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Argumento

A escuta analítica não se refere ao escutar nem ao ouvir enquanto ações de percepção dos sons, pelo sentido da audição, ou pelo sentido comum de uma frase falada. Já a definição de escuta, como ato de escutar, como lugar de onde se escuta, localiza uma diferença entre a escuta e o escutar-ouvir[i].

O que escuta um analista quando ouve?

Desde Freud, a escuta analítica se afastou do senso comum: a “atenção flutuante” é uma escuta que flutua entre consciente, pré-consciente e inconsciente abrindo através da associação livre, a via do deciframento, da verdade mentirosa, da ficção e das fixações do sujeito, como respostas singulares ao real da linguagem.

A fala, que inaugura a experiência analítica, é aquela que irrompe, emerge dizendo mais do que se quer dizer: irrupções das formações do inconsciente, sonhos, chistes, atos falhos e o sintoma. Algo escapa às redes imaginarias do eu. Escapa porque a fala do sujeito do inconsciente é o discurso do Outro. Mas, como escutar esse Outro do sujeito? Com que estatutos do Outro nos deparamos na prática analítica e na escuta do “mal-estar na civilização”? Interessa-nos indagar as consequências na escuta analítica das declinações do Outro na contemporaneidade: que Outros emergem nos discursos?

Abrimos assim o campo da realidade psíquica, “fixional” construída a partir do confronto do sujeito com o significante da falta no Outro, fixando, em um axioma, as possíveis relações entre o Sujeito e o objeto a, no fantasma. Como escutar as capturas fantasmáticas do sujeito numa análise?

Lacan nos orienta com uma valiosa precisão “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”[ii].“Que se diga”, o dito, o enunciado na fala, e o dizer, enunciação que um analista poderá escutar quando algo da materialidade do significante se enoda na fala e repercute no corpo.

Ou, nas palavras de Éric Laurent, “se a letra é perturbação no discurso… Ela é própria para fazer aparecer não a transcrição da fala, e sim o que se diz nas entrelinhas, o que se recusa ao dito explícito…há sempre, no que se diz, o que fica reservado, o que não chega a se dizer e que, no entanto, se escuta (entend)…[iii].

Mas a escuta se desdobra para operar numa análise, segundo Miller, “A psicanálise não é só questão de escuta, listening; ela é também questão de leitura, Reading. No campo da linguagem, sem dúvida a psicanálise se inicia com a função da fala, mas ela se refere à escrita. Há uma distância entre falar e escrever, speaking and writing. É nessa distância que a psicanálise opera, é essa diferença que a psicanálise explora”[iv].

Distinção e distância entre falar – escutar – ler – escrever para operar numa análise. O que entendemos por estas quatro variações, suas distinções e distancias? Escutamos para ler e escrever?

Há diferentes dimensões da escuta analítica. Diferentes lógicas de escuta e, em consequência diferentes intervenções, dependendo do momento de uma análise, por exemplo, do inconsciente transferencial ao inconsciente real. Quais intervenções sob transferência para operar nestas lógicas do inconsciente?

“Passa-se evidentemente pelo momento da decifração da verdade do sintoma, mas chega-se aos restos sintomáticos… Sob o nome de restos sintomáticos, Freud esbarrou no real do sintoma, no que do sintoma é fora de sentido”[v].

Miller nos adverte da distinção fundamental para operar numa análise, via interpretação sob transferência, seja orientada pelo “ternário edipiano” freudiano ou bem pelo borromeano: “ternário que não faz sentido, o do Real, do Simbólico e do Imaginário[vi]

Lacan, no Seminário 22, dará uma precisa direção para a escuta, dirá que o sentido a ser alcançado numa análise, a ser escutado, é um sentido real: que “o dizer faça um nó”. Esta topologia permite uma leitura e uma operação nos enodamentos e desenodamentos dos registros, ao mesmo tempo, assim como a localização dos diferentes campos do gozo nas interseções dos registros.

Se a escuta analítica aponta a ler um sintoma, é preciso manter uma distância entre a fala e o sentido e, assim, poder ler a escrita na fala, a letra, enquanto acontecimento de gozo, raiz dos sintomas, visando “… reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo…”[vii].

No último ensino de Lacan, uma direção para a escuta esta referenciada a três termos, segundo Miller: “o autogozo do corpo articulado a um só tempo ao há o um e ao a relação sexual não existe[viii]. Da repetição significante como combinatória à reiteração do Um do gozo, o S1 sozinho, reiteração sem lei de concatenação, que indica um aquém da repressão, lugar de fixação pulsional.

Se a política do sintoma nos orienta e nos diferencia das psicoterapias, é pelo Real em jogo, mas não sem Simbólico e Imaginário. Na clínica borromeana cada registro ex-siste ao outro, há real no Imaginário e há real no Simbólico. Nos orientar pelo Real seria poder localizar na escuta as ex-sistencias de cada registro, o que faz furo? Como se opera com uma escuta dos gozos, o “joui-sens” equívoco entre gozo-sentido e ouço-sentido, de Lacan?

Na clínica do falasser, “é a poética que permite a Lacan situar o lugar e a função da interpretação psicanalítica, na qual está em jogo a maneira de falar lalíngua do corpo… A interpretação como poesia deve visar ao novo na união do som e do sentido. Mais que tradução, a interpretação deve ser neológica, equívoca, ressonante[ix].

Com a formalização dos quatro discursos, como diferentes laços sociais, Lacan introduza questão política da psicanálise, inserida na polis, na cidade. O discurso analítico, bússola clínica, direciona a escuta “na medida em que esse objeto a(posição do analista) designa precisamente o que, dos efeitos do discurso, se apresenta como o mais opaco…”[x] Como escutar o mal-estar contemporâneo seja no dispositivo que for?

Como operar com o discurso analítico na cidade? Sabemos que a Psicanálise, seja pura ou aplicada, é em definitiva psicanálise, mas, mesmo assim, haveria alguma distinção na escuta? Qual a especificidade da escuta analítica em relação a outras escutas? E, ainda, que incidências do discurso da ciência, das tecno-ciências nos sintomas contemporâneos escutamos na prática analítica?

Nesta perspectiva, iniciamos nosso percurso rumo à 3ª Jornada da EBP – Seção Sul: A escuta analítica. Convidamos a cada um de vocês a participar nesta construção e pesquisa, colocando algo de si, algo de suas práticas nos diversos dispositivos, algo de suas questões, perguntas e impasses, que sejam causa de uma produção epistêmica, clínica e política, atualizando, assim, a psicanálise de Orientação Lacaniana.

Mariana Zelis (EBP/AMP) Coordenadora da 3ª Jornada da EBP Seção Sul.
Leitoras: Louise Lhullier (EBP/AMP) Diretora da EBP – Seção Sul e Comissão Epistêmica da 3ª Jornada: Célia Ferreira Carta Winter (EBP/AMP), Cínthia Busato (EBP/AMP) e Flávia Cêra (EBP/AMP).

[i] Dicionário Novo Aurélio – Século XXI. Editora Nova Fronteira, 2003.
[ii] Lacan, J. O aturdito: Outros Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2003, p. 448.
[iii] Miller, J.- A. Ler um sintoma: Revista Fapolonline Lacan XXI, 2016. Disponível em: http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br
[iv] Idem.
[v] Idem.
[vi] Idem.
[vii] Idem.
[viii] Miller, J A. O ser e o Um. Lição IX, 30 de março de 2011. Inédito.
[ix] Laurent E. O avesso da biopolítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 228-229.
[x] Lacan. J. O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1992, p. 40.
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