
EIX03 – VI Jornadas da EBP Seção Sul Cadê o gozo?
As vicissitudes do gozo nas “análises que duram”
Luis Francisco Espíndola Camargo (EBP/AMP)
Ao ler pela primeira vez o título deste eixo – As vicissitudes do gozo nas análises que duram – pensei ser inevitável articular a palavra “vicissitudes” ao título da Jornada, Cadê o gozo?
O advérbio “cadê” é uma palavra genuinamente brasileira, cujo primeiro registro se encontra no livro “Contos do Sertão” (1912) de Viriato Correa 1. Trata-se de uma variação bem-sucedida de “quede”, expressão da qual surgiu o “cadê”. Um estudo realizado por Araújo2 em cartas do século XX demonstrou que essa expressão é uma contração constituída por aglutinação, assumindo a carga enfática e interrogativa para as seguintes expressões “o que é de” ou “o que é feito de”. Em nosso jargão, “cadê” é uma condensação em que uma expressão longa é reduzida a uma forma mais curta e econômica, fenômeno típico nas formações dos sonhos e dos lapsos. Em suma, “o que é feito do gozo?” é uma questão topológica que interroga a localização do gozo. Já o substantivo “vicissitudes” deriva do latim vicissituda, cuja raiz vem de víeis, o que significa mudança ou alternância, e com o sufixo itudo indica a qualidade de um estado. Em outras palavras, designa a alternância ou as alterações de estados de algo ao longo do tempo. Portanto, podemos concluir que o título deste eixo nos convoca a trabalhar sobre as mudanças, transformações ou mutações do gozo, assim como a sua localização, nas análises que duram.
No entanto, esse trabalho é desafiador, já que em “Sobre o início do tratamento”3, ao comparar a estrutura de uma análise ao jogo de xadrez, em que apenas as jogadas iniciais e finais permitem uma representação exaustiva, Freud adverte que “as jogadas que começam a partir da abertura acabam frustrando tal representação”4. Por outro lado, em “Sutilezas Analíticas”, Miller5 aborda as características desses três momentos de uma análise – as que iniciam, as que duram e as que terminam-, relacionadas às transformações do gozo. Ele considera que as análises que iniciam são caracterizadas pela oposição inconsciente/consciente e pelo gozo velado na queixa e na culpam, o gozo-excesso. Já nas que duram, o eixo se desloca para a oposição saber/gozo. O gozo passa a apresentar uma alternância entre o gozo-excesso, ligado ao sofrimento, e o gozo-satisfação, ligado ao sinthoma. Vale lembrar que a perspectiva do gozo como aquilo que excede o simbólico e desafia o princípio do prazer foi abordada por Lacan ao longo do Seminário 7, sobre “A ética da psicanálise”. Ao longo das análises que duram, o mais-de-gozar (o gozo excedente) será absorvido pelo trabalho de redução significante ao gozo-satisfação, visto que o trabalho de análise ao desarticular o saber do gozo abre o caminho para uma satisfação real, concebida como um gozo fora do sentido, observado nas análises que terminam. Essa alternância é o que caracteriza as análises que duram.
No Seminário “O osso de uma análise”, Miller esclarece que num primeiro momento Lacan havia pensado o investimento da libido a partir do imaginário – era a imagem que atraía a libido. Posteriormente, a solução é encontrada sob os tipos de identificação que atraem a libido, por exemplo, a identificação ao significante fálico, o significante do desejo. Assim, a operação de redução do saber/gozo conduz a análise para o que se denomina de “queda” das identificações do sujeito e de travessia da fantasia. A fantasia articula o significante ao gozo, cujo travessia foi denominada por Lacan de des ser. No entanto, sabemos que isso não é tudo. Miller esclarece que a fórmula da fantasia fundamental não é a molécula exclusiva que a articula o saber e o gozo. O sintoma também é um ponto de fixação entre significante e gozo. Assim, a mutação do gozo em uma análise é decorrente da passagem da articulação entre saber e gozo na fantasia para a articulação no sinthoma.
Quais os marcadores do gozo em uma análise que dura?
Lacan6 definiu três registros topológicos: o real (R), o simbólico (S) e o imaginário (1) e, igualmente, três tipos de gozo: (1) o gozo fálico, J( <I>), entre o (S) e o (R); (2) o sentido, entre o (S) e o (1), do qual cunhou por vizinhança homofônica o termo j ‘ouis-sens7 e; (3) o gozo do Outro barrado, J (A), entre o (R) e o (I), fora do sentido. O que denominamos de “gozo feminino” é a composição de um gozo bipartido, parte iscada pelo significante fálico e parte ligada ao S(A), isto é, ao regime do gozo como tal.
Lacan apresentou duas perspectivas sobre a localização do gozo. A primeira está no Seminário 1O, onde encontramos o ponto de vista topológico do objeto a – cujos avatares são os objetos das pulsões parciais. A segunda perspectiva está no Seminário 18, denominada de “o ponto de vista lógico do objeto a”, o objeto mais-de-gozar8, o informe de A. Segundo Miller9, o furo do Outro tem a mesma estrutura do objeto a e por meio dele o sujeito captura o mais-de-gozar. Se uma análise que dura implica na articulação saber/gozo, podemos supor dois marcadores, o gozo fálico e o gozo do sentido, por meio do qual é possível localizar a satisfação ligada à libido. A abordagem sobre o gozo articulado ao furo do Outro, parece-me ser mais apropriada para demarcar as análises que terminam.
Frequentemente, as análises que terminam são caracterizadas pela identificação ao sintoma, a este resto irredutível denominado sinthoma e ao gozo do Outro barrado. Esse último, de acordo com Miller10, caracteriza a abordagem de Lacan que difere de Freud, pois o termo gozo é utilizado para se referir tanto à satisfação relacionada à libido quanto a satisfação associada à pulsão de morte, ao gozo não-localizável.
Um exemplo clínico
Carolina Koretzky 11 descreveu duas transformações do gozo em sua análise. Por um lado, testemunhou a recuperação de um gozo perdido nos sintomas que falavam no seu corpo e que “deveriam [ser] decodificados para fazer deles a sua verdade”12. Essa é a perspectiva de uma análise que dura, que promove a disjunção entre significante e gozo. Por exemplo, Koretzky desenvolveu um eczema nas mãos que foi motivo de queixas constantes, lesões que a impedia de “dar a mão”. A satisfação neste sintoma estava relacionada ao significante do outro, por meio de uma cumplicidade com o gozo matemo, em menosprezar o pai depressivo e impotente. Por outro lado, o gozo excesso (sofrimento) é fruto de uma identificação ao pai, que não podia lhes dar uma mão. Temos nesse sintoma a articulação entre gozo-excesso (sofrimento) e gozo satisfação.
Por outro lado, o trabalho de análise a possibilitou circunscrever outro gozo ligado à hiperatividade infantil, que a impossibilitava de ficar parada, pois habitava um corpo sempre pronto para partir. Um corpo alerta e sempre à espera de uma ordem de despejo decorrente do não pagamento da hipoteca da casa pelos seus pais. No entanto, o gozo que iterava não advinha do imperativo de partir, mas o de ficar em silêncio”[…] até chegar no desamparo absoluto. […] Eu tocava, aí, no umbigo da iteração, numa outra dimensão do gozo para além da sua forma localizada”13. Essa é a perspectiva do gozo em uma análise que termina, o gozo não localizável e relacionado à pulsão de morte.
Para Carolina persistia um resto, mesmo depois de ter esvaziado as ficções, os afetos dolorosos e os mortificantes. Enfim, o núcleo do sintoma sempre estava lá, escondido e bloqueado. Podemos dizer que encontramos nesse exemplo uma mutação do gozo de uma análise que dura para uma análise que termina. Essa transformação promove uma vitalidade inédita para Carolina: “depois do final de análise, experimento episódios pontuais em que a sensação de estar inteiramente ali onde coloco o meu corpo me surpreende, ou seja, não preciso procurá-lo”14. Esse breve extrato do ensino de uma AE nos ilustra as vicissitudes (transformações) do gozo nas análises que duram para as análises que terminam.
Bom trabalho!
Luis Francisco Camargo
1 Cf. Rodrigues, S. Cadê a origem de ‘cadê’? Sobre Palavras. Veja, (Blog) 24 fev. 2015. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/cade-a-origem-de-8216-cade-82 l 7/?utm source=chatgpt.com. Acesso em: 10/07/2025.
2 Araújo, F. J. De “(o) que é feito de” a “cadê que”: a gramaticalização em cartas pessoais de cearenses ao longo do século XX. Verbum, v. 7, n. 2, p. 161-182, ago. 2018.
3 Freud, S. Sobre o início do tratamento. ln. Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 121-149.
4 Ibid., p. 121.
5 Miller, J.-A. Tres modalidades dei análisis. ln. Sutilizas analíticas. Buenos Aires: Paidós, 2012, p. 109-122.
6 Lacan, J. A terceira. Opção Lacaniana, nº 62. São Paulo: Eólia, dez. 2011, p. 11-36
7 Lacan, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2007, p. 71.
8 Cf. Miller, J.-A. Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana, v. 1, n. 51, São Paulo: Eólia, abr. 2008, p. 9-42.
9 Miller, J.-A. Uma leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana, v.l, n. 48. São Paulo, Eólia, mar. 2007, p. 20.
10 Cf. Miller, J.-A. O objeto gozo. Opção Lacaniana, v. 1, nº 82, São Paulo, Eólia, abr. 2020, p. 22.
11 Koretzky, C. Desvelar a rasura. Opção Lacaniana, v. 1, nº 89, São Paulo, Eólia, dez. 2024, p. 115-119.
12 Ibid., p. 115.
13 lbid., p. 116.
14 Ibid., p. 115.