso.
Graciela Brodsky – Semblante de objeto, não um semblante fálico. Em nossa comunidade, quando escutamos os testemunhos de passe, há testemunhos que se inclinam em direção ao trou, a demonstrar o furo, o vazio. E há testemunhos que se inclinam a colocar em evidência o trop, o excesso. Como as duas questões estão presentes, tem mais a ver com o estilo da transmissão e com o que foi mais relevante na análise. Há análises onde efetivamente o trou é resolutivo e há análises onde é o trop, o excesso, o que está em jogo. É possível escutar perfeitamente em nossa comunidade testemunhos de passe que vão em uma ou outra direção e momentos da análise que vão em uma ou na outra. Não é a dimensão fálica, é a dimensão de tomar a via do furo no simbólico ou a via do excesso no corpo. Mas isso tem relação com o que se passou na análise, não há uma generalidade nisso.
Liège Goulart – Muito obrigada. A pergunta que queria fazer é em relação ao analista trauma, esse que perturba a defesa como você trouxe. Mais para o final da sua exposição, você esclarece falando do analista que encarna lalíngua, esse primeiro acontecimento de corpo que traumatiza. O analista trauma não é o analista que retraumatiza, certamente, acho que depende do momento da análise, enfim, mas agora um pouco acho que você respondeu, da interpretação, desse encarnar algo desse acontecimento primeiro, mas que é para constatar o sem-sentido dele. A constatação do sem sentido que parece que o fantasma carregava, é isso?
Graciela Brodsky – É isso.
Laureci Nunes – Graciela, na construção do teu percurso hoje, bem ao início tu falas da passagem do sintoma para o acontecimento de corpo no ensino de Lacan e, nesse momento, me pareceu que não teria mais um trabalho de análise sobre o que é possível decifrar. Agora ao responder para a Gresiela você retoma e fala do núcleo ininterpretável do sintoma, uma parte da questão que queria retomar acabaste dizendo. Bem no final, nas últimas frases tuas, tu falas, se eu entendi bem, que nós tentamos localizar o acontecimento anterior para barrar com um imaginário e dar um sentido. Isso me surpreendeu um pouco, porque eu supunha que devíamos seguir sempre por um caminho de retirada do sentido, porém, agora, na retomada da questão, tu falas da constatação. Um caminho que não o equívoco, a constatação. Isso torna um pouco mais claro o início quando falavas em localizar o que há, por aqui consigo acompanhar e localizar bem o é isso, como ato analítico. E a isso, a gente chamaria um nomear?
Graciela Brodsky – Penso que no transcurso da análise não se pode prescindir do enodamento necessário, que é necessário. Quando se pode encontrar a relação entre a anorexia e o acontecimento de corpo, é que é possível tomar uma decisão sobre como intervir. Mas isso só é possível encontrar uma vez que se percorreu todas as cadeias necessárias até localizar o acontecimento nessa história familiar onde ninguém disse nada. Onde a menstruação se apresenta como um verdadeiro acontecimento insensato encarnado, como algo que lhe ocorre ao corpo. A relação entre isso e a anorexia, que se apresenta como sintoma na jovem, se constrói na análise. Num princípio está tudo separado, ninguém viu a relação entre o desmaio inicial e a anorexia. Sempre se interpretou a anorexia em outra direção, é quando foi possível fazer a localização desse acontecimento em relação a uma história e ver como o sintoma incorporava o acontecimento, como o sintoma era um tratamento para o acontecimento, que foi possível tomar a decisão do que fazer com isso. Mas primeiro é preciso encontrar o sentido para ir em direção ao sem sentido, isso é o final da análise. Intervir de primeira desse modo seria muito difícil, teríamos perdido o analisante mas teríamos nos perdido também, sem poder localizar o que é essa anorexia. Essa anorexia obteve um sentido para nós, em alguns casos que são um pouco mais delirantes é o próprio analisante que começa a dar sentido, como o caso de Schreber, ele começa a dar sentido. O corpo começa a estar agitado sem se saber porque e não recorre a um analista para ver o que lhe ocorre, ele mesmo interpreta isso como uma vontade de Deus de gozar numa posição feminina. Constrói a partir disso uma significação, mas é muito difícil pensar o acontecimento de corpo que se produz na vida de um sujeito, se esse sujeito está na análise, e não inseri-lo na lógica de uma vida, senão seria o vaso que cai na cabeça.
Sérgio de Mattos – Quero fazer duas perguntas rápidas. Uma é essa relação que Laureci lembrou, quando você diz que uma coisa que não se pode fazer é ajudar a amarrar ao acontecimento de corpo uma imagem. Gostaria que pudesse falar mais disso. Outra coisa é essa interpretação que mimetiza o impacto da lalíngua, se pudesse dizer como que mimetizar esse murmúrio trata ou cura? Em que essa mimetização produz esse efeito sobre o gozo de lalíngua? Como isso se dá?
Graciela Brodsky – A amarração imaginária. Finalmente, o sentido é uma amarração imaginária. O sentido é imaginário. No nó, o gozo do sentido está na intersecção do imaginário e do simbólico, é assim. Quer dizer que, quando falamos de inserir o acontecimento em uma linha de tempo, é para localizar simbolicamente o que aconteceu antes e o que aconteceu depois, essa forma de localizar S1 e S2 e, ao mesmo tempo, a doação de sentido, que está na intersecção do imaginário e do simbólico. Há uma dupla dimensão, tratar dos nós é complexo, mas prefiro me manter no mais elementar, de que maneira o nó de três aprisiona gozos; um deles é o gozo do sentido, que está entre o imaginário e o simbólico.
Como o murmúrio cura? Enquanto não faça rir, não cura… se pudermos falar de cura. A interpretação analítica que pode conduzir para o final dos finais, não é a interpretação analítica com a qual recebemos o paciente. É quando todos os sentidos já foram percorridos, o que fica? O que fica do equívoco, do enigma, da citação? Fica o silêncio, a constatação, e a jaculação. Modos de fazer eco no corpo, como podemos. Se é que isso existe, se é que isso funciona. Os AEs contam isso, algo disso nos transmitem os AEs. É para isso que existe a Escola, existe em boa parte para isso, para ver se isso que diz Lacan e que podemos citar com maior ou menor dificuldade recorrendo a estudos complementares de topologia, matemática, antropologia etc., se isso que diz Lacan se verifica nas curas. Para isso, escutamos os AEs, para ver se podemos captar algo de como o murmúrio de lalíngua lhes permitiu sair da análise. Quando, para muitos casos, o murmúrio de lalíngua os conduz ao manicômio, mas, em alguns casos, o murmúrio de lalíngua permite reconhecer o sem sentido e deixar de buscar, se acostumar ao real. Nunca li isso como uma resignação; li como é isso, e com isso é preciso se virar. Isso não se cura. Com isso se pratica e, quando digo “isso”, penso que com isso se pratica uma vida além disso, uma psicanálise. Não há modo de praticar a psicanálise se não é com isso, com uma intuição de que há um ponto irrepresentável, não significável e o que nos resta é nos virarmos com isso e, se é possível, nos divertirmos com isso. Sim, Lacan pensou que o final da análise tinha a estrutura do chiste, quando diz que o passe é a última boa história que nos contamos. É impressionante essa frase, dizer a última boa história que nos contamos. Diz que o passe é uma história. É a história que podemos montar de nossa vida com um pouco de comédia.
Tem um parágrafo maravilhoso onde Miller diz que, para o passe, o que é preciso fazer é o que fez Cyrano de Bergerac com seu nariz: fazer toda uma história. E que enquanto nós sofrermos com isso é melhor voltar à análise e diz aos AEs: nos divirtam, contem-nos a boa história, façam do seu sofrimento uma comédia. Quando se faz do sofrimento uma comédia, é quando se desprendeu verdadeiramente do fantasma e sabe fazer disso um laço social. Simplesmente porque tem graça, bom, é isso. É isso!
Luis Francisco Camargo – Uma pergunta que tem a ver com uma frase que você disse e que gostei muito. Que o campo das neuroses é caracterizado pelo retorno do gozo rechaçado, não o retorno do recalcado, mas o retorno do gozo rechaçado. Isso me fez pensar sobre a teoria das pulsões em Freud, as pulsões de vida e de morte. As pulsões de vida estariam ao lado das pulsões parciais, capturadas pelo significante, parcialmente. Porém, há um gozo que não se deixa capturar. A pergunta é a seguinte. Hoje pela manhã assistimos a conferência do AE, e ele nos trouxe uma ilustração muito interessante, a de que no final de sua análise ele foi à farmácia e estava tudo muito lindo, qualquer lugar que ele ia tudo estava bem. Isso não seria um exemplo de uma reintegração de um gozo mortífero ao gozo da vida? Algo da morte que se reintroduz na dimensão da vida e que me parece ser um esvaziamento do gozo mortífero, a libertação desse gozo, outrora capturado pelo significante. Ou seja, a libertação de um gozo que pode circular não só parcialmente, mas circular por outra satisfação. No depoimento de Sérgio de Mattos me deu a impressão de ser um gozo contínuo.
Graciela Brodsky – A expressão um gozo contínuo daria para uma conferência inteira. Porque o que ninguém me perguntou ainda, e não vão me perguntar agora porque não temos tempo, é a relação entre o gozo opaco, impossível de capturar, do que não se pode falar, do que não se sabe nada, com o que Lacan chamou de gozo feminino. Efetivamente, isso que descrevia hoje Sérgio de Mattos era isso que Lacan chamou alguma vez de o gozo da vida, não o gozo do objeto a, não é o gozo fantasmático, mas o gozo da vida. É muito interessante: no curso Donc, de Miller, ele formula muito bem como a transferência, a transferência que é amor, é a transferência do gozo ao lado do analista. Quer dizer que o analista passa a encarnar o gozo e o sujeito passa a encarnar o sujeito barrado e, no final da análise, o que se produz é uma recuperação desse gozo que se transferiu na transferência. E então isso explica o estado maníaco, às vezes, que caracteriza o final da análise, porque o final da análise está dado pela recuperação de gozo que no trabalho analítico se cedeu ao campo do Outro. Então, na medida que o gozo é retirado do campo do Outro e volta a animar o corpo, o Outro perde consistência, porque o único que lhe dava consistência era esse gozo que nós lhe havíamos transferido. É preciosa essa ideia de qual é o fundamento libidinal da transferência e de como a queda do Sujeito Suposto Saber é finalmente a recuperação da libido que havíamos depositado no campo do Outro e isso vivifica o corpo, reintroduz o gozo no corpo.
Luis Francisco Camargo – Por isso, essa substituição significante não proporciona isso.
Graciela Brodsky – Efetivamente, a substituição significante não proporciona isso. É um mais e mais e mais ao infinito. Ok! Há algo mais?
05 de outubro de 2024