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Argumento

“Para haver paradigma é preciso haver a singularidade de um caso apreendido como incomparável. Em seguida, engancham-se vagões a essa locomotiva que parte sozinha, tal como o gato de Kipling.”[1]

Partimos orientados pelo próximo Congresso da AMP, cujo título é: “Todo mundo é louco”[2]. Esse aforismo, destacado por Miller, de um Lacan “a posteriori”, pós “momento de concluir”, ganha aqui o valor de interpretação de seu último ensino. Apesar de ter sido enunciado para defender o departamento de psicanálise através de uma crítica feroz ao ensino, tal aforismo é propriamente clínico. O que preocupa Lacan é “a estrutura de todo ensino”[3]. Donde extraímos o termo estrutura para convidá-los a colocar a trabalho a estrutura da linguagem e a estrutura dos discursos.

A passagem do Lacan estruturalista, em sua concepção do significante ser aquele que representa o sujeito para outro significante, fornece as bases operatórias e constituintes do sujeito do inconsciente. Este estruturado como uma linguagem, entre S1 e S2. Qualquer um dos três discursos, histérico, universitário e do mestre mantêm ligados dois significantes, e são objeto da crítica de Lacan ao dizer que “é preciso ser louco para ensinar, quem ensina delira”[4], pois articula dois significantes estruturando um saber numa cadeia de dominação.

 

O empuxo à produção e à produção de sentido com seus efeitos de dominação se proliferam em nossos tempos. A conhecida parceria mercado e ciência não cessa de ofertar objetos que prometem tamponar a falta. As seitas religiosas encontram mais mercado para seus dogmas que dão sentido a tudo. As demandas de trabalho excessivas excluem qualquer possibilidade de que algo saia da série repetitiva e dê lugar ao novo, ao mesmo tempo em que as novidades não param de surgir. E as, não tão novas, Inteligências Artificiais prometem dominar toda e qualquer produção de sentido disponível nos códigos binários de maior complexidade possível. As relações prioritariamente on-line limitam a circulação dos corpos ao mesmo tempo em que a rolagem das páginas da web torna-se infinita e o tempo cada vez mais escasso tem seus intervalos completamente preenchidos.  Que loucura!!! Resta aí espaço para o singular, para o impossível ou está tudo dominado?

Se seguimos à risca a orientação desse axioma lacaniano, veremos que a crítica é à estrutura de dominação. Aqui se acorda a referência de Miller ao gato de Kipling, sendo aquele animal que não se deixa domesticar pelo discurso e caminha sozinho tornando-se a referência do singular, do paradigmático. Isso nos leva a apostar que a loucura de todos é a estrutura da linguagem.

Supor a comunicação é crer na dominação, no universal e na exclusão da heterogeneidade, na exclusão da singularidade, portanto, do objeto da práxis psicanalítica. Isso levará ao “desaparecimento programado da clínica”[5]. Como nós poderíamos “alinhar nossa prática a essa nova era, sem nostalgia, sem amargura, sem espírito de vingança?”[6], nos pergunta Miller. Como distinguir os chamados “estilos de vida” agrupáveis em sintomas, singulares testemunhos do impossível, do real?

O recurso que nos resta é a referência ao discurso do analista sendo aquele que “não domina seu sujeito”. Isso se dá também por ele não operar a partir de um saber como agente, e sim pela função do objeto a que causa desejo e não submete a uma significação. Nesta mesma perspectiva sustenta-se a falta a ser inerente ao parlêtre em qualquer tentativa identitária baseada no binarismo dos significantes, por estrutura incapazes de definir, por exemplo, a posição sexuada de cada um de nós.

O que preconiza a operatividade do discurso analítico fora das relações de dominação é a possibilidade de escutar o outro a partir de uma verdadeira questão. O que seria verdadeiro na questão?

Sobretudo em tempos onde a guerra das narrativas produz efeitos de massa devastadores e ressuscita ferozmente o ódio ao diferente, precisamos nos interrogar para além da verdade deliberadamente mentirosa e das meias verdades que portam as narrativas. Trata-se aqui de um campo de investigação genuíno onde o lugar da verdade está vazio. Isso implica na posição de quem busca localizar não apenas os significantes mestres que orientam um sujeito, mas aquilo que o fixa em um modo de gozo. A investigação do discurso analítico constata a ruptura, a disjunção estrutural entre S1 e S2 e dá a ela o valor contingencial, efeito de verdade.

A loucura de todos (nós) adquire sua função a partir do modo exclusivo, incompartilhável, de cada falasser responder ao que não se pode significar de sua existência. É nessa perspectiva que se pode ler a referência de Miller à locomotiva que parte sozinha como o gato de Kipling: Ao localizar o um indomesticável, pode-se ligá-lo à cadeia de significantes, mas resta o um-sozinho não dominável pelo discurso, não apreensível pelo sentido. Donde pontuamos pelo hífen o termo louco-motiva, destacando o espaço vazio entre os significantes, sem desconsiderar, da loucura de cada um, o laço possível de se estabelecer nós.

Interrogamos, por exemplo, se o que Lacan chama de a “junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”[7] não seria o acento singular que este porta, deixando explícita a loucura e a ela todos expostos em sua relação com a linguagem e o que lhe escapa. Por isso, é importante saber sobre os tons do que faz sentido para cada falasser, o que o motiva em sua neurose ou psicose.

Além disso, torna-se imprescindível dedicar-se a investigar sobre o modo de uso que cada um faz de seu corpo em sua falta a ser. É importante cernir como cada um porta seu corpo e os usos que se faz do código, da estrutura, para levar esse corpo a ocupar seu lugar no mundo, pois é disso que se trata no laço social, para além das narrativas identificatórias. O acento próprio a cada um, para além da língua que se fala, testemunha um vazio que pode ter função de causa com a qual não se identifica e a partir da qual se constitui único, singular. Isso é o que pretendemos promover nesta Jornada: o encontro de cada um com aquilo que lhe causa e lhe faz Um, para além da loucura que nos une. Que nesta louco-motiva, o discurso analítico opere para que cada um tenha seu acento preservado. Que possamos assim fazer da clínica psicanalítica e sua singularidade um paradigma vivo em nossa época.

 

Scofield, Leonardo – AP (EBP/AMP) .
Argumento da 4a Jornada da EBP – Seção Sul. 05/2023

[1] Miller, Jacques-Alain. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Trad. de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 92-93.
[2] MILLER, Jacques-Alain. Todo mundo é louco – AMP 2024. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Trad. de Vera Ribeiro. São Paulo: Edições Eolia, n. 85, dez. 2022. p. 8.
[3] Lacan, Jacques. Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes! In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Trad. de Sérgio Laia. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, p. 31.
[4] Ibid.
[5] MILLER, Jacques-Alain. Todo mundo é louco – AMP 2024. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Trad. de Vera Ribeiro. São Paulo: Edições Eolia, n. 85, dez. 2022. p. 9.
[6] Ibid.
[7] LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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