JACQUES LACAN
Seminário 4
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Trad. de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
“A existência do significante não está ligada a outra coisa senão ao fato, pois isso é um fato, o discurso existe, e é introduzido no mundo sobre um fundo, mais ou menos conhecido ou desconhecido, o qual é curioso, mesmo assim, que Freud tenha sido levado pela experiência analítica a poder apenas caracterizá-lo dizendo que o significante funciona sobre o fundo de uma certa experiência da morte.” (p. 50)
“Inversamente, assim como a morte está ali refletida no fundo do significado, também o significante toma emprestado toda uma série de elementos que estão ligados a um termo profundamente envolvido no significado, a saber, o corpo. Assim como já há na natureza alguns reservatórios, também há, no significado, um certo número de elementos que são dados na experiência como acidentes do corpo, mas que são retomados no significante e lhe dão, se assim podemos dizer, suas armas primeiras. Trata-se dessas coisas inapreensíveis, e no entanto irredutíveis, dentre as quais o termo fálico, a pura e simples ereção. A pedra erigida é um de seus exemplos, a noção do corpo humano como ereto é outro. É assim que um certo número de elementos todos ligados à estrutura corporal, e não simplesmente à experiência vivida do corpo, constituem elementos primeiros, tomados de empréstimo à experiência, mas completamente transformados pelo fato de serem simbolizados.” (p. 50-51)
“O mito se apresenta, também em sua visada, com um caráter de inesgotável. Para empregar um termo antigo, digamos que ele participa do caráter de um esquema no sentido kantiano. Ele está muito mais próximo da estrutura que de todo conteúdo, e se reencontra e se reaplica, no sentido mais material da palavra, sobre todas as espécies de dados, com essa eficácia ambígua que o caracteriza. O mais adequado é dizer que a espécie de molde oferecido pela categoria mítica é um certo tipo de verdade na qual, por nos limitarmos ao que é nosso campo e nossa experiência, não podemos deixar de ver que se trata de uma relação do homem – mas com quê? […] Cabe a nós, apenas, perceber que se trata de temas da vida e da morte, da existência e da não existência, do nascimento, em especial, isto é, da aparição daquilo que ainda não existe. Trata-se, pois, de temas ligados, por um lado, à existência do próprio sujeito e aos horizontes que sua experiência lhe traz, por outro lado, ao fato de que ele é o sujeito de um sexo, do seu sexo natural. ” (p. 259)
“Tudo o que fizemos até agora se baseia num certo número de postulados – que não são postulados, em absoluto, pois se baseiam em nosso trabalho anterior de comentário, que comporta toda uma reflexão sobre a experiência analítica e sobre o que ela nos dá. Um desses postulados é o seguinte: que a neurose é uma questão formulada pelo sujeito no nível de sua própria existência. Essa questão assume, na histeria, as seguintes formas: O que é ter o sexo que eu tenho? O que quer dizer ter um sexo? O que quer dizer que eu possa, mesmo, me formular essa questão? Com efeito, devido à introdução da dimensão simbólica, o homem não é simplesmente um macho e uma fêmea, mas é-lhe necessário se situar com referência a algo de simbolizado que se chama macho e fêmea. Se a neurose se relaciona com o nível da existência, ela se relaciona a isso de maneira ainda mais dramática na neurose obsessiva, onde está em jogo não apenas a relação do sujeito com o seu sexo, mas sua relação com o próprio fato de existir.” (p. 402-403).
Seminário 9
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 9: a identificação. Trad. de Ivan Corrêa e Marcos Bagno. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.
“Graças aos cuidados que me impõe nosso seminário, não pude avançar muito, mas eu li as páginas inaugurais magistrais, por onde C. Lévi-Strauss entra na interpretação do que ele chama de pensamento selvagem, que é preciso entender como, penso, sua entrevista no Le Figaro já lhes ensinou, não como o pensamento dos selvagens, mas como, podemos dizer, o estado selvagem do pensamento, o pensamento, digamos, o pensamento enquanto ele funciona bem, eficazmente, com todas as características do pensamento, antes de tomar a forma do pensamento científico, do pensamento científico moderno, com seu estatuto. E Claude Lévi-Strauss nos mostra que é mesmo impossível colocar ali um corte tão radical, pois o pensamento que ainda não conquistou seu estatuto científico já está, de fato, apropriado a carregar certos efeitos científicos. Tal é, pelo menos, seu intuito aparente em seu início, e toma, singularmente, como exemplo, para ilustrar o que ele quer dizer do pensamento selvagem, algo onde, sem dúvida, ele entende reunir isso de comum que haveria com o pensamento, digamos tal como ele o sublinha, tal como ele trouxe frutos fundamentais, a partir do próprio momento em que não se pode absolutamente qualificar de a-histórico, diante do que ele afirmava, o pensamento a partir da era neolítica que ainda dá, diz ele, todos os seus fundamentos à nossa posição no mundo. Para ilustrá-lo, digamos assim, ainda funcionando ao nosso alcance, ele não encontra outra coisa e nada de melhor senão exemplificá-lo sob uma forma, sem dúvida, não única, mas privilegiada por sua demonstração, sob a forma do que ele chama de bricolagem.” (p. 368)
Seminário 16
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
“É somente na medida do fora-de-sentido dos ditos – e não do sentido, como se costuma imaginar e como supõe toda a fenomenologia – que existo como pensamento. Meu pensamento não é regulável a meu bel-prazer, acrescentamos ou não o infelizmente. Ele é regulado. Em meu ato, não almejo exprimi-lo, mas causá-lo. Porém não se trata do ato, e sim do discurso. No discurso, não tenho que seguir sua regra, e sim que encontrar sua causa. No entre-senso – entendam isso, por mais obsceno que possam imaginá-lo – está o ser do pensamento. O que é causa, ao passar pelo meu pensamento, deixa passar aquilo que existiu, pura e simplesmente, como ser. Isso porquê, ali por onde ela passou, ela já é desde sempre passada, produzindo efeitos de pensamento.” (p. 13)
“Um sujeito é aquilo que pode ser representado por um significante para outro significante. Não será isso calcado no fato de que, no que Marx decifrou, isto é, a realidade econômica, o sujeito do valor de troca é representado perante o valor de uso? É nessa brecha que se produz e cai a mais-valia. Em nosso nível, só importa essa perda. Já não idêntico a si mesmo, daí por diante, o sujeito não goza mais. Perde-se alguma coisa que se chama o mais-de-gozar. Ele é estritamente correlato à entrada em jogo do que determina, a partir de então, tudo o que acontece com o pensamento.” (p. 21)
“Que é o Outro? É o campo da verdade que defini como sendo o lugar em que o discurso do sujeito ganharia consistência, e onde ele se coloca para se oferecer a ser ou não refutado. Surgiu para Descartes o problema de saber se existia ou não um Deus que garantisse esse campo. Ora, esse problema está hoje totalmente deslocado por não haver no campo do Outro a possibilidade de uma consistência completa do discurso.” (p. 24)
“Nesse nível, o que pode, no Outro, responder ao sujeito? Nada senão aquilo que produz sua consistência e sua ingênua confiança em que ele é como eu. Trata-se, em outras palavras, do que é seu verdadeiro esteio – sua fabricação como objeto a. Não há nada diante do sujeito senão ele, o um-a-mais entre tantos outros, e que de modo algum pode responder ao grito da verdade, mas que é, muito precisamente, seu equivalente – o não-gozo, a miséria, o desamparo e a solidão. Tal é a contrapartida do a, desse mais-de-gozar que constituiu a coerência do sujeito enquanto eu.” (p. 24-25)
“Vocês me permitirão voltar aqui, por um instante, ao Eu é da última vez, visto que, de uma cabeça nada ruim, aliás, vi chegar a objeção de que, ao traduzi-lo dessa maneira, eu estaria reabrindo a porta, digamos, ao menos para uma referência ao ser. O é como ente [étant], segundo a terminologia da tradição, que suspende o ser [être], foi, ao menos por um ouvido, entendido como um apelo ao ser. Estaria eu enunciando, com isso, o ser supremo que a tradição edifica para responder por todos os entes [étants] que subsistem na natureza, no sentido mais original, numa ordem qualquer da natureza? Será que meu Eu é designaria esse ser em torno do qual tudo se modifica, tudo gira, e que assim ocupa o lugar de eixo do universo, o do x graças ao qual existe um universo? Pois bem, absolutamente não. Nada está mais longe da intenção da tradução que formulei. Enunciamos no Eu do Eu é o que constitui propriamente o fundo da verdade, na medida em que ela somente fala. Para torná-la inteligível, posso retomar essa tradução em Eu sou aquilo que é o Eu. Digamos que, nessa formulação, o é se lê melhor.” (p. 78-79)
“Há uma coisa, ao contrário, que está inteiramente clara, e é por aí que começarei da próxima vez: é que não se trata rigorosamente de nada além, justamente, do Eu. Há quem passe o tempo a se perguntar se Deus existe, como se isso fosse sequer uma pergunta. Deus é, quanto a isso não há nenhuma espécie de dúvida, e isso não prova em absoluto que ele exista. A pergunta não se coloca. Mas é preciso saber se Eu existe. Será que Eu existe? Creio poder fazê-los perceber que é em torno dessa incerteza que gira a aposta de Pascal.” (p. 101)
“A verdadeira dicotomia não é entre Deus existe ou Deus não existe. Queira Pascal ou não, o problema passa a ser de natureza totalmente diferente a partir do momento em que ele afirma que não é que não saibamos se Deus existe, mas nem sabemos se Deus é nem o que ele é. Como perceberam e articularam perfeitamente os seus contemporâneos, a questão concernente a Deus será, portanto, uma questão de fato, o que significa uma questão de discurso, se vocês se reportarem à definição que dei do fato, ao lhes dizer que só existe fato quando enunciado. É por isso que, no que diz respeito a Deus, ficamos inteiramente entregues à tradição do Livro. Mas o que está verdadeiramente em jogo na aposta de Pascal é uma outra questão, aquela que já lhes enunciei no fim de meu discurso anterior – será que Eu existe ou Eu não existe?” (p. 117)
“Teremos de avaliar, em nossos passos seguintes, além dessa a-causa, o que resulta de uma escolha entre o Eu e o a. Dizer Eu existe tem toda uma série de consequências, perfeita e imediatamente formalizáveis, cujo cálculo eu lhes farei da próxima vez. Inversamente, o próprio fato de poder calculá-lo assim mostra que a outra posição, aquela que aposta na investigação do que acontece com um Eu que talvez não exista, vai no sentido da a-causa, ou seja, no sentido daquilo a que procede Pascal quando exorta seu interlocutor a renunciar a isso. Para nós, é aí que adquire sentido a direção de uma busca que, no tocante à psicanálise, é expressamente a nossa.” (p. 117-118)
Seminário 19
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19: …ou pior. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
“E o que pode nos interessar com respeito a esse existe, em matéria de significante? Seria que existe pelo menos um para quem isso não funciona, essa história de castração. Foi justamente por isso que ela foi inventada. É o chamado Pai, e é por isso que o Pai existe pelo menos tanto quanto Deus, ou seja, não muito.” (p. 35)
“A inexistência só constitui problema por já ter, certamente, uma resposta dupla, do gozo e da verdade, porém ela já inexiste. Não é através do gozo nem da verdade que a inexistência adquire um estatuto, que ela pode inexistir, isto é, chegar ao símbolo que a designa como inexistência, não no sentido de não ter existência, mas de só ser existência a partir do símbolo que a faz inexistente, e que, ele sim, existe. Como vocês sabem, ele é um número, geralmente designado por zero. O que bem mostra que a inexistência não é o que se poderia crer, o nada [néant], pois o que poderia sair dele? […] A inexistência não é o nada.” (p. 50)
“Eu gostaria, antes de deixá-los, de introduzir uma coisa. Trata-se, aqui, de explorar o que chamei de uma nova lógica. Esta deve ser construída a partir daquilo que não é – ou seja, a partir disto que deve ser formulado em primeiro lugar: nada do que acontece em decorrência da instância da linguagem pode desembocar, de modo algum, na formulação satisfatória da relação.” (p. 20)
“[…] Não basta negar o não-todo para que, de cada um dos dois pedaços, se me posso exprimir desta maneira, seja afirmada a existência. É claro que, se a existência é afirmada, produz-se o não-todo. É em torno desse existe que deve girar nosso avanço.” (p. 21)
“E o que pode nos interessar com respeito a esse existe, em matéria de significante? Seria que existe pelo menos um para quem isso não funciona, essa história de castração. Foi justamente por isso que ela foi inventada. É o chamado Pai, e é por isso que o Pai existe pelo menos tanto quanto Deus, ou seja, não muito.” (p. 35)
“Por si só, já é extraordinário que o enunciado desse mito não pareça ridículo, ou seja, a história do homem original que usufruiria precisamente daquilo que não existe, isto é, de todas as mulheres, o que não é possível, não simplesmente por estar claro que temos nossos limites, mas porque não existe um todo das mulheres.” (p. 44)
“Como lhes disse, o não existe afirma-se por um dito, por um dito do homem, pelo dito do impossível, ou seja, que é do real que a mulher tira sua relação com a castração.” (p. 45)
“Na medida em que o inconsciente existe, vocês realizam a todo instante a demonstração na qual se baseia a inexistência como preliminar do necessário. É a inexistência que está no princípio do sintoma.” (p. 49)
“[…] é a inexistência do gozo que o chamado automatismo de repetição faz vir à luz, pela insistência desse marcar passo na porta que se designa como saída para a existência. Só que, para além dela, o que os espera não é, em absoluto, o que se chama uma existência: é o gozo, tal como funciona como necessidade de discurso, e ele só funciona, como vocês estão vendo, como inexistência.” (p. 50)
“A inexistência só constitui problema por já ter, certamente, uma resposta dupla, do gozo e da verdade, porém ela já inexiste. Não é através do gozo nem da verdade que a inexistência adquire um estatuto, que ela pode inexistir, isto é, chegar ao símbolo que a designa como inexistência, não no sentido de não ter existência, mas de só ser existência a partir do símbolo que a faz inexistente, e que, ele sim, existe. Como vocês sabem, ele é um número, geralmente designado por zero. O que bem mostra que a inexistência não é o que se poderia crer, o nada [néant], pois o que poderia sair dele? […] A inexistência não é o nada.” (p. 50)
“De qualquer modo, essa conquista nos é preciosa, na medida em que nos dá o 1 como sendo, essencialmente – ouçam bem o que digo – o significante da inexistência.” (p. 56)
“Aquilo que é importante distinguir na gênese do 1, ou seja, precisamente a distinção do não há diferença entre todos esses 0, a partir da gênese daquilo que se repete, mas se repete como inexistente. Portanto, Frege não explica a sequência dos números inteiros, mas a possibilidade da repetição. A repetição se coloca inicialmente como repetição do 1, como 1 da inexistência.” (p. 58-59)
“De um lado, do lado masculino, há um x que pode se sustentar num além da função fálica, e do outro lado, ele não existe, pela simples razão de que uma mulher não poderia ser castrada, pelas melhores razões. Esse é o nível do que justamente nos é barrado na relação sexual.” (p. 100)
“Ou seja, no nível em que a disjunção teria chance de se produzir, encontramos, de um lado, somente um, ou, pelo menos, ao menos um, e do outro, a inexistência, isto é, a relação de um com zero.” (p. 101)
“Sem dúvida, o ser falante é alguma coisa, talvez sim. O que é o que ele não é? Acontece que esse ser é absolutamente inapreensível. E é ainda mais inapreensível por ser forçado a passar pelo símbolo para se sustentar. Um ser, quando vem a ser apenas pelo símbolo, é justamente um ser sem ser. Pelo simples fato de falarem, vocês todos participam desse ser sem ser. Em contrapartida, o que se sustenta é a existência, na medida em que existir não é ser, é depender do Outro.” (p. 103)
“É que ele comporta um protesto que se constata que consolida o discurso do mestre/senhor, complementando-o, e não apenas pela mais-valia, porém incitando – sinto que isto vai provocar umas reações fortes – a mulher a existir como igual. Igual a quê? Ninguém sabe. Também podemos muito bem dizer que homem = zero, já que ele precisa da existência de algo que o negue para existir como todos.” (p. 115)
“O que só existe ao não ser: é exatamente disso que se trata, e foi o que eu quis inaugurar hoje no capítulo geral do Uniano.” (p. 131)
“É por isso que a existência, desde sua emergência primeira, enuncia-se prontamente por sua inexistência correlativa. Não há existência senão contra um fundo de inexistência e, inversamente, ex-sistere é extrair a própria sustentação somente de um exterior que não existe.” (p. 131)
“Até aqui, nada faz ainda a articulação do Há-um como tal com o ao menos um que é formulado pela notação E invertido x – existe um x, ao menos um, que dá ao que se postula como função um valor qualificável como verdadeiro. Coloca-se uma distância entre a existência no sentido lógico e a existência natural, se assim podemos dizer […]” (p. 135)
“A análise nos conduz a formular esta função, Φx, sobre a qual a questão é saber se existe um x que satisfaça. Isso presume articular o que pode ser a existência. É quase certo que, historicamente, a ideia de existência só tenha surgido com a intromissão do real matemático como tal.” (p. 173)
“Isto já deve ser sabido por muitos: Há-um não quer dizer que existe o indivíduo. É por isso mesmo que lhes peço para enraizarem esse Há-um no lugar de onde ele vem. Ou seja, não há outra existência do Um a não ser a existência matemática. Há um argumento que satisfaz uma fórmula, e um argumento completamente esvaziado de sentido: é simplesmente o Um como Um.” (p. 180-181)
“Em torno desse Um gira a questão da existência. Já fiz algumas observações a esse respeito, quais sejam, que a existência nunca foi abordada como tal, antes de uma certa era, e que se investiu muito tempo na extração da essência. Falei do fato de não haver em grego nada corrente que queira dizer existir, não que eu ignorasse o ex-istemi, ex-istano, mas por constatar que nenhum filósofo jamais se servira dele. No entanto, é aí que começa algo que pode nos interessar – trata-se de saber o que existe. Existe apenas o Um.” (p. 192)
“É claro que foi somente a partir de uma certa reflexão sobre a matemática que a existência adquiriu sentido.” (p. 194)
“Vocês já podem ver que a questão da existência está ligada a um dizer, um dizer não. Eu até diria mais, um dizer que não. Isto é capital, e nos indica a que ponto se deve tomar, na nossa formação de analistas, o que é enunciado pela teoria dos conjuntos – há pelo menos um que diz não.” (p. 194)
“A mulher não é o lugar do Outro. Mais ainda, inscreve-se como não sendo o Outro na função que dou ao grande A, a função de lugar da verdade. Eu havia traduzido a existência do dizer que não pela função do conjunto vazio. Do mesmo modo, traduzirei a inexistência do que poderia negar a função fálica pelo fato, eu diria, de se ausentar. A mulher é um centro gozoso [jouis-centre] conjugado com o que não chamarei de uma ausência, mas de uma dessência [dé-sence].” (p. 198)
“Entre o existe, ∃x.Φx/, e o não existe, ∃x/.Φx/, não há como se enrolar: a hiância é a existência. Entre o existe um que é, ∃x.Φx/, e o não há um que não seja, ∀x.Φx, existe a contradição.” (p. 199)
“Existe um que diz que não. Isso não é de modo algum o mesmo que negar, mas, a partir dessa cunhagem do termo uniar como um verbo conjugável, poderíamos dizer que, no que tange à função representada na análise pelo mito do Pai, ele unia.” (p. 205)
Seminário 20
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
“[…] o discurso analítico só se sustenta pelo enunciado de que não há, de que é impossível colocar-se a relação sexual. É nisto que se escoram os avanços do discurso analítico, e é por isso aí que ele determina o que é realmente do estatuto de todos os outros discursos.” (p. 16)
“Com efeito, a lógica, a coerência inscrita no fato de existir a linguagem e de que ela está fora dos corpos que por ele são agitados, em suma, o Outro que se encarna, se assim se pode dizer, como ser sexuado, exige esse uma a uma. E é aí que está o estranho, o fascinante, é o caso de se dizer – essa exigência do Um, como já o Parmênides nos podia fazer prever, é do Outro que ela sai. Onde está o ser, há exigência de infinitude.” (p. 17)
“O que diz respeito ao ser está estreitamente amarrado a essa seção do predicado. Daí nada poder ser dito senão por contornos em impasse, demonstrações de impossibilidade lógica, onde nenhum predicado basta. O que diz respeito ao ser, ao ser que se colocaria como absoluto, não é jamais senão a fratura, a rachadura, a interrupção da fórmula ser sexuado, no que o ser sexuado está interessado no gozo.” (p. 18)
“O significante é a causa do gozo. Sem o significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material? Por mais desmanchado, por mais confuso que isto seja, é uma parte que, do corpo, é significada nesse depósito.” (p. 30)
“O Outro deve, por um lado, ser novamente martelado, espedaçado, para que tome seu pleno sentido, sua ressonância completa. Por outro lado, convém colocá-lo como termo que se baseia no fato de que sou eu que falo, que só posso falar de onde estou, identificado a um puro significante. O homem, uma mulher, eu disse da última vez, não são nada mais que significantes. É daí, do que dizer enquanto encarnação distinta do sexo, que eles recebem sua função. O Outro, na minha linguagem, só pode ser portanto o Outro sexo.” (p. 45)
“É do ser que partimos, do ser enquanto concebido […] como o é-terno […] Quando a idéia do ser – até então só aproximada, roçada – vem a culminar nesse seu violento arrancamento da função do tempo pelo enunciado do eterno, disso resultam estranhas consequências. […] o ser que, eterno o é por si mesmo, o ser que, eterno, não o é por si mesmo, o ser que, não eterno, não tem esse ser frágil, se não inexistente, não o tem por si mesmo. Mas o ser não eterno que é por si mesmo, não existe. […] Não estará aí o de que se trata no que concerne ao significante? Isto é, que nenhum significante se produz como eterno. […] O significante repudia a categoria de eterno e, no entanto, singularmente, ele é por si mesmo.” (p. 46)
“[…] não será verdadeiro que a linguagem nos impõe o ser e nos obriga como tal a admitir que, do ser, jamais temos nada? Ao que temos que nos romper, é a substituir esse ser que fugiria pelo para-esser, digamos, o para-ser, o ser na lateral.” (p. 50)
“É mesmo em relação ao para-esser que devemos articular o que vem em suplência à relação sexual enquanto inexistente. É claro que, em tudo que disto se aproxima, a linguagem só faz manifestar sua insuficiência.” (p. 51)
“[…] se trata de tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por ausência da única parte do real que não pode vir a se formar em ser, isto é, a relação sexual – qual é o suporte que podemos encontrar ao não lermos senão letras?” (p. 54)
“Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo como as linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que se fratura.” (p. 61)
“A realidade é abordada com os aparelhos do gozo. Aí está mais uma fórmula que lhes proponho, se é que podemos convir que, aparelho, não há outro senão a linguagem. É assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado.” (p. 61)
“[…] não há linguagem do ser. Mas haverá o ser? Como fiz notar da última vez, o que digo é que não há. O ser é, como se diz, e o não-ser não é. Há ou não há. Esse ser, não se faz senão supô-lo a algumas palavras – indivíduo, por exemplo, ou substância. Para mim, é apenas um fato de dito.” (p. 126)
“A formalização matemática, é a escrita, mas que só subsiste se eu emprego, para apresentá-la, a língua que uso. Aí é que está a objeção – nenhuma formalização da língua é transmissível sem uso da própria língua. É por meu dizer que essa formalização, ideal metalinguagem, eu a faço ex-sistir. É assim que o simbólico não se confunde, longe disso, com o ser, mas ele subsiste como ex-sistência do dizer. É o que sublinhei, no texto dito l’Étourdit, o Aturdito, ao dizer que o simbólico só suporta a ex-sistência.” (p. 127)
“[…] eu falo sem saber. Falo com o meu corpo, e isto, sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei. É aí que chego ao sentido da palavra sujeito no discurso analítico. O que fala sem saber me faz eu, sujeito do verbo. Isto não basta para me fazer ser. Isto não tem nada a ver com o que sou forçado a pôr dentro do ser – suficiente saber para se aguentar, mas nem uma gota a mais.” (p. 127)
“Eu, não é um ser, é um suposto a quem fala. Quem fala só tem a ver com a solidão, no que diz respeito à relação que só posso definir dizendo, como fiz, que ela não se pode escrever. Essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever, mas ela é mesmo o que se escreve por excelência, pois ela é o que, de uma ruptura do ser, deixa traço.” (p. 128)
“É nisto que o nó borromeano é a melhor metáfora do seguinte: que nós só procedemos do Um.” (p. 137)
“O inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante. Este ser dá oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da alíngua, pelo seguinte, que ele apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos. Esses afetos são o que resulta da presença de alíngua no que, de saber, ela articula coisas que vão muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber enunciado. A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elocubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua.” (p. 149)
“O corpo, o que é ele então? É ou não é o saber do um? O saber do um se revela não vir do corpo. O saber do um, por pouco que possamos dizer disto, vem do significante Um. O significante Um, será que ele vem de o significante como tal não ser jamais senão um-entre-outros, referido a esses outros, não sendo senão a diferença para com os outros?” (p. 153)
“O é que quer dizer Há Um? Um-entre-outros, e se trata de saber se é qualquer um, se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame significante, um enxame que zumbe. Esse um, S1, de cada significante, se eu coloco a questão é deles, dois, dos, que eu falo?, eu a escreverei primeiro por sua relação com S2. E vocês podem pôr quantos quiserem. É o enxame de que falo. […] S1, esse um, o enxame, significante-mestre, é o que garante a unidade, a unidade de copulação do sujeito com o saber. É na alíngua, e não alhures, no que ela é interrogada como linguagem, que se destaca a existência daquilo que uma linguística primitiva designou com o termo υτοιχϵϊον, elemento, e isto não é por nada. O significante Um não é um significante qualquer. Ele é a ordem significante, no que ela se instaura pelo envolvimento pelo qual toda cadeia subsiste.” (p. 154)
“O Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento. É o de que se trata no que chamo significante-mestre.” (p. 154)
OUTROS ESCRITOS
LACAN, Jacques. Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
“O S.K.belo é aquilo que é condicionado no homem pelo fato de que ele vive do ser (= esvazia o ser) enquanto tem… seu corpo: só o tem, aliás, a partir disso. Daí minha expressão falasser [parlêtre] que virá substituir o ICS de Freud (inconsciente, é assim que se lê): saia daí então, que eu quero ficar aí. Para dizer que o inconsciente, em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário), o inconsciente é um saber enquanto falado, como constitutivo do UOM. A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido. E o sentido do ser é presidir o ter, o que justifica o balbucio epistêmico.” (p. 561)
LACAN, Jacques. O Aturdito. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
“Assim é que o dito não vai sem o dizer. Mas, se o dito sempre se coloca como verdade, nem que seja nunca ultrapassando um meio-dito (como me expresso eu), o dizer só se emparelha com ele por lhe ex-sitir, isto é, por não ser da diz-mensão [dit-mension] da verdade.” (p. 451)
“Se recorri este ano ao primeiro, ou seja, à teoria dos conjuntos, foi para nela situar a maravilhosa eflorescência que – por isolar na lógica o incompleto do inconsistente, o indemonstrável do refutável, ou até acrescentar-Ihe o indecidível, por não conseguir excluir-se da demonstrabilidade – imprensa-nos tanto na parede do impossível, que se emite o ‘não é isso’, que é o vagido do apelo ao real.” (p. 451-452)
“Metaforizarei, por ora, pelo incesto, a relação que a verdade mantém com o real. O dizer vem de onde ele a comanda.” (p. 453)
“Dizer o que há, durante muito tempo, alçou seu homem a essa profissão que já não obceca vocês senão por seu vazio: a do médico, que, em todas as eras e por toda a superfície do globo, pronuncia-se sobre o que há. Mas isto a partir do que o que há só tem interesse por ter que ser conjurado.” (p. 453)
“O dizer de Freud infere-se da lógica que toma como fonte o dito do inconsciente. É na medida em que Freud descobriu esse dito que ele ex-siste. Restituir esse dizer é necessário, para o discurso se constituir da análise (é nisso que ajudo), a partir da experiência em que confirma-se a existência dele.” (p. 453-454)
“Naoha [nia] só contribui com o justo necessário de homofonia para marcar em francês, pelo passado que significa em qualquer presente cuja existência aí se conote, que naoha [nya] o traço. Mas de que se trata? Da relação do homem e da mulher, justamente no que eles seriam adequados, por habitarem a linguagem, para fazer dessa relação um enunciado. Será a ausência dessa relação que os exila em estabitat [stabitat]? Será forabitalo [d’labiter] que essa relação só pode ser interdita? Essa não é a pergunta mas antes, a resposta; e a resposta que a sustenta – por ser o que a estimula a se repetir – é o real.“ (p. 454)
“A vida reproduz, sem dúvida, sabe Deus o que e porquê. Mas a resposta só questiona ali onde não há relação para sustentar a reprodução da vida. Exceto no que o inconsciente formula: ‘Como se reproduz o homem?’, é o caso aqui. ‘- Reproduzindo a pergunta’, eis a resposta. Ou ‘para te fazer falar’, dito de outra forma que o inconsciente tem, por ex-sistir.” (p. 455)
JACQUES-ALAIN MILLER
MILLER, Jacques-Alain. El Ultimíssimo Lacan. Trad. de Stéphane Verley. Buenos Aires: Paidós, 2014.
“[…] lo simbólico es una condición de existencia. A partir de entonces, aquello que no está inscripto en lo simbólico no existe, o mejor dicho inexiste. Lacan dice más abajo, aún en la página 132 del Seminario, que ‘lo real está en suspenso’ en suspenso de existencia. La simbolización es una condición de existencia. Una condición para que algo llegue a ser para el sujeto.” (p. 33)
MILLER, Jacques-Alain. A invenção psicótica. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo: Edições Eolia, núm. 36, maio 2003.
“O termo invenção se opõe naturalmente ao termo criação. A característica própria da criação é – sejamos tautológicos – seu caráter criacionista. A criação enfatiza a criação ex-nihilo, a partir do nada. É o viés teológico da palavra criação. Há certamente uma zona semântica comum entre invenção e criação. A invenção se opõe habitualmente à descoberta. Descobre-se o que já está lá, inventa-se o que não está. Por isso a invenção tem parentesco com a criação. Porém, o sentido do termo ‘invenção’ é, nesse caso, o de uma invenção a partir de materiais existentes. Eu atribuiria de boa vontade à invenção o valor de bricolagem.” (p. 6)
MILLER, Jacques-Alain. O Ser e o Um. Trad. de Vera Avellar Ribeiro. Aula VII, 16 mar. 2011. Inédito
“No fundo, haverá final de análise quando o desejo ‘vira’ para o saber [le désir passe au savoir]. Aqui Lacan situou o momento de concluir de uma análise. E, assim como em seu Seminário ele continuou a se expressar depois do momento de concluir, ele constatou, tal como na experiência que realizamos há quarenta anos desde que ele inventou o passe, haver um mais-além, um mais-além da conversão do desejo em saber, um mais-além do qual eu diria que ele não é modificado por essa metamorfose. Trata-se do ser de gozo que Lacan destacou com o nome de sinthoma. O ser do desejo se deixa converter em ser do saber. A fantasia é suscetível de revelar, atravessar a causa de desejo. O ser do gozo, porém, permanece rebelde para com o saber. E a questão que Lacan nos deixou é a da relação entre o gozo e o sentido. O que ele chamou de passe era a resolução da conversão do desejo em saber. O mais difícil, se assim posso dizer, é a relação entre o gozo e o sentido, que não se presta a uma travessia.”
“Ocorreu a nosso mestre, Lacan, para a perplexidade de seus alunos, denunciar que o Outro não existe. Insurreição! Foi de fato lhes puxar o tapete sob os pés, quando o lugar do Outro pertence – sempre, mas já pertencia – ao bê a bá do que se cristalizou como o lacanismo. Aliás, essa cristalização se impôs de tal forma que o dito o Outro não existe passou amplamente por perdas e ganhos, apesar dos esforços que meu amigo Éric Laurent e eu próprio fizemos, tomando esse dito como título de um curso que demos juntos: o Outro que não existe e seus comitês de ética, no qual enfatizávamos uma das consequências da inexistência do Outro. Mas o que não foi percebido, o que não foi dito é o que direi, a saber: o Outro que não existe quer dizer exatamente o Um existe. O Outro que não existe é uma outra maneira de dizer o que Lacan lançou como uma jaculação: Yad’l’Un (há o Um), que assim transcrevi no Seminário a ser em breve publicado. Isso foi notado? Não exatamente. Tenho, pelo menos, a admissão, reticente, é claro, de Agnès Aflalo. Qual é esse Um que existe quando o Outro não existe? É o Um do significante. O Outro que não existe não quer dizer que o Outro não é – e.s.t (é) e não hait[i] (odeia), este é o Outro malvado, ele pode ser -, mas, como tal, ele não é de modo algum subtraído ao ser. Ao contrário, não se compreende nada desse conceito maravilhoso de grande Outro, forjado por Lacan, se não apreendermos que esse Outro se inscreve no nível do ser, que se deve distinguir do nível da existência. Impossível se achar nisso sem distinguir ser existência.” (p. 64)
[i]4 N.T.: Miller joga com a homofonia entre est (é) e hait do verbo hair (odiar).
“A existência, de Lacan, é o que resulta daquilo que a lógica seleciona entre os semblantes dos seres de linguagem para nele reconhecer o real. A existência lacaniana depende, se depreende de uma operação significante. Se procurarmos aonde incide o divisor de águas é, de fato, sobre este termo utilizado por mim : ser pré-discursivo. A existência surge da linguagem trabalhando a linguagem. Ela supõe o aparelho lógico se apoderando do dito a fim de agarrá-lo, cingi-lo, comprimi-lo, ordená-lo, para fazer surgir o real da linguagem. Esse real – que está no nível, dizia eu, da existência – é o significante.” (p. 66-67)
“A existência não nos faz sair da linguagem. Só que, para ter acesso a ela, é preciso tomar a linguagem em um outro nível que não o do ser. É preciso tomá-la – esta é a lição de Lacan – no nível da escrita. Trata-se do seguinte: na linguagem, o escrito pode se autonomizar. E, em particular, o escrito funciona como autônomo na matemática, o que não impede que se precise falar em torno, dar sentido a fim de introduzir essa escrita. Contudo, essa escrita aparece na linguagem como um grupo étnico isolado.” (p. 76)
“O que evoco é outra coisa, é a escrita que chamarei de existência, uma escrita que não é a da fala. Nesse sentido, podemos chamá-la de escrita pura, manejo da letra, do rastro. Pois não se trata de pensar que só há letras do alfabeto. Os números, nesse sentido, são letras também. Aqui, o significante opera cortado da significação. É nesse nível que podemos apreender uma existência sem mundo. É a escrita com a qual se sustenta o discurso científico, pelo menos em sua parte matemática. E a ciência arruína o mundo. Quero dizer que no nível do discurso científico, o mundo no qual se agita o Dasein, o mundo que acreditamos conhecer, o mundo com o qual co-nascemos (on co-naît)[1]– quer dizer, nascemos ao mesmo tempo que ele – se decompõe.” (p. 77)
[1] N.T.: J.-A. Miller se vale, aqui, da homofonia entre connaître (conhecer) e co-naître (nascer com)
“A isso se deve acrescentar a diferença segundo a qual, para nós, não há muro da linguagem, mas apenas se chegarmos a conceber que a escrita atinge e constitui a existência. Dito de outro modo, há uma conjunção entre o par-être e a fala que chega ao seu auge quando nos expressamos nos termos de ser falante (l’être parlant), assim como há uma conjunção essencial entre a existência e a escrita, escrita que eu disse primeira” (p. 78)
“Nesse sentido, a transferência analítica é feita do mesmo tecido que esse amor, o amor verdadeiro, no que a verdade pode valer. Ele é feito do mesmo tecido, quer dizer, de um tecido para-ser (par-être) O amor não lhes dá acesso à existência, só lhes dá acesso ao ser. Por essa razão, imaginamos que o ser eterno exige nosso amor, isso faz desconfiar que, talvez, se o amarmos um pouco menos, ele seria um pouco menos eterno.” (p. 79)
“O Um do amor é completamente diferente do Um da existência. O Um das existência está ligado a um efeito de escrita e não a um efeito de significação. Esse é o valor da indicação dada por Lacan quando formula ser no próprio jogo da escrita que devemos encontrar o ponto de orientação de nossa prática. Isso quer dizer primeiro que, na escuta, o que conta é a leitura e ele visa a escrita primária, não a escrita anotando a fala. Essa escrita primária que da vez passada tentei inscrever como o Um em algarismo romano, ao qual acrescentei esse aro suposto indicar uma falta, a falta dessa primeira marca, sobre o qual lhes disse que ele valia como o conjunto vazio da teoria.” (p. 79)
“A universalidade como tal se sustenta no nível do ser. É a universalidade de uma definição que não garante de modo algum que uma existência responda a ela. A existência é de um outro registro que não o do universal.” (p. 98)
“No nível universal, o do para todo x – para dizê-lo nos termos da lógica da quantificação -, obtemos por certo uma verdade universal, mas ela não é operante por não garantir nenhuma existência. No nível do universal, sem dúvida se pode estabelecer o ser do pai, mas a existência de um pai funcionando como tal é outra coisa, ela está no nível da singularidade. É essa singularidade que merece ser qualificada de perversa uma vez que ela desmente, recusa toda norma, todo standard, todo para todo x. Aqui, convém regular-se pela diferença entre o ser e a existência. O ser está no nível do universal que, como tal, é indiferente à existência: uma definição é válida mesmo se nenhum ser vier se inscrever nessa definição. Foi o que a lógica chamada de moderna destacou em relação a Aristóteles. Lacan conectou-se a ela pelo fato de ela responder ao que a experiência lhe indicava. A existência está no nível da singularidade.” (p. 99)
“Isso tem consequências para a escuta, como se diz, do analista. Há uma escuta no nível da dialética, ela se junta e acompanha as variações da ontologia do discurso do paciente, daquilo que toma sentido para ele. Depois, esse sentido desbota, enfraquece, desvanece. De um modo geral, essa ontologia se dirige para o des-ser com os efeitos que se seguem e que são, a um só tempo, efeitos de depressão por só se haver desejado vento, mas também de entusiasmo por se ter liberado do que pesava sobre sua vida libidinal. Claro, o analista pode, então, precipitar essa interpretação por meio de intervenções que a favoreçam e que são sempre interpretações de des-ser. Mas há uma segunda escuta, a da iteração, que se dirige para a existência. Entre essas duas escutas o analista circula por haver ali duas dimensões só rejuntadas por um hiato.” (p. 101)
“Há uma dimensão, como diz Lacan em seu penúltimo escrito, Joyce o sinthoma, onde o sujeito vive do ser (vit de l’être), e Lacan o equivoca com esvazia o ser (vide l’être). Ele vive do ser e, ao mesmo tempo, o esvazia, ele é prometido ao esvaziamento e nós o acompanhamos nisso. Mas há uma outra dimensão, aquela na qual – como dizê-lo ? – ele tem um corpo. É preciso passar pela diferença entre o ser e a existência para dar o valor à diferença entre o ser e o ter. Ter um corpo está do lado da existência. É um ter que só se marca a partir do vazio do sujeito. Por isso, quando Lacan abandonou o termo sujeito, essencialmente o de sujeito da fala, ele forjou o de falasser. Ele fez emanar a raiz do que ele chamava de sujeito como falta-a-ser, valeu-se do termo falasser para enfatizar que esse sujeito só tem seu ser pelo fato da fala. Mas isso só pode ser formulado como tal – pelo menos foi o que ele deixou implicado – a partir do corpo, de seu tem um corpo.” (p. 101-102)
MILLER, Jacques-Alain; LAURENT, Éric. El Otro que no existe y sus comités de ética. Trad. de Nora A. González. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2013.
“Las mujeres son más sensibles al significante del Otro que no existe y sus intereses sociales son más débiles cuando se trata del ideal, con el cual tienen menos relación que el hombre. Las mujeres tienen una relación muy particular con el significante del Otro que no existe, que es un modo de inscripción en el Otro de lo que queda cuando no hay ideal, que las hace quizá más sensibles al estado actual del Otro.” (p. 108)
“La estructura ficcional del Otro está patente también en la invención de Lacan del sujeto supuesto saber – que es exactamente el Otro en tanto estructura de ficción – y en la reducción de La/ mujer a dicha estructura, que ilustró Éric Laurent. En otras palabras, lo que está en juego en la inexistencia del Otro es su reducción al semblante. El Otro, del que decimos que no existe (se habla tanto más de él cuanto que no existe), no es del orden de lo real.” (p. 115)
“De allí además, en un segundo tiempo, el valor de plantear el A/, que se refiere especialmente a este segundo Otro y que Lacan vuelve equivalente a un significante, S(A/), que ya escribió en el pizarrón Éric Laurent y que significa que el Otro no existe. Solo existe su significante, al que Lacan casi exclusivamente atribuye la ex-sistencia.” (p. 119)
“El síntoma es una mentira sobre lo real, especialmente sobre ese que sostiene que la relación sexual no existe. De modo que la relación con el Otro no existe, y por eso en el lugar de este Otro ponemos el síntoma. Sobre todo, ponemos el síntoma en el lugar del otro sexo: el hombre para la mujer es un síntoma y a veces también esta lo es para el hombre.” (p. 124)
OUTROS AUTORES DO CAMPO FREUDIANO
ÉRIC LAURENT
LAURENT, Éric. O Outro que não existe e seus comitês científicos. In: Correio Express Extra, núm. 6, mar. 2020.
“É a partir da inexistência do Outro que garantiria o real da ciência que surge um outro real para o sujeito que vive na linguagem. É esse real da angústia, da esperança, do amor, do ódio, da loucura e da debilidade mental. Todos esses afetos e paixões estarão no encontro marcado da nossa confrontação com o vírus; eles acompanham, como suas sombras, as “provas” científicas. Como muito bem sublinhara Jacques-Alain Miller: “A inexistência do Outro não é antinômica ao real, ela lhe é, ao contrário, correlativa. […] É […] o real próprio do inconsciente, ao menos esse do qual, segundo a expressão de Lacan, o inconsciente testemunha, […] o real quando ele se revela na clínica como o impossível de suportar.”
NIEVES SORIA
SORIA, Nieves. La inexistencia del Nombre del Padre. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Bucle, 2020.
“Se partirá de la distinción, presente en la enseñanza de Lacan, entre la existencia y la inexistencia de un significante. Toda la conceptualización lacaniana acerca del Nombre del Padre supone su existencia, ya que es en tanto este significante existe que es posible su admisión simbólica o su forclusión. Prueba de ello es que, de ser forcluido de la cadena significante, puede retornar en lo real, de perder el sujeto alguna forma de compesación o suplencia del mismo. Por el contrario, al referirse a los significantes de la muerte o la mujer, Lacan hace referencia a su inexistencia. En este caso la consecuencia no es el retorno sino el encuentro com una ausencia, que en Freud se leerá retroactivamente como castración, mientras que en Lacan se plasmará bajo la égide del significante de la falta en el Outro.” (p. 13)
FERNANDA OTONI-BRISSET
BRISSET-OTONI, Fernanda. O laço entre o amor e a coragem. In: Boletim da Jornada 2018 da EBP-Seção São Paulo. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/o-laco-entre-o-amor-e-a-coragem-fernanda-otoni-brisset/
“Lacan nos leva a considerar que do ser jamais temos nada. ‘O ser se apresenta sempre por sempre por para-esser’. Do lado do ser estão as formas de para-esser, que não é. E, do outro lado, o impossível de dizer, mas que existe, insiste e itera: o UM que é. Il y a de l’Un! Esse Um que só se apresenta por esse para-esser, ou seja, ‘o ser na lateral’. O equívoco participa desse ajuntamento entre o Ser e o Um, entre a forma de ser que não é e o Um que é.” (sem paginação)
MAURICIO TARRAB
TARRAB, Mauricio. Crença e verdade na era do falasser. Trad. de Teresinha N. Meirelles do Prado. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia, núm. 71, nov. 2015.
“No tempo do desaparecimento dos oráculos, como destaca Miller em sua conferência, o que fica para a psicanálise como mistério não é a revelação da verdade do sentido do sintoma, mas que há um real irredutível e traumático a partir do qual se tecem as redes do sentido, redes que são finalmente os semblantes que se desprendem desse real e o envolvem. Todos os desenvolvimentos do último Lacan invertem a fórmula de que há saber no real para dizer há real no saber. […] É em relação a esse real no saber que uma psicanálise pode funcionar para além do sentido”. (p. 27)
HÉLÈNE BONNAUD
BONNAUD, Hélène. Dizer/Escrever. In: Um real para o século XXI. MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Org.). Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
“Jacques Allain- Miller propõe separar o ser da existência. O ser se situa ao nível do sentido, a existência, ao nível da escrita. Essa conjunção entre existência e escrita, diz ele, é essencial, e a escrita é primeira. O Um da existência está ligado a um efeito de escrito e não a um efeito de significação. O que visa a interpretação não é à escrita da palavra, mas ao escrito primário, aquele que é marcado pelo Um primeiro e que Lacan chamou de Um-dizer. É um significante sozinho e que não tem Outro.” (p. 124)
ANGÉLICA MARCHESINI
MARCHESINI, Angélica. Existência. In: Um real para o século XXI. MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Org.). Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
“[…] para poder dizer que há real, é necessário que haja uma demonstração fundada na inexistência, aí a análise termina: sempre é impossível demonstrar a existência da relação sexual, de tal forma que o que existe é uma demonstração da impossibilidade.” (p. 147)
“A ex-sistência nos dá a ideia de que se pode escrever algo do que não se escreve, que não estava escrito, uma operação vinculada a uma contingência. E é nesse ponto de ex-sistência que está em jogo no final da análise, um limite é atravessado: uma vez franqueado, clareia-se a existência de um significante, fora do Outro.” (p. 147)
“A política da psicanálise, no século XXI, não consiste somente em uma questão de ser, senão que se relaciona com o real, com reduzir o Outro a seu real e liberá-lo da essência, do sentido. A existência depende da passagem pela inexistência, implica que o Um, como desaparecimento de tudo que havia no Outro, se articule com o que não existe, fundando-se a existência na inexistência, ex-sistência do sinthoma.” (p. 147)
PASCALE FARI
FARI, Pascale. Lalíngua. In: Um real para o século XXI. MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Org.). Belo Horizonte: Scriptum, 2014.
“Bricabraque, heteróclito, lalíngua mistura lalações, fragmentos significantes, significantes-mestres, frases, entonações, sotaques e outros mais… Assim, ela bordeja a fronteira do inarticulável. Lalíngua é materna, na medida em que ela é nosso banho primordial de linguagem. Mas nada de harmonia naturalista, nada de progresso psicogenético, nada de aprendizagem normatizada: absolutamente fora da norma, ela é, antes de tudo, uma sopa de mal-entendidos, um concentrado de sem sentido.
Dizer que ela nos afeta é pouco: ela é nossa carne e nosso sangue. Desafiando a insustentável leveza da ordem simbólica, viciando sua bela ordenação, lalíngua a sobrecarrega com pesos mortos e feridas – fixações de gozo das quais o sintoma se sustenta. Tramando essas marcas contingentes, o inconsciente é, a um só tempo, a comemoração desse encontro imemorial e ‘defesa contra [esse] real sem lei e fora de sentido’.” (p. 222)
“Fazer uma análise é, de fato, dar-se uma chance de ‘desfazer pela fala o que foi feito pela fala.’ Até certo ponto. Uma vez reduzida ‘qualquer espécie de sentido’, restará o selo fora de sentido da letra.” (p. 223)
MIQUEL BASSOLS
BASSOLS, Miquel. A caminho do corpo falante. In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Trad. de Paola Salinas. São Paulo: EBP, núm. 78, mar. 2016.
“[…] o que faz o Um do gozo é o corpo que chamamos de próprio e do qual, de fato, não temos nunca uma imagem precisa e muito menos completa. A partir desta perspectiva, todos os projetos que as tecnociências levam a cabo sob o lema do ‘melhoramento humano’ não deixam de ser tentativas de adequação da imagem narcísica do corpo ao ideal da nova época. Assim como para cada sujeito, sempre haverá aquilo que não encaixa entre um e outro, o sintoma como signo de um gozo irredutível. Isso que não encaixa é o que segue sendo invisível, e que motiva que falemos dele, do corpo e de seus gozos, é o que motiva que tenhamos um corpo falante sem chegar a sê-lo.” (p. 53-54)
MÓNICA TORRES
TORRES, Mónica. Sentido e fora de sentido. In: Scilicet: semblantes e sinthoma. São Paulo: EBP, 2009.
“Ao longo de uma análise, o trajeto seguido pelo analisante o leva do sentido – que articula o inconsciente transferencial ao sintoma – ao naufrágio do sentido. Ele pode, assim, confrontar-se com real de seu sinthoma, ou seja, com o fora de sentido de seu gozo, do qual ele pode fazer uma escrita, mas não sem esforço de poesia para saber-fazer com seu sinthoma. Cabe a cada um encontrar sua solução. Não sem invenção. Não sem conseguir fazer alguma coisa com esse real fora de sentido, em cuja falta a psicanálise correria o risco de ser muito simplesmente um embuste. Saber-fazer ali com o sinthoma, essa é a resposta que Lacan nos deixou. Se o inconsciente transferencial decorre do Outro e do destino, o um-engano e o sinthoma preexistem a ele. Depois de ter tido acesso a esse irredutível do fora de sentido, o analista deve sustentá-lo. Não sem uma solução que permita ultrapassar o sofrimento gerado por esse fora de sentido, como o emprego, por exemplo, da solução constituída pela escrita joyceana.” (p. 329)
MONIQUE AMIRAULT
AMIRAULT, Monique. Gaston Chaissac, un bricoleur de real. In. Ornicar?: 1. De Jacques Lacan a Lewis Carroll. MILLER, Jacques-Alain (Org.).Trad. de André Telles et.al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
“Para Chaissac, a única maneira de acomodar o real é fazer arte com todas as coisas. É aí que reside a unidade de seu estilo. Promover os incultos, os simplórios com sua cartas, elevar a aldeia à altura de uma instituição, com suas crônicas, conferir eminência a uma panela cheia em sua arte advêm da mesma necessidade, a de fazer o real passar no simbólico, sem operação de metáfora, frequentemente por simples contiguidade, superposição, colagem, cingindo de um só traço, sem ‘ideia’ prévia do resultado. Por várias vezes ele afirma que essa arte só é válida referida à sua qualidade de bricoleur, aquela que lhe propicia uma habilidade para usar lalíngua com dejetos e escombros diversos, formas proporcionadas por um lagarto num muro, uma pedra no meio do caminho, um toco de árvore na floresta, um desenho de criança, um graffitti de inculto, a marca de um objeto.” (p. 116)
AUTORES DE OUTROS CAMPOS
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 12. ed. Trad. de Tânia Pellegrini. São Paulo: Papirus Editora, 1990.
“O pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas organizando os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, ‘em marcha’ a partir da sua própria instauração, cria seus meios e seus resultados sob a forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias.” (p. 38)
“Mesmo o tamanho natural supõe o modelo reduzido, pois que a transposição gráfica ou plástica implica sempre uma renúncia a certas dimensões do objeto: em pintura, os volumes, as cores, os cheiros, as impressões táteis, até na escultura; e nos dois casos, a dimensão temporal, pois a totalidade da obra figurada é apreendida num instante.” (p. 39)
“Sempre a meio-caminho entre o esquema e a anedota, o gênio do pintor consiste em unir conhecimento interno e externo, ser e devir; em produzir com seu pincel um objeto que não existe como objeto e que, todavia, sabe criar sobre a tela: síntese exatamente equilibrada de uma ou de várias estruturas artificiais e naturais e de um ou vários fatos naturais e sociais.” (p. 41)
“O equilíbrio entre estrutura e evento, necessidade e contingência, interioridade e exterioridade é um equilíbrio precário, constantemente ameaçado pelas trações exercidas num e noutro sentido, segundo as flutuações da moda, do estilo e das condições sociais gerais.” (p. 46)
DAVID LAPOUJADE
LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Trad. de Hortência Santos Lencastre. São Paulo: n-1 edições, 2017.
“O pensamento não garante ao pensador a sua existência, como para Descartes, em vez disso confirma que ele não existe, que ele não pode existir.” (p. 11)
“Como duvidar da realidade da existência quando estamos aqui, presentes neste mundo, como duvidar disso? É que confundimos duas noções: a existência e a realidade.” (p. 11)
“[…] não há um único modo de existência para todos os seres que povoam o mundo, como também não existe um único mundo para todos esses seres.” (p. 14)
“Mas ainda existem outros modos, o dos seres imaginários, o dos seres de ficção, com tipos que será preciso estudar quando chegar a hora. De forma geral, os modos de existência são ocupações de espaços-tempos, contanto que fique claro que cada modo de existência cria o espaço-tempo que ocupa. O espaço-tempo dos fenômenos não é o mesmo das coisas, e o das coisas não é o mesmo dos seres imaginários etc.” (p. 19-20)
“Esse é o problema. Como uma existência pode conquistar por ela mesma sua legitimidade? […] De onde pode vir essa confirmação, se estamos privados de qualquer direito de existir? O que resta a um ser quando seu modo de existência é contestado? […] Não há mais nenhuma terra, nenhum solo, onde colocar os pés.” (p. 24)
ÉTIENNE SOURIAU
SOURIAU, Étienne. Os diferentes modos de existência. Trad. de Walter Romero Menon Júnior. São Paulo: n-1 edições, 2020.
“Questão prática também. Afinal é de grande consequência para cada um de nós saber se os seres que afirmamos, supomos, sonhamos ou desejamos têm uma existência de sonho ou de realidade e saber, nesse caso, de que realidade se trata; saber que gênero de existência está preparado para recebê-los; presente para sustentá-los ou ausente para aniquilá-los; ou se, ao considerar erradamente um só gênero, nosso pensamento relega ao abandono e nossa vida deserda ricas e vastas possibilidades existenciais. Questão, de outra parte, notavelmente limitada. Ela se resume, como podemos ver, na questão de saber se a palavra ‘existir’ tem ou não o mesmo sentido em todos os seus empregos; se os diferentes modos de existência que os filósofos puderam assinalar e distinguir merecem plenamente e igualmente esse nome de ‘existência’.” (p. 14-15)
MARCELO RIBEIRO
RIBEIRO, Marcelo Rodrigues Souza. Do inimaginável. Goiânia: Editora UFG, 2019.
“Nas imagens de abertura dos campos, concentra-se de modo contundente a iconografia dos ‘atos bárbaros’ e o fundo de inimaginável, contra os quais se (re)afirma o projeto cosmopolítico dos direitos humanos. O trabalho de memória que se desenrola a partir delas desdobra e amplia sua iconografia, ao mesmo tempo em que revela suas insuperáveis lacunas, seus incontornáveis vazios. Se o inimaginável é aquilo do qual não existe imagem possível, a aparição paradoxal das imagens fotográficas e cinematográficas dos campos como evidências do inimaginável permanece assombrada pelas imagens que faltam. […] Dessa forma, o inimaginável não corresponde a uma ausência absoluta de imagens, mas a uma paradoxal produtividade imagética sobre um fundo de falta irredutível.” (p. 20)
“Uma das figuras do inimaginável é, justamente, a do excesso de real, que nenhuma tentativa de simbolização consegue apreender e compreender. Esse excesso de real pode tanto perturbar e desestabilizar as formas convencionais de interpretação do mundo – e isso exige a invenção de novos modelos de visibilidades e de legibilidade diante das imagens dos campos […]” (p. 53)
“O inimaginável – isto é, a condição das imagens que faltam, dos fatos que ‘você não tem’ – corresponde a uma possibilidade de invenção e a um dever ético de imaginação, apesar de tudo.” (p. 94)