Eixos temáticos
Eixo: Que bússola é essa?
Nohemí Brown
Um mapa nos dá um panorama da densidade do terreno e os caminhos opcionais. A bússola é um instrumento de outra ordem, marca a direção a seguir. Não indica tudo o que encontraremos no caminho, mas sim, para onde podemos nos dirigir. Portanto, uma bússola nos orienta, especialmente quando percorremos um caminho que desconhecemos, onde as referências não são claras. Uma bússola talvez seja o elemento mais pertinente para os tempos que correm. J.-A. Miller coloca como bússola o aforismo lacaniano: “Todo mundo é louco, isto é, delirante”. A importância de um aforismo como este, radica em que ele é um enunciado breve, conciso, mas no qual se afirma um saber. Portanto, tem um valor epistêmico, mas, como sabemos, nossos conceitos são os instrumentos com os quais operamos na prática. Nesse sentido, essa bússola lacaniana[1], por um lado, permite nos orientarmos no último ensino de Lacan, e, por outro, condiciona a prática contemporânea. O ensino condiciona a prática analítica e essa bússola é convocada a incidir nela.
Algumas consequências:
– Todos delirantes
Se é com os efeitos de sentido que construímos nosso mundo, as palavras introduzem no corpo representações e o corpo é capturado pelo sentido. Há um certo “império do sentido sobre nossos corpos e a nosso modo nos enrolamos nele”[2].Com o aforismo que estamos trabalhando, se destaca a extensão da categoria de loucura, onde todo o ser falante é carente com relação ao saber sobre a sexualidade, sobre o gozo do corpo. O que a psicose nos ensina é que o significante sempre é enigmático. O delírio, por outro lado, acrescenta outro significante, que é o do saber. O delírio é uma invenção de saber sobre esse significante enigmático. Neste sentido, a construção de um saber diante do mais singular, dessa marca de gozo, tem a estrutura de linguagem do delírio. Desde esta perspectiva, todos delirantes! Podemos dizer, em uma análise o que orienta é essa operação de subtração que permite isolar ou cingir um significante com valor de gozo, sempre enigmático.
-A extimidade do real
Este aforismo implica a extimidade do real[3] com relação ao sentido. Portanto, o que nos orienta é o real e tem sido condensado na afirmação: a orientação pelo real. Mas, o que significa isso? Esta me parece ser uma pergunta que convém colocar a trabalho e não dar por suposta. Inclusive, podemos precisar que se trata de uma orientação pelo real? do real? Para o real? De modo inicial, podemos dizer que orientar-se pelo real implica que não se faz primordialmente pelo simbólico, mas também não sem ele. Não quer dizer que se descarta o simbólico ou torna-lo irrelevante, mas que não é ele que orienta. Os registros se problematizam, como nos ensina Lacan na Terceira, texto que marca o início do último ensino, onde retoma seus três – real, simbólico e imaginário – e os reformula. Fazendo disso uma articulação de três consistências que ressalta o que as mantem juntas; os arranjos que permitem o nó que sustenta um laço com a vida do parletre. Orientação para o real, implica que o real está ali, que não depende do analista, mais bem, o analista depende dele. Se orienta por ele. O analista tem por missão enfrentá-lo.[4] Esse real só pode ser enodado.
Se falamos de ensino, há algo que não pode ser ensinado, especialmente com relação ao real; por isso, a questão da formação do analista se torna fundamental.
– Há gozo
Essa bússola tem como suposto que há gozo. Há momentos ao longo de um tratamento em que algo pode se apaziguar ou perturbar, isto é, algo da ordem do gozo. Mas também há algo irredutível nesse gozo. O real do gozo; mais do que decifrá-lo, há que localizá-lo para saber-fazer com ele. Retomar a prática da psicanálise a partir da dimensão deste aforismo é localizar o elementar na estrutura, tomar em conta a substância gozante que não se articula a nenhum circuito pulsional, nem no fantasma. Isto é, o que do gozo permanece não negativizável. Laurent propõe que a consistência do real na experiencia analítica seria um “moterial”[5] que nos habita, tomado no sentido do real que se inscreveu nos nossos corpos. Então, como nos servimos disso para formalizar uma entrada em análise, uma direção de tratamento, um final?
– Um farol
A ideia de um último momento de escansão no ensino de Lacan, permite uma certa ordenação considerando diferentes giros epistêmicos. Os ditos e as formulações de Lacan não são contemporâneos uns dos outros; eles foram formulados em momentos diferentes, e em épocas diferentes. Primeiro Lacan, segundo… são um certo ordenamento dos giros no ensino de Lacan. A base da formalização dessas escansões é a própria experiência analítica, seus impasses, suas épocas. Portanto, é importante considerar estes momentos e seu ordenamento, não em uma ideia de progressão, mais em um efeito de retroação, que permita esclarecer e iluminar os pontos que se mantinham opacos, ou até como pontos cegos de outro momento do ensino. Neste sentido, o efeito de retroação é como um farol que permite tornar vivos nossos conceitos. Uma bússola que nos permite extrair e apreender sobre o conceito, por exemplo, de desejo do analista[6], de sintoma, interpretação, etc.
Por isso, é importante considerar as consequências dessa bússola. Que bússola é essa? Como nos orienta na escuta, na nossa prática e poder formalizá-la na construção do caso. Mas também, como podemos ler, se possível, retroativamente os conceitos e dando outra luz. Isto é, dando o valor ao que aprendemos dos primeiros momentos do ensino, articulados à experiência analítica. É disso que se trata uma bússola: como nos orientarmos no mar de conceitos e ditos do paciente.
[1] Miller, J.-A. Todo el mundo es loco (2008). Buenos Aires: Paidós, 2015. Pp. 325-343.
[2] Solano, E. “Delirios y despertares. Una lectura estructural del delirio”. In: Virtualia, n. 42, mayo 2023.
[3] Miller, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica (1998). Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 47.
[4] Lacan, J. A terceira; Teoria de lalingua. Rio de Janeiro: Zahar,2022, p. 31.
[5] Laurent, E. ¿Qué es un psicoanálisis orientado hacia lo real? In: Freudiana, n. 71, 2014.
[6] Esse termo já introduzido no Seminário 11, é lido por Miller introduzindo essa orientação para o real: “a redefinição do desejo do analista, que não é um desejo puro…, mas um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro a seu real e liberá-lo do sentido”. Miller, J.-A. “O real no século XXI”. In: Scilicet. Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 31.
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