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VI Jornada da Seção Sul. “Cadê o gozo? O que diz a época e a clínica

Eixo 2: O gozo desde o início da análise

Célia Ferreira Carta Winter (EBP/AMP)

Quando alguém procura análise, na maioria das vezes, o que busca é alívio. O dito tão difundido de que “falar faz bem” propicia inícios com falas angustiadas, queixas, insatisfações, recriminações dirigidas ao Outro: “o parceiro que não escuta, o chefe insuportável, a família que sufoca, o mundo injusto”. O sujeitodemanda, muitas vezes, implicitamente: “escute meu sofrimento, confirme minha dor, dê sentido ao meu caos, alivie-me”. Ele busca, no analista, um Outro supostamente saber, capaz de decifrar e sanar.

Há um gozo nesses enunciadosdesconhecido pelo sujeito. De que gozo se trata? O sujeito está capturado na cadeia significante de sua queixa, gozando do sentido que ela produz. Paradoxo: esse sentido o mantém preso à posição de objeto de um Outro mau, ou de um destino cruel. A própria estrutura da fala – sua repetição e a busca por reconhecimento no olhar do analista – carrega consigo essa satisfação intrínseca. O gozo, enquanto prazer no desprazer, é essa satisfação que se descola da demanda e do desejo, inscrevendo-se no corpo e na relação do sujeito com o Outro.

Acolher quem procura atendimento, dar-lhe as boas-vindas, não é validar a queixa, mas encaminhar a passagem da queixa à questão. “Não dá para ser diferente? Precisa continuar sofrendo assim?” Essas modalizações do dito e a intervenção do analista tentam implicar o sujeito em suas queixas. Essa passagem, que torna a psicanálise uma prática além da terapêutica, cabe ao analista encaminhar e, nesse sentido, “cadê o gozo”? É um orientador clínico fundamental, para que este dirija o tratamento, e não a consciência do analisando.

A entrada em análise, ponto crucial na práxis lacaniana, marca uma transformação significativa, um limiar que distingue um antes e um depois, na experiência do sujeito. Este momento é caracterizado pelo entrelaçamento de tempos lógicos: o momento de concluir as entrevistas preliminares, que é um ponto de inflexão; e o instante de ver, que denota a implicação subjetiva do analisando e coincide com a abertura de um tempo de compreender mais além. Esse é o ponto da abertura do discurso do mestre para o discurso da histérica, em que o sujeito emerge em sua divisão subjetiva. De vítima das queixas… à qual minha parte nisso? Perguntas fundamentais do eixo: em sua clínica, nos casos que acompanha, como foi essa passagem: de queixar-se do outro para implicar-se em seu sofrimento? Como acolher o sujeito em suas queixas atordoantes sem passar a “mão na cabeça”? Como fazer emergir a demanda que cabe ser acolhida, a demanda de análise?

O ato analítico formaliza a entrada em análise e a leitura preliminar das marcas de gozo fundantes. Tais marcas operam além da esfera do sentido e da simples terapêutica, oferecendo coordenadas essenciais para a condução do caso e uma bússola que orientará o processo analítico para localizar o gozo.

Essa perspectiva do gozo, como orientador clínico, vai além do consultório. Ela se estende a diferentes dispositivos, como escolas e hospitais, e se torna particularmente relevante em situações de urgência, onde a demanda pelo atendimento é premente. Nesses contextos, muitas vezes, um ou poucos encontros representam a única oportunidade para que aquele que sofre encontre uma resposta diferente, diante do seu padecimento, uma resposta que se diferencie daquelas propostas pelo mercado terapêutico.

A questão central, então, reside em como operar analiticamente nessas condições, em um breve lapso de tempo e, muitas vezes, em condições desfavoráveis? O desafio é intervir de modo que, mesmo diante de tais limitações, a porta para um “começo” permaneça aberta, permitindo que a dimensão do gozo, em sua singularidade, possa ser apreendida e trabalhada, orientando o analista para além das expectativas do tratamento ou de sentido. Convidamos para que compartilhe sua experiência nesses casos tão fundamentais.

O ato analítico se situa nessa brecha: faz existir o inconsciente transferencial, epor meio das intervenções, aponta para o inconsciente real, isto é, para o gozo. Patrícia Moraga cita Lacan e indica que a neutralidade do analista é “justamente essa subversão do sentido, essa espécie de aspiração não em direção ao real, mas pelo real”. Sem essa operação, o gozo permanece fora do campo do desejo, repetindo-se como destino. “El recorrido de los discursos muestra que el gozo no se elimina, sino que se redistribuye en la estructura”[1].

No Seminário “Donc”, Miller descreve um percurso lógico que organiza a experiência analítica. No início temos o discurso do mestre: “sou TDAH, sou Bipolar”. O sujeito chega com um sintoma (S1) que encobre seu gozo (a). O discurso dominante é o do “mestre” (supereu, ideais sociais). O discurso da histérica (tempo das entrevistas preliminares) o sujeito ($) interroga o significante-mestre (S1). “Por que isso me acontece?”. O analista sustenta a pergunta, evitando respostas prematuras, permitindo que o gozo comece a circular como enigma. Discurso do analista (processo analítico): o analista ocupa o lugar do objeto a (causa do desejo), descompletando o saber (S2) do sujeito que o mantém alienado ao discurso do mestre[2].

O impasse da clínica contemporânea: quando o gozo obstaculiza a divisão subjetiva

Na clínica contemporânea, um dos impasses, é a crescente dificuldade de operar com sujeitos que não apresentam uma divisão subjetiva. Nesses casos, a ausência de um “espaço” para o desejo, que normalmente é articulado pelo fantasma, dificulta a abordagem analítica tradicional. O desafio, então, reside em como o analista pode tocar ou cernir esse gozo que se manifesta sem a interrogação que impulsionaria uma busca ou uma saída sintomática. Esta questão nos convoca a repensar as estratégias, buscando formas de criar as condições para que uma divisão se instaure, mesmo que minimamente, para que o gozo possa, enfim, se tornar um enigma a ser trabalhado. De gozo se trata? O que foi tocado aí?

Convite à escrita

O convite à escrita de recortes clínicos, a partir da prática de cada um, é fazer emergir o singular de cada caso, ou os tempos dos giros discursivos da trajetória analítica. Em que ponto se pode demonstrar que o gozo, que fala na língua do sintoma, pode ser ouvido em sua gramática, criando condições para que ele se inscreva como questão? Como o analista se coloca como guardião do vazio, que permite ao sujeito reencontrar sua divisão? Como o analista torna sua “douta ignorância” num processo efetivo de busca do sujeito? Como o analista se posiciona no primeiro encontro com sujeitos cada vez mais reativos ao inconsciente e mais perturbados pelo gozo do corpo? A popularização das consultas virtuais e da tecnologia também teve sua incidência na decisão de buscar um analista pela primeira vez[3]?

Essas são algumas das perguntas que convidam a colocar nossa clínica à altura da civilização, sem perder de vista que o gozo, em suas múltiplas facetas, continua sendo uma bússola essencial para o analista, desde o primeiro encontro. É na escuta atenta e na capacidade de cernir o gozo, que reside a possibilidade de um começo analítico, que vá além da demanda inicial terapêutica, permitindo a emergência de um sujeito dividido e desejante.

Pontos de investigação – Eixo 2

  • Como recolher as manifestações do gozo na queixa inicial, nos sintomas expressos por quem procura uma análise e nas formações do inconsciente?
  • Quais seriam as modalizações do dito, demonstrando implicação do falasser na queixa com a qual goza?
  • Como fazer emergir uma demanda de análise, quando há descrença no inconsciente?
  • A respeito do laço transferencial e da acolhida da demanda de análise, o que se manifesta do gozo?
  • Como se apresenta a relação entre o gozo e a ética da psicanálise no momento da entrada em análise?
  • Como se apresenta a função do analista em identificar e manejar o gozo para além da terapêutica?

[1] Moraga, Patricia. El goce y eltratamiento de lasatisfacción. Olivos: Gramma Ediciones, 2015, p. 68-69.

[2] Miller, Jacques-Alain. Donc: la lógica de la cura. Buenos Aires: Paidós, 2020, p. 100.

[3] Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/argumento-e-eixos-tematicos/

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