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Eixos temáticos

Eixo II – “Salvar a clínica”

Maria Teresa Wendhausen

O título deste eixo foi retirado do discurso de encerramento de J.A. Miller da grande conversação virtual da AMP, em 2022[1].

Ele propõe no referido discurso colocar a trabalho o aforismo lacaniano “Todo mundo é louco”, situando-o no contexto da época da despatologização, produto da substituição dos princípios jurídicos pelos princípios clínicos. Esta substituição, nos diz, coloca em risco a clínica, podendo incidir sobre seu desaparecimento.

Indica como podemos salvar a clínica a despeito de qualquer despatologização.

Sugere, então, fazer coexistir a desaparição de toda patologia e o igualitarismo pós clínico com a conservação das distinções clínicas, à condição de estabelecer uma hierarquia entre os dois termos.

Aqui nos indagamos: seria possível pensar a clínica irônica, proposta no texto com o mesmo nome, do autor antes referido, como um modo de salvar a clínica?

Neste texto Miller faz uma pergunta: “como encarnar a referência vazia?”[2]

Esta pergunta diz respeito à perspectiva irônica da linguagem, que ele recomenda. Coloca que para esta perspectiva a linguagem faz inexistir aquilo do que se fala. “O axioma de Lacan segundo o qual a verdade tem estrutura de ficção comporta que a palavra tem efeito de ficção. O segredo da clínica universal do delírio é que a referência é vazia”[3].

A clínica universal do delírio é a que ele opõe aí à clínica diferencial das psicoses e propõe que ela seja o fundamento desta última.

Esclarece-nos que esta clínica é aquela que toma como ponto de partida o seguinte: “todos os nossos discursos não passam de defesa contra o real”[4] e que para construir esta perspectiva clínica seria preciso alcançar a ironia infernal do esquizofrênico, “aquela da qual ele faz uma arma e que incide, diz Lacan, na raiz de toda relação social”[5]. Há na esquizofrenia uma exclusão interna.

Isto denuncia que todos os discursos não passam de semblante, não há discurso que não seja de semblante, portanto “todo mundo é louco, delirante”. A base desta afirmação é que não há Outro do Outro, o Outro não existe. Não há significação possível para o gozo.

Podemos dizer que a clínica irônica, a partir da inexistência do Outro, deixa lugar para a contingência, para o dizer, para o que é mais singular a cada um. Trata-se da posição de gozo do sujeito.

Não seria esta a questão que hoje enquanto analistas temos que nos a ver, esta vertente do gozo, nos tempos em que o Outro não mais existe, tempos da queda e até da evaporação do pai? Como cada um se vira com este gozo? Como o analista opera aí?

Miller coloca que o analista “escuta o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais ninguém”[6]. Um pouco antes diz que se refere ao fato de que “ali onde se sofre, se goza”[7].

Assim, se o que está em jogo é a invenção de cada um, um a um, cabe ao analista seguir o sujeito em sua invenção para fazer frente ao real do gozo. O analista é aquele que segue, que segue o analisante que sabe. É o que se chama a docilidade do analista.

Aqui, talvez, possamos tomar o título desta jornada, “Louco-motiva: a cada um seu acento”, desde esta posição do analista, ou seja, desde esta posição de não saber e da docilidade que ela implica, para que cada um dos que nos procuram possa encontrar o acento no trem dos “tempos que correm”.

Trata-se do analista sintoma, um furo que amarra real, simbólico e imaginário quando o Outro não mais existe.

Isto diz respeito à clínica borromeana, aquela para a qual importa mais saber de que maneira o sujeito arranja para si um modo de amarração do gozo, do que da existência ou não do Nome-do-pai. “Prescindir do pai, servir-se dele”, dirá Lacan no Seminário 23[8].

Podemos pensar que esta seria uma posição condizente com o que se apresenta hoje na civilização e que como analistas nos cabe estar à altura, sustentando que no real, há um furo no saber?

Deixo esta pergunta em aberto, somando a ela duas outras que me surgiram na preparação deste eixo: Como pensar a transferência e a interpretação dentro da perspectiva aqui desenvolvida? De que modo o diagnóstico estrutural ainda tem seu lugar nesta clínica? Espero que animem nosso trabalho para que muitas outras se coloquem.


[1] MILLER, J.A. Todo mundo é louco. Opção Lacaniana n. 85, dez 2022
[2] _________. Clínica Irônica in Matemas I.  Rio de Janeiro, Zahar, 1996. P.195
[3] Ibid., p.194
[4] Ibid., p. 190
[5] Ibid., p.190
[6] MILLER, J.A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires, Paidos, 2020, p. 333
[7] Ibid., p.333
[8] LACAN, J. O seminário livro 23. Rio de Janeiro, Zahar, 2007.

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