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Eixo 2 – A verdade não existe. Qual lugar para a democracia?

Leonardo Scofield (EBP/AMP)[1]

As afinidades entre a psicanálise e a democracia, assim como as ameaças às liberdades, em particular à da palavra, que se multiplicam no Brasil e no mundo, nos levaram a propor esse eixo de trabalho que articula verdade, mentira, democracia e psicanálise.

A verdade não existe, ela é. Nos termos da psicanálise, as verdades, como fatos de linguagem, se sustentam na articulação dos discursos, no encadeamento significante. Nessa perspectiva, toda verdade é mentirosa, na medida em que é não-toda, em que há um impossível de dizer.

A mentira, como bem esclareceu Fabián Fajnwaks recentemente[2], é outra coisa. A mentira, o fake, implica na intenção de enganar, de veicular uma falsidade, e pode se sustentar enquanto verdade, pois ambas têm uma estrutura de ficção.

Em seu ofício, o analista leva em consideração o modo como os discursos se tecem por se ancorarem na maneira pela qual a linguagem se imprime, enquanto ficção. Porém, ao se debruçar sobre o discurso analítico, Lacan tentou cernir esse tipo especial de discurso que funda um tipo paradoxal de laço, mais além do sentido, situado sobre aquilo que fervilha, o ser falante. A ética que orienta a operação analítica guarda, portanto, relação com o Real. Este que não se define em termos de falso-verdadeiro, não está submetido à lógica significante. É por meio dos fracassos de sentido da linguagem que se pode ter acesso a pedaços de Real.

Deste modo, podemos verificar afinidades entre a democracia e a psicanálise pelo fato de terem em comum uma  “estrutura de ficção”[3]  e se fundarem a partir da dimensão do que é vazio de sentido, mas que não é vazio de gozo. A democracia, invenção dos gregos como resultante do fim das presenças divinas, se edificou a partir da afirmação da inexistência d’A Verdade teocrática, ontológica. A psicanálise, por sua vez, emergiu daquilo que Freud pode escrever sobre o que testemunhavam as histéricas de sua época, Um impossível de dizer, mas que não era inefável, manifesto em seus sintomas.

O risco que correm esses discursos é de, como toda estrutura ficcional, fechar-se em si mesmo, ancorando-se em sua vertente ideal. Esta é outra razão de abordarmos este tema. A subversão lacaniana de que “O inconsciente é a política”[4] e não o inverso não nos referencia mais, diretamente, a uma lei paterna que operaria para todos. Esta subversão aponta para uma “fratura” no universal S(A). A partir disto, como a psicanálise poderia contribuir para a democracia, advertida do valor operatório para além do binário normativo e ficcional S1-S2, direita-esquerda, nós-eles[5]?

Em uma conversação recente da AMP, por ocasião do lançamento do livro Polémica Política, Vicente Palomera[6] lembrava a Miller: “Algo que você nos ensinou, Jacques-Alain Miller, é a maneira como a psicanálise está vinculada à liberdade da palavra e, por meio dela, aos direitos humanos.” E acrescentou que “Lacan antecipou o vínculo da psicanálise não com a liberdade, mas com as liberdades”.

Isto nos permite partir de uma verdade não-toda para sustentar uma condição para a democracia e para a psicanálise: o uso “livre” da palavra, na medida em que cada sujeito possa se responsabilizar pelos “efeitos de verdade” que produz. Que possa assumir o risco de encontrar-se com o mais heterogêneo que se pode experimentar sobre o gozo próprio do corpo. Que possa lidar com o hiato que marca a diferença radical da experiência entre as pessoas e com o valor comum de tratamento, pela palavra, de sua própria inconsistência.

Poderíamos, a partir disto, dizer que a democracia, assim como a psicanálise, porta um traço de instabilidade[7] sobre o qual se funda e que ameaça sua existência? Poderíamos considerar os discursos das minorias como aquilo que, em potencial, explicitaria o furo do para todos, possibilitando a invenção de outro modo de laço social? Enfim, qual lugar para a democracia?

Estas e outras questões nos convidam ao esforço de falar sobre o que não existe, mantendo “vazio/livre o lugar da verdade”[8] para que possamos continuar falando e fazendo ex-sistir a psicanálise.


[1] Leitores : Raul Antelo, Fernanda Otoni, Valéria Beatriz, Louise Lhullier e Carolina Maia Scofield.
[2] Fajnwaks, F. Conversação posterior à Conferência: “Ficções e real na psicanálise e na cultora: do ser à ex-sistência. Disponível em: https://ebp.org.br/sul/ficcoes-e-real-na-psicanalise-e-na-cultura-do-ser-a-ex-sistencia/
[3] Lacan, J. (1956-1957). O Seminário de Jacques Lacan, livro 4: As Relaçőes de Objeto Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 258-259
[4] Lacan, J. Seminário 14, A lógica do fantasma. Seminário inédito. Trabalhada por MILLER, J. (2011) Intuições milanesas 1. Opção Lacaniana online nova sérieano 2, no 5. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero5/texto1.html
[5] MILLER, J.-A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. Opção Lacaniana Online, n. 21, 2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf
[6] Apresentação do Livro “Polêmica Política”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=O-wi1rmWmGo 1:29
[7] Tocqueville, La democracia en América, Robert Laffort, col. Bouquins, 2015.
[8] Laurent, E., “Falar e dizer o falso sobre o verdadeiro”, In: Revista Correio, nº85, Revista da Escola Brasileira de psicanálise, O novo é sutil, Abril 2021, p. 26.
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