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Eixo 1

Como o sujeito se autoriza na feminilidade?

Oscar Reymundo (EBP/AMP)

Lacan disse que o gozo feminino é o gozo enquanto tal e que ele se apresenta de modo contingencial. Nesse sentido, a feminilidade é como a felicidade: acontece às vezes e não se anuncia.

Desta afirmação entendemos que há algo que resiste à ordem simbólica, algo opaco ao sentido, em todo e em cada sujeito pelo fato de ser falante. Em outras palavras, todo discurso se sustenta num real, o objeto a, resto indizível que está fora da cadeia significante e, portanto, fora de todo sentido. Assim colocado, podemos nos perguntar se será que esse gozo opaco, chamado, na paroquia, de feminino, precisa de alguém se autorizar para apresentar-se, contingencialmente, com seus efeitos de desarranjos na vida e na agenda, até daqueles que acreditam ser possível ter algum domínio sobre a linguagem. Mas então, se essa opacidade do gozo não precisa que alguém se autorize para experimentá-la: como virar-se, quando ela se manifesta, sem apelar ao negacionismo segregativo, causa de violência, que não é outra coisa senão uma consequência do silencio pulsional?

Poderíamos escrever uma história das culturas orientados pelas estratégias que se implementaram nas diversas civilizações, ao longo dos tempos, para silenciar as manifestações dessa dimensão do indizível, do impossível de controlar, programar, governar, educar. Muitos, muitas e muites acabam nas fogueiras da purificação nas suas mais diversas versões quando, de um modo ou outro, expõem o lado opaco, incompreensível, dum gozo que o amo não consegue sequer admitir.

Talvez devamos pensar o autorizar-se como efeito de um consentimento com o próprio da dimensão pulsional, isto é, impossível foracluir o que, sem aviso prévio, inunda o ser falante deixando-lhe tão somente duas possibilidades pulsionais: o masoquismo ou o sadismo. Duas possibilidades que poderão ser limitadas, ora pela castração, ora pela sublimação, mas nunca desaparecer. No máximo podemos ficar advertidos.

Quando falamos, então, de consentimento, um por um, com esses “fora da casinha”, estamos fazendo referência a uma posição ética que, de início, exclui o paraíso na terra. Estado de graça prometido pela religiosidade do voluntarismo cognitivista que, desconhecendo o real presente no sintoma, aposta à erradicação dos mistérios do corpo falante. Esse é o real que na nossa clínica encontramos, por exemplo, no sofrimento de quem nos consulta porque não encontra resposta para a indefinição de sua posição sexual, ou porque seu rechaço do corpo sexuado com o qual nasceu já não lhe permite viver.

Fora da casinha, fora da cadeia significante, fora do sentido…traço do gozo opaco, esse que habita o “Continente Negro”, com o qual é necessário consentir para poder orientar-se e autorizar-se na direção das invenções, que cada um pode produzir, para que a vida seja vivível junto com outros.


Eixo 2

Sobre aquilo que não se pode falar deve-se calar? Da narrativa à poiesis do indizível

Marcia M. Stival Onyszkiewicz (EBP/AMP)

Do início da orientação lacaniana, extrai-se uma citação de Lacan, na qual ele salienta que se o seu “discurso não viesse a ser nada além de um vagido, ao menos colheria ali o auspício de renovar em sua disciplina os fundamentos que ela retira da linguagem”[1]. Assim, fazendo uso da regra fundamental, neste período de retorno a Freud, Lacan começa a organizar a psicanálise a partir do imaginário, para em seguida fundamentá-la no estruturalismo. Contando com o inconsciente transferencial, faz da travessia da fantasia o fim de uma análise.

Mas Lacan chega ao último ensino considerando sua invenção e destacando que, “orientar-se pelo sintoma como resposta da existência não é a mesma coisa que orientar-se pela fantasia.”[2] Deste tempo de elaboração, resgata-se que cada um se satisfaz e sofre de um modo, sendo impossível fazer de dois, Um.

Repercussões deste amplo percurso são tocadas pelo segundo eixo de trabalho da primeira Jornada da Seção Sul, a partir de uma questão: “sobre aquilo que não se pode falar deve-se calar?”. Eis uma provocação que explicita a presença do impossível, enquanto traz à tona que “o real não fala”.[3] Esta proposição, marcada pela obscuridade, remete à consideração de que “ a orientação do real …foraclui o sentido.”[4] Então trata-se de calar ou de contar com o simbólico para encaminhar-se rumo ao significante, no estatuto de letra? Estaria aí uma oportunidade para refletir sobre a função do escrito, como o que se coloca além da linguagem e da narrativa, como fruto de uma redução que possibilita um saber-fazer?

Avançando no que este eixo apresenta, depara-se com uma afirmativa: “da narrativa à poiesis do indizível”.  Trata-se de uma duplicidade abarcada pelo significante, que conduz da consistência do Outro a sua inconsistência, da alienação à separação. Provavelmente uma aposta, que resgata o que a arte ensina: “a poesia está guardada nas palavras”[5].

Então, do percurso incluído na afirmação, poderiam ser contemplados distintos modos de conceber o amor, de lidar com as contingências, de conduzir a clínica?

Eis um campo aberto para conversa, a ser ancorada nos ecos que os trabalhos desta Jornada puderem suscitar.


Eixo 3

Que litorais possíveis com outros discursos?

Adriano Aguiar (EBP/AMP)

Litoral… litoral é a noção propriamente lacaniana para falar do encontro entre dois campos heterogêneos, que diferente da fronteira, não faz apelo a um denominador comum:

“a fronteira, com certeza, ao separar dois territórios simboliza que eles são iguais para quem a transpõe, que há entre eles um denominador comum. (…) Não é a letra…litoral, mais propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para outro, por serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos?”

Sabemos que Lacan introduz a noção de litoral na psicanálise para falar de um encontro em particular. Aquele que se dá entre saber e gozo, de onde emerge de maneira renovada a instância da letra no ensino de Lacan.

Seria possível lançar mão da noção lacaniana de litoral para pensar outros encontros, tais como entre a psicanálise e outros saberes?

Lacan sempre buscou algo em outros saberes. Psiquiatria, etologia, linguística, antropologia, óptica, literatura, filosofia, matemática, lógica, topologia. Por que lhe foi necessário fazê-lo? O que ele buscava nesses outros domínios?

Sabemos com Lacan que para se constituir um campo ou um corpo estruturado como um todo, uma exceção ou extração se faz necessária. Se esse todo for, no caso, um corpo teórico, há que pensar que, por estrutura, existe algo que esse campo teórico não pensa; que além disso, ele está obrigado por si mesmo a não pensá-lo; e que, mais ainda, ele só é possível se não o pensa. Haveria então um impensado da psicanálise?

E se pensarmos a partir da lógica do não-todo? Seria possível fazer outros artefatos com o impensado no litoral entre a psicanálise e outros campos?

Estas são algumas questões que este eixo da jornada convida nossa comunidade a pensar. Estas e outras ainda não pensadas que lhes convidamos a trazer a partir de suas experiências no litoral.


[1] LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 239.
[2] MILLER, J.-A O ser e o Um aula XI, 04 de maio de 2011.
[3] MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan Buenos Aires: Paidós, 2014, p.235.
[4] LACAN, J. O Seminário livro 23 Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.117.
[5] BARROS, M. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo Rio de janeiro: Record, 2001.
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