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Eixos temáticos

Eixo I – “O objeto a não tem sexo”

Oscar Reymundo

A ideia lacaniana, retomada por Miller[1], de que “todo mundo é louco”, ou seja, “todo mundo delira”, nos conecta com o fato de que cada um cria sua ficção, delirante, para dar algum sentido ao sem sentido próprio da existência. Então, porque todos deliramos podemos inferir que todos somos loucos. Proponho um recorte nesse universal para focar numa “loucura” que nos motiva, que marca uma presença especial na nossa época, alvo de discursos preconceituosos, segregativos, de ódio, e de atos violentos, muitos dos quais acabam em mortes, às vezes com requintes de crueldade. Trata-se da transexualidade. O que propomos trabalhar neste eixo é o que a clínica analítica, da Orientação Lacaniana, nos mostra sobre o sujeito transexual, quer dizer, sujeitos que nos ensinam sobre as posições sexuadas nas quais a natureza, definitivamente, não é a norma e que, ao mesmo tempo, assinalam um desafio: que o psicanalista se deixe ensinar, dentre outras questões, que não existe nenhuma relação entre a transexualidade e alguma estrutura clínica. Deixar-se ensinar, deixar-se questionar no já- sabido, deixar-se questionar no a-priori psicanalítico de um diagnóstico sistemático de psicose nos casos em que um ser falante diz querer mudar de gênero ou de sexo e ter se dado um nome que, às vezes, não responde à tradição de nomes masculinos e femininos. Nesse sentido, o termo “transexualismo”, com o sufixo “ismo”, usado nas intervenções escritas e faladas de psicanalistas, deixa transparecer a patologização do fenômeno transexual.

Ao menos, na Orientação Lacaniana, estamos no tempo em que a perspectiva do gozo pulsional e dos arranjos que cada ser falante pode estabelecer com esse modo paradoxal de satisfação, nos pede relativizar, ponderar, o uso de um diagnóstico estrutural. Relativizar que não significa cair no relativismo que, em última instância, ignora a diferença entre as estruturas clínicas psicanalíticas.

Estes são tempos nos quais a delicadeza da escuta analítica permite distinguir, de um lado, que sujeitos que consultam um analista porque vivenciam com muito sofrimento o conflito entre sua identidade sexual e sua anatomia, consideram o diagnóstico de psicose como um insulto, como uma marca injuriosa e, de outro lado, que esse diagnóstico desconsidera o que a clínica borromeana permite abordar como modo de enodamento, sempre singular, entre os três registros. E vale dizer que essa desconsideração da clínica borromeana afeta, também, a não poucos psicanalistas…ainda.

E esta perspectiva de abordagem não é exclusiva do sujeito transexual. “A cada um seu acento”, do título da Jornada, pode ser lido como a cada um seu modo de se arranjar com o gozo opaco, não simbolizável, e isto está colocado para todo ser falante. Esse é o caminho que desenha a ética que orienta a clínica psicanalítica. Orientação que extraímos do último ensino de Lacan. Nesse sentido, a transexualidade é paradigmática do trabalho que realiza todo ser falante, seja cis, hetero, homo… A experiência clínica analítica nos mostra as tentativas do sujeito transexual de encontrar um nome próprio que lhe permita nomear um gozo opaco, que o simbólico não consegue absorver “ai onde nem o Nome-do-Pai, nem o falo seguem sendo semblantes pertinentes para fazê-lo.”[2]  Nessa mesma direção podemos dizer que “Um transexual nos apresenta, numa espécie de slow motion, o mal-entendido que os que não são transexuais portam nos seus corpos porque, em muitos desses casos, a norma fálica e a partição sexual “homem” e “mulher” confere uma velocidade tal à [produção da] associação entre anatomia e identidade sexual que não lhes permite perceber o abismo que existe entre uma e outra.”[3]

Me pergunto se não cabe aqui a questão que uma psicanalista, cis, fizera numa reunião de um grupo de pesquisa: “O que tem de tão especial a transexualidade?”.  Boa pergunta que pode inspirar a produção de outras perguntas e de algumas respostas para nossa Jornada.


[1] MILLER, J-A. “Todo mundo é louco”, in Opção Lacaniana, n° 85, São Paulo, Edições Eolia, Dezembro 2022, pag 8 à 18.
[2] FAJNWAKS, F. “Lo que el sujeto trans enseña al psicoanálisis”, in TENDLARZ, E,  Género, Cuerpo y Psicoanálisis. Olivos, Grama Ediciones, 2020. Pag 139 à 152.
[3] LAIA, S. “Identidad, Diversidad y diferencia de los sexos”, in TORRES, M e outros,Tranformaciones. Ley, diversidad y sexuación. Olivos, Grama Ediciones, 2013. Pag 311 à 323.

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