Juliana Rego Silva[1] Não existe Outro do Outro, não existe a verdade sobre a verdade.…
O inconsciente territorial de Grande Sertão Veredas
Integrantes: Francine Murara, Gabriel Bueno, Mariana Dias, Oscar Reymundo (Mais-Um), Tatiane Fuggi.
Gabriel Bueno
Seguindo a tradição dos estudos psicanalíticos de buscar na arte respiro e reflexão para sua práxis, volto-me para o livro Grande Sertão: Veredas. Há ali algo que me inquieta, como um enigma, exposto aos olhos, mas incerto ao entendimento. No longo monólogo que constitui a obra, algo parece que me acena e logo se oculta; algo se revela e volta a desaparecer. Em algum momento da leitura desta obra, não sei dizer como nem porquê, pressenti que uma velha ideia borboleteava aquelas páginas, como um vaga-lume, piscando e sumindo na escuridão. Essa ideia-conceito-aparição me remete ao fundamental conceito da psicanálise: o inconsciente.
A obra cuja matéria prima é exclusivamente fala da personagem, oferece ao leitor não só os relatos das aventuras cavaleirescas, mas também oferece um sujeito, já que este é sua fala. Ao falar o sujeito se revela e se desdobra, à revelia. A obra configura-se como a transcrição de um testemunho sobre a própria existência. Na fala de Riobaldo se revela um significante que podemos supor um significante mestre, que organiza sua relação com o Outro, que o submete à lógica do inconsciente. Este significante seria “O Sertão”.
Além das aventuras vividas, avento que o personagem está a descrever uma experiência muito singular que toma certa forma na teoria psicanalítica. Faço a suposição que a obra de Guimarães Rosa descreve alguns fenômenos do inconsciente, presentificando-o nesta entidade topológica nomeada de “O Sertão” – e expresso, metaforicamente, a partir das palavras do herói sertanejo.
Para apresentar minha interpretação, começo por uma cena clássica da teoria exposta por Freud em seu artigo “O Eu e o Isso”, de 1923, onde Freud descreve o seguinte: “Assim como o cavaleiro, se não deseja se separar do cavalo, é obrigado de tempos em tempos a conduzi-lo aonde este quer ir, também o eu tem o hábito de transformar em ação a vontade do isso, como se fosse sua própria”. Nesta passagem Freud nos conduz a compreender certo caráter insubordinável do inconsciente ante aos quereres do Eu. Há algo na dinâmica inconsciente (no texto de Freud identificado topologicamente como o Isso) que sempre escapa a possibilidade de representação. E, ainda assim, qualquer representação que venha a ser possível, estará a montar sobre a força motriz das pulsões.
Em Grande Sertão: Veredas, numa das muitas passagens onde herói sertanejo faz uma descrição da personalidade do Sertão, em minha escuta ressoa íntimas similaridades com as elucubrações de Freud acima citadas. Riobaldo descreve o Sertão nos seguintes termos: “Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela (p. 270)”. O Sertão aqui aparece como força que governa, que não se deixa dobrar pela vontade dos que por seus caminhos se aventuram. Na obra, expresso de forma poética, podemos antever que há algo de uma experiência – na qual estamos imersos – que nos escapa qualquer capacidade de regimento, de controle, de refinamento, de decisão; o homem, no sertão, não é senhor de sua própria casa.
Outro aspecto da narrativa que me remete a compreender parte da obra de Guimarães Rosa como uma fábula da revelação do inconsciente – personalizado numa entidade territorial – se refere a onipresença invisível do Outro, que se denuncia em breves lampejos, como relâmpagos de uma tempestade em noite escura. Novamente, ao descrever de maneira animística o território que o encerra, Riobaldo profere as seguintes percepções: “Sertão, ― se diz ―, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.” (p. 275) “O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente…” (p. 374).
Lacan no seminário 11 faz alusões de que o inconsciente só se evidencia em suas hiâncias, nos vacilos do semblante de um Eu Ideal. Nas palavras do autor, “ela [a hiância] se distingue do que há de determinante numa cadeia, dizendo melhor, da lei […] [o ics] se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação” (p. 29). Assim, o trabalho analítico não se trata de uma busca arqueológica por um inconsciente submerso nas profundezas do ser, mas talvez de um saber fazer com o presente-imprevisível que ontologicamente nos ronda e nos subjetiva.
Ainda no seminário 11, “o que se produz nessa hiância, no sentido pleno de termo produzir-se, se apresenta como um achado. […] a surpresa – aquilo pelo que o sujeito se sente ultrapassado […] esse achado, uma vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda” (p. 32). Aqui Lacan ressalta manifestações do inconsciente que se evidenciam no seu caráter de retorno e de inesperado, daquilo que irrompe com aparência de novidade e nostalgia. Já o personagem do nosso romance parece identificar no seu Outro etéreo-porém-absoluto características semelhantes e vem novamente a descrever o Sertão a partir de caracteres que têm a sua similaridade com o texto de Lacan, definido assim: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera” (p. 208)
Por ora arrisco-me a sugerir – a partir desses poucos fragmentos – que a obra Grande Sertão: Veredas pode também ser lida como uma fábula que nos apresenta a criação (ou achado) de Freud sob a encarnação desta entidade topológica nomeada de “O Sertão”. Foi justamente nos mitos, nos contos de fadas, nas obras literárias que a psicanálise, encontrou um terreno fértil para fomentar elaborações simbólicas daquilo que é inapreensível pela palavra. Portanto, a arte é, para cada um e à sua maneira, uma via para a interpretação da própria psicanálise.