Discursos e corpos: a causa do dizer[1]
Discursos e corpos
Partimos de uma conjunção de dois termos colocados no plural. Trata-se de um par? De uma articulação ou de uma separação em uma conjunção forçada? A qual dos dois termos devemos dar mais ênfase?
Sobre os discursos
Por que nos interessa a questão dos discursos justamente em uma época que pode ser nomeada como a dos Uns sozinhos[2], do individualismo? Podemos dizer que quanto mais se faz presente o gozo do Um sozinho, mais imprescindível torna-se o discurso. O discurso como o que possibilita restabelecer o laço com o Outro.
Os discursos, que são quatro, instauram um semblante que sustenta de diferentes modos, por um tempo, um laço social. Tomo aqui o discurso como laço social[3], cabendo destacar que, mesmo sendo designado pontualmente por Lacan, o discurso capitalista não faz laço.
Os discursos implicam uma operação sobre o gozo. O lugar do agente é sempre um semblante que tem como parceiro o gozo. E o produto vai ser sempre um mais-de-gozar[4]. Um resto, um “resíduo de gozo”, como indica Graciela Brodsky[5].
No discurso analítico, o agente é um semblante, mas que se sabe semblante. O analista o sabe e o obtém de sua própria análise, desse resto que vem do trabalho inconsciente. Um resto que se extrai da própria análise, da qual por experiência própria pode se constatar que o referente é sempre vazio e a linguagem não dá conta de dizer tudo o que é do real. O analista é atravessado pelo discurso analítico porque ele mesmo consentiu com o lugar de analisante e com sua relação com o inconsciente. Por isso, sabe-se semblante e não se toma pela verdade do discurso.
O discurso analítico é uma exceção aos outros discursos, pois é o único que não visa à dominação. Quando falamos de dominação, estamos nos referindo à dominação de gozo. Nesse sentido, o discurso analítico não domina. A associação livre leva ao impossível de dominar: à pulsão, ao objeto a que é o gozo. É com a linguagem que contamos, não saímos dela, mas em análise, é como semblante que seu uso pode ser verificado. É desse ponto que o analista o suporta e opera, no discurso.
Corpos afetados
Os corpos falantes gozam. Tornam-se corpos aprisionados, afetados[6] pelo discurso. Se anteriormente propus os discursos como laço social, podemos nos servir de outro termo também de Lacan: “Os discursos […] não são nada mais do que uma articulação significante, o aparelho, cuja mera presença […] domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras.”[7]
Parece-me que podemos tomar essa afetação dos corpos a partir de diferentes dimensões: 1) Os corpos afetados por significantes que são oferecidos pelos discursos, que podem, por um lado, deles receber uma nomeação ou uma identificação, mas, por outro, estarem a eles submetidos. Temos casos nos quais uma identificação, mais do que orientar, cristaliza o sujeito em uma posição de sofrimento agudo. 2) Também temos os corpos afetados pelos avanços da ciência. Corpos físicos que se modificam, se produzem, se enfeitam, se alteram a partir do que a ciência e a tecnologia introduzem na subjetividade, deslocando inclusive a dimensão da procriação, como vemos em muitos casos em que recebemos os pais ou as crianças.
Podemos prescindir dos discursos? Trata-se de liberar os corpos do discurso? Os corpos sempre têm sido modificados pelo discurso, pelo laço social. A conjunção de discursos e corpos é importante. Daí a relevância do discurso do mestre e do discurso analítico como seu avesso. Mas, qual é a novidade hoje? Como os corpos são afetados pelos discursos hoje e seus efeitos clínicos? O que o Mestre da época oferece como significantes privilegiados para fisgar o gozo que captura os seres falantes? Bom, esse é um ponto a explorar a partir dos trabalhos enviados para nossa 5ª Jornada da EBP – Seção Sul.
Podemos partir da afirmação: é o discurso o que faz do corpo um corpo. Um corpo que vai além da imagem do corpo. Como coloca Mauricio Tarrab, Lacan era realista e considerava que o corpo deve ser “capturado” pelo discurso para ser um corpo, para se regular como corpo, para existir como corpo[8]. Isto é, se, por um lado, o discurso regula, ordena uma dimensão do corpo, por outro, a consistência corporal finca suas raízes no acontecimento de corpo e na incidência de lalingua no corpo.
Portanto, há algo do corpo que é capturado pelo discurso, mas não todo. E aí nos interessa o tema. Há um caroço do corpo que sempre escapa. Isso nos permite localizar que o discurso é da ordem do significante e há uma dimensão do corpo que implica o real. Algo que escapa, que não se domina, introduzindo o lugar do dizer.
A causa do dizer
O que não se domina. Quando o dito que emitimos nos surpreende, surge a questão: o que se quis dizer? Recolher a palavra ou a frase que se disse sem pensar pode nos colocar em relação com uma estranheza que, a partir do discurso analítico, se torna trabalho, elaboração.
Há um deslocamento, a partir do discurso analítico, que implica o interpretador nisso que escapa. Não se trata simplesmente de um o que quer dizer?, mas sim da dimensão da interpretação, como diz Lacan: “Quando interpretamos um sonho, o que nos orienta certamente não é o que quer dizer isso?, nem tampouco o que ele quer, para dizer isso?, e sim, o que é que, ao dizer, isso quer? Isso não sabe o que isso quer, aparentemente”[9]. Mas há um dizer.
É esse vazio entre corpo e discurso e o que rateia que faz com que o discurso analítico acolha, equivoque para poder recolher: O que é que, ao dizer, isso quer?
O discurso analítico visa tocar essa dimensão do dizer, há uma redução da linguagem a esse ponto que nomeia o que morde o corpo. Extrair um S1 que se destaca para introduzir o singular que permite nomear e tocar o mais vivo do corpo e não a submissão mortificada. O dizer que permite tratar a maneira como o corpo encontra o significante que o fisga. É na experiencia analítica que se constrói o que vivifica o corpo tomando em conta a lógica pulsional. A partir disto, o laço social é diferente do que fazer laço social submetido a essa dimensão mortífera do discurso que mantem o corpo em um certo anonimato. O dizer ao tirar o corpo do anonimato dá uma possibilidade ao sujeito de suportar a alteridade do gozo de outra maneira. Uma outra forma de lidar com a alteridade que vem do corpo.
Mas como nos indica Miller, o dizer tem a ver com o tempo. Ele se pergunta: “O que quer dizer dizer? Dizer tem algo a ver com o tempo”[10]. O instante, o imprevisto, o tempo da elaboração, da fuga, do que escapa. E como analistas, atentos a essa fuga do sentido.
Retomo uma orientação que me parece preciosa de Marcus André Vieira: “[…] o analista talvez valha hoje menos por sua interpretação no sentido que lhe deu Lacan […] do que pela surpresa que provoca ao propiciar, com as nomeações que acolhe, um lugar para o real”[11]. Destaco “as nomeações que acolhe, para dar um lugar para o real”. Portanto, abre-se uma pergunta sobre, como nos casos, o valor da interpretação e as modalidades da interpretação tocam o real? Capturar como surpresa, como acontecimento?
Este tema nos convoca a um trabalho em suas dimensões clínica, epistêmica e política que se enlaçam nos eixos que orientarão o envio dos trabalhos.
Eixo 1: O interpretador é o analisando
Eixo 2: Estar à altura do acontecimento imprevisto
Eixo 3: O discurso faz do corpo um corpo
Convidamos a todos a participar deste trabalho que implicará cartéis, já em funcionamento em torno dos eixos, mas que, como Gresiela pontuou, é um convite extenso para os que desejarem. Isso permitirá o avanço da elaboração já nas atividades preparatórias, mas poderemos refiná-la a partir dos casos nas mesas da Jornada.
Até!