Subjetividades contemporâneas: o real do gozo e a trama dos discursos
Nohemí Brown(EBP/AMP)[1]
O que chamamos de subjetividades contemporâneas? Inicialmente, podemos dizer que são o efeito das mudanças nos discursos e a forma como os sujeitos se inscrevem e se fazem representar neles. Os discursos universais oferecem significantes que se tornam significantes mestres. Com Lacan, sabemos que o discurso é uma dimensão (diz-mansão[2]) que situa algo da ordem da identificação[3], mas também emoldura uma forma de habitar o gozo. Se no discurso há algo do gozo que se enlaça, também há algo do gozo que por estrutura não faz relação, mas tem sua função. E que pode nos interessar para o que se apresenta neste momento.
Com a formalização de Lacan do paradigma da “não relação”, destaca-se o que não faz laço. Se, em um primeiro momento de seu ensino, Lacan nos indicava que o que fazia cadeia entre um S1 e um S2 era o Nome-do-Pai, com a precisão da não relação o estatuto desse S1 se radicaliza. Em realidade, entre o S1 e o S2 há um furo a partir do qual o Nome-do-Pai pode funcionar como articulador, mas não só. É mais da ordem de uma invenção.
Se destacamos nisto a dimensão do gozo, podemos dizer que a linguagem, inclusive antes de que falemos, produz efeitos sobre o corpo. Efeitos que marcam o corpo e que determinarão modos de satisfação além da biologia. Entrar no campo da linguagem é uma operação que implica traduzir algo desse barulho gozoso da lalingua, mas não tudo. Se retomamos a articulação significante como um binário S1 – S2 que veicula uma vertente do gozo, há outra vertente externa ao funcionamento significante, mas que se apresenta nos corpos. É a lógica que rege o sujeito, mas inclui esse gozo experimentado pelo falasser. Um gozo não limitado pelo falo. O falo não o limita nem o define, mas se seguimos Lacan no Seminário 20, esse gozo precisa do falo como referência, como ponto de partida. É um gozo que existe e que escapa, com o qual há que consentir, mas que nem sempre acontece. Uma análise leva em conta esse gozo.
A época nos oferece significantes que têm se tornado significantes mestres: gênero, trans, hiperativo, autista, bipolar… Da série de significantes oferecidos pelos discursos na atualidade são produzidos efeitos, e os sujeitos os tomam para se fazer representar neles. De que ordem são e como eles operam? Parece fundamental situar se se tratam de um S1 que chama a interpretação, que em seu seio está o furo do qual falávamos antes. Ou se trata mais de uma resposta que obtura? Sabemos que uma análise visa extrair os S1 do sujeito, da sua história, porque eles convocam a interpretação, implicam uma pergunta. Nesse sentido, são os S1 que ajudam a tornar o gozo legível, que ajudam a tornar a história legível, mesmo que não toda. Contudo, somos advertidos de que em seu interior se aloja um gozo ilegível. Como diz Enric Berenguer, nosso convidado, a pluralidade de marcas não deve ser confundida com o Há Um, que é o que em última instância está em jogo.[4]
Uma pergunta se decanta, portanto: o que há no corpo face ao qual o discurso universal retrocede[5]? Isso nos interessa, pois inclui a dimensão do corpo que goza e que introduz a diferença absoluta. Isso que se obtura e que preenche com um excesso de sentido com os significantes oferecidos aparece de outra maneira? Onde o real do gozo é capturado em algo que pode dar lugar ao sintoma? Como diz Anna Aromí, “O Outro muda, mas o real não”[6]. Não desistimos do sintoma, mas, com Lacan, ele toma uma dimensão mais apurada e que nos orienta na escuta dos sujeitos que nos chegam à análise.
Sem a exceção, questionada há muito tempo, com o tão falado declínio do pai, a solidão parece ser o elemento que está em jogo. E frente a isso, os discursos da época se tornam referências. Parece que de alguma forma permitem acolher ao sujeito, incluí-lo em uma “comunidade”, e daí sua incidência tão marcada na atualidade. Mas, também, por outro lado, dependendo do uso, tamponam o que de fato há de mais singular do sujeito. De que forma a trama dos discursos permite um sujeito inscrever algo do real do seu gozo sem se tornar um empuxo? Quais as modalidades e funções dessas comunidades? O que orienta um sujeito em suas escolhas mais íntimas? A ideia de escolha implica que há algo indeterminado e que desliza. Fazemos escolha, em psicanálise, como uma decisão no ponto escuro onde nenhuma palavra, nenhuma identificação com um traço familiar permite nomear. É como se o corpo decidisse, consentindo ou recusando esta escolha[7]. O que podemos apreender das subjetividades contemporâneas neste aspecto? De que dimensão é a escolha colocada em jogo?
Se pensamos nas crianças ou mesmo nos adolescentes, a questão é: o que faz sua mediação com os discursos vinculados ao mercado e às tecnociências? Ou ainda, o que faz mediação na sua relação com os fantasmas dos pais tomados pelos discursos?
O que podemos apreender do que oferecem as tramas dos discursos contemporâneos sem perder de vista o discurso desde onde operamos?
Trata-se de extrair uma elaboração do trabalho que realizamos nas curas que dirigimos, mas também na leitura da época, não sem os outros saberes. Este eixo é o convite para este trabalho. Aguardamos as contribuições para aprofundar nesta articulação clínica e política à qual somos convocados.