
Argumento para a VI Jornada da Seção Sul
Cadê o gozo?
O que diz a época e a clínica
O título construído para a VI Jornada da Seção Sul “Cadê o gozo? O que diz a época e a clínica”, traz uma questão que nos aproxima dos ditos que recolhemos em supervisões de casos que circulam entre os praticantes da psicanálise. Como numa busca para operar sobre o que é mais próprio de cada um, emaranhado nos ditos e nas atuações, surge: Cadê o gozo? E, a fim de orientar a questão, propusemos um subtítulo: O que diz a época e a clínica.
Como um modo de instigar a pesquisa e a elaboração de textos, delineando por onde caminharemos, vamos nos centrar no que recolhemos da época e no que a clínica psicanalítica nos leva a considerar sobre a inscrição da linguagem nos corpos.
Assim lançamos um convite para nos debruçarmos sobre o social – enquanto analistas praticantes- e para nos centrarmos no que há de mais íntimo em cada falasser, ao longo de um percurso analítico.
O lugar
Um primeiro ponto de escansão do título me remete à localização, porque só se pergunta onde está, quando se pressupõe uma presença que ocupa um lugar.
Ao formalizar a estrutura de quatro discursos, no Seminário XVII, Lacan propôs dimensões por meio das quais é possível verificar o lugar onde o gozo se instala. Por se tratarem de discursos, afinal Lacan salienta quatro neste Seminário, pressupomos que há um trato diferenciado em relação ao gozo, conforme o discurso em questão. Aí já temos pistas: o gozo ocupa um lugar. Ele acontece no corpo ou toca o corpo, que é suporte do discurso[1]. Então, nada “é mais candente do que aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo. O discurso toca nisso sem cessar, uma vez que é dali que ele se origina. E o agita de novo desde que tenta retornar a essa origem.”[2]
Na conferência Uma fantasia (2001), Jacques-Alain Miller destaca a ascensão do mais-de-gozar, salientando em outro discurso – o do capitalista-, no qual o objeto a sobe ao Zênite do social.
Vinte e um anos depois desta conferência, as mudanças no mundo são evidentes. As dimensões atingidas pela tecnologia ampliaram, trazendo novas configurações nos modos de vida e de convivência, inclusive para a psicanálise. Os termos gênero, identidade, trans, empoderamento, dentre outros, tornaram-se significantes mestres na atualidade. A violência e o racismo, mergulhados em afetos, trazem ressonâncias devastadoras no cotidiano.
Então, cadê o gozo?
Esta pergunta nos permite pinçar o que vem do social, mas que aparece na forma de sintoma ao longo de uma análise. É um modo de tratarmos pela via da Psicanálise o que reconhecemos no social. Então, ler um sintoma e interpretá-lo é a possibilidade de nos direcionarmos, por meio da política da psicanálise, e com isso tocar o gozo? Ou seja, o modo como cada um sofre e obtém satisfação?
Consideramos o gozo da fala, aquele que inclui o sentido, toca o corpo e possibilita que o sujeito lide com as limitações da linguagem. Mas a própria época aponta para corpos que, ainda que afetados pela linguagem, salientam algo além da elocubração de saber. Então, se o gozo fálico está fora do corpo, mesmo assim o afeta[3]. Seguindo seu ensino, Lacan destaca o gozo pela via de um acontecimento de corpo. Isto marcaria uma passagem do deciframento do inconsciente, enquanto triunfo do significante, para a constatação de Lacan de que há um gozo opaco ao sintoma?
Como situar, em cada caso estas modalidades de gozo? Este é um dos desafios que a pergunta “cadê o gozo?” pode nos convocar. Por certo, outras questões se decantarão.
O que diz a época e a clínica
A segunda parte do título me direciona para uma ampliação, à medida que recorro à citação de Lacan: “que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve.”[4] Considerar “o que diz” é dar espaço ao que da época chega na clínica, pela via de enunciados. Mas não nos cabe considerar só isto.
Pelo fato de que “a psicanálise visa o real, que causa o dizer […]”[5], somos conduzidos ao longo do ensino de Lacan a considerar que o dizer encontra-se “entre as funções de discurso e o suporte corporal.”[6]
Diante do exposto, vale questionar: como o dizer é extraído a partir dos ditos do falasser – que é ser de fala e gozo? Dizendo de outra forma, o que da materialidade do significante se articula na fala do falasser, repercutindo no seu corpo? O que as performances e os semblantes evidenciam do gozo?
Enquanto analistas praticantes, nos cabe investigar o que se mantém e o que muda na clínica, desde o princípio de um percurso analítico, assim como nas análises que duram.
Se a ordem não é dada pelo Nome-do-Pai, o Outro do Outro, o que assume o ordenamento é o dizer. Com isso, a leitura da época assume valor de relevância por que o dizer, que inclui o corpo, é também o que favorece os laços entre os corpos falantes? “Enquanto o dizer inclui o engate social”[7], é possível considerar que há uma diferença entre relação e laço entre os corpos? E o que poderemos dizer da presença e do valor da leitura e da interpretação analítica, em diferentes momentos de uma análise? Afinal, “[…] o que se diz só pode ser capturado no que se ouve.”[8]
Os ponteiros da bússola indicam uma clínica orientada pelo axioma “não há relação sexual”, que traz o gozo como uma evidência. Fundando-se na presença do “isso falha”, é uma clínica que marca a incidência do sintoma, testemunhando uma relação contingente com o impossível. Por esta via, o sintoma se inscreve a partir de um encontro traumático, no qual se expressa a ausência de proporção sexual entre aqueles inscritos na cena.
Então é uma clínica que nos instiga estar à altura da época, instrumentalizados com os efeitos do discurso do analista, advindos de uma formação continuada? Até onde o movimento desta clínica pode nos remeter ao trabalho na Escola, instigando uma formação que leva em conta a posição analisante?
Enquanto na V Jornada da Seção Sul questionávamos como os corpos eram afetados pelos discursos, quais efeitos clínicos disso e a dimensão do dizer próprio ao discurso analítico, com a proposta da VI Jornada visamos aprofundar na direção do gozo. Para tanto, consideraremos duas perspectivas. Por uma via, questionamos onde está o gozo, incluindo o movimento da psicanálise na direção da cidade, para que possamos localizar o que há de sintoma no social. Por outra via, tal pergunta nos conduz à clínica da psicanálise[9]. Eis um modo de focar a leitura e a interpretação do sintoma, salientando até onde o trabalho de transferência poderá levar cada um e no que ele poderá repercutir na Escola.
Temos alguns meses de preparação, até a Jornada que acontecerá dias 24 e 25 de outubro. Serão dois dias de intenso trabalho, durante os quais teremos uma atividade do ensino do AE, com a Analista da Escola Ondina Machado (nossa colega da EBP), uma conferência da AME Marina Recalde (nossa colega da EOL) e uma plenária abordando questões de Escola e o gozo. Mas como nossa proposta é também escutar e conversar sobre a prática de vocês, aguardaremos as contribuições elaboradas com base nos seguintes eixos:
# O gozo e a época
# O gozo desde o início das análises;
# As vicissitudes do gozo nas “análises que duram”.
Com base nestes eixos, poderemos escrever textos para serem apresentados na Jornada. Já se sintam convidados a revisitar os casos clínicos e aparatos epistêmicos da Orientação Lacaniana, que em muito contribuirão para a elaboração dos textos.
Marcia Stival
Coordenadora da VI Jornada da EBP-Seção Sul
[1] LACAN, J. O Seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.221
[2] LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p.13-14, 66.
[3] LACAN, J. A Terceira Opção Lacaniana N. 62 Edições Eólia: São Paulo, 2011.
[4] Lacan, J. O aturdito Outros Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2003, p. 448.
[5] ALBERTI, C. Corpos aprisionados pelo discurso Correio N. 94, Corpo Escola São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, abril 2025, p. 18
[6] LACAN, J. O Seminário, livro 19: … ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.221
[7] ALBERTI, C. Corpos aprisionados pelo discurso Correio N. 94, Corpo Escola São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, abril 2025, p. 19.
[8] ALBERTI, C. Corpos aprisionados pelo discurso Correio N. 94, Corpo Escola São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, abril 2025.
[9] TUDANCA, LUÍS. Vizinhança: um comum não recíproco Revista Derivas analíticas ed. 16 In: revistaderivasanaliticas.com.br