Apresentação do tema
O valor da escuta é amplamente reconhecido nos dias de hoje. Com a globalização, essa valorização pode ser encontrada “praticamente em todas as partes do mundo”. Como assinalou Jacques-Alan Miller recentemente, há uma aceitação ampla de que “escutar alguém dizer de suas desgraças, dizer do que se passa em sua vida e lhe é doloroso e escutar sem sancionar, sem punir, sem desaprovar […] faz bem, produz uma satisfação”[i].
Ao longo de sua história, a psicanálise tem enfrentado a necessidade de marcar a especificidade de sua prática e de seu discurso, como uma condição para manter-se viva e responder desde a ética que a caracteriza aos impasses atuais da civilização. Os exemplos de descaminhos não são poucos e devem nos servir de advertência.
Lacan se mostrou à altura da tarefa de manter a sega cortante da psicanálise ante a ameaça representada pela mortificação do pensamento freudiano promovida pelos que tentaram reduzi-lo a uma psicologia do ego. Quanto a nós, somos responsáveis pela sustentação dessa resposta, pela orientação lacaniana, verdadeiro nome da transferência de trabalho em nosso campo, como bem o disse Miquel Bassols no lançamento do livro Polêmica Política.
Portanto, neste contexto em que a escuta se tornou um valor em si e que identificamos – ao menos no Brasil – um recrudescimento das tentativas de banalização da psicanálise, cabe-nos a tarefa de precisar o que é a escuta analítica e no que ela se diferencia de outras formas do “escutar”. Miller destacou, por exemplo, a diferença entre a escuta analítica e a confissão, ou seja, entre o dispositivo freudiano e o dispositivo religioso, opondo-se, quanto a isso, à interpretação de Michel Foucault. Já no título de sua intervenção – A escuta com e sem interpretação – Miller já aponta uma distinção fundamental da escuta analítica: uma escuta com interpretação. No caso da clínica, poderíamos acrescentar sob transferência.
No entanto, nossa proposta é explorar essa especificidade para além da clínica, e jogar luz sobre a escuta do mal-estar atual, daquilo que se passa na cena política de nosso tempo. Não existe psicanálise alheia à polis.
Mas o que é a polis hoje? A vida política foi reconfigurada radicalmente face às novas formas de presença, de relacionamento e de organização que se tornaram parte de nossa experiência cotidiana na atualidade. Quais os efeitos dessas mudanças sobre a nossa prática? De que maneira afetam a nossa escuta? Que respostas a psicanálise e os psicanalistas oferecem ante o mal-estar contemporâneo? Quais os impasses com os quais nos deparamos?
Questões como essas orientarão nosso programa de estudos e pesquisas em 2022.
No evento já citado, Miller diz que a psicanálise está sempre à frente dos psicanalistas. Que ele próprio está sempre “correndo atrás” [dératé]. A meu ver, é uma boa forma de definir o convite que fazemos aos que escolherem trabalhar conosco este ano: vamos “correr atrás” da psicanálise orientados pelas questões que conseguimos formular até o momento e pelas outras que certamente encontraremos em nossa jornada.