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Eixo 1– Bricolagens: o fazer singular com os restos ao longo de uma análise?

Liège Goulart (EBP/AMP)[1]

Do que se trata, em psicanálise, quando falamos em “restos”? São restos de um discurso, aquilo que cai de um discurso? São significantes amo, os S1, traços que desenham o corpo falante e, por isso mesmo, marcam as bordas de seu gozo? São o que sobra das identificações primeiras? São os efeitos de uma leitura outra? Estamos sempre às voltas com seu estatuto temporal e espacial, sua matéria e seus destinos. Os restos são produzidos, estavam sempre ali? Resistem ao sentido, se decantam deste? Letra, objeto, lalíngua, há todo um vocabulário muito próprio da psicanálise para circunscrever essa noção que ganha notas imprescindíveis na relação com os ideais.

O que é a bricolagem da qual fala Lacan, ao final de seu ensino? Bricolagem tecida de restos que vão se decantando desde a proliferação de sentido até sua redução? Ou há um passo a mais, ao fora do sentido?

Ao longo do percurso de uma análise, no que podemos chamar, com Miller, de operação-redução, podemos abordar o objeto a em sua “varidade”[2] no que concerne ao gozo e à causa do desejo para cada corpo falante, em relação ao que se apresentava como significações fechadas pelo Outro. Desse modo, ao longo da experiência analítica, palavras, frases e cenas nunca esquecidas vão compondo a montagem da qual é feita a realidade psíquica e cernindo núcleos de vazios, em torno dos quais se isolam os S1 (significantes amo) mais essenciais que estruturam uma vida, a partir das contingências das marcas, no corpo, que a incidência da linguagem e o encontro com os outros primeiros de sua história operam. “Nosso corpo foi marcado, corrompido, estragado no melhor dos sentidos. Essa travessia pelos cuidados do Outro é quase um segundo nascimento, o único que conta para Lacan”[3].

É necessário um tratamento de leitura desses S1, como peças soltas de um discurso (discurso do amo, como o é o do inconsciente), tratamento esse que visa a possibilidade de decantação da letra, fora do sentido que os sustenta.

Dessa letra que toca o ser de gozo e da qual diferentes figurações do objeto fazem a obscuridade na qual se move o ser falante, pode-se abrir um outro modo de habitar a vida? Como diz Marcus André Vieira, “restam alguns objetos fora-da-série, mas estes terão de ser garimpados no lixo”[4]. Há sempre algo, não “fora de série” (no sentido de extraordinário), mas “fora-da-série”, digamos, fora da ordem (“alguma coisa está fora da ordem”, como canta Caetano Veloso). Mas é deles e com eles, esses restos, que para Lacan tratar-se-á de corte e costura: uma bricolagem singular, o novo a partir dos restos, do lixo, desse aturdimento que menos reconhecemos como nosso. Se, por estrutura, não podemos falar numa essência de ser, podemos abordar o corpo falante a partir do “Há Um” que evoca Lacan a respeito do ser de gozo, traçado da letra, mais próximo daquilo que o ideal não é.

O resto, como objeto da psicanálise, extrai sua importância do lixo subjetivo, a partir dos “garranchos” da fala, usando aqui essa expressão de Marcus André Vieira, ou dos cristais linguísticos, como disse Lacan (sobre a lógica da gramática da pulsão), para falar dos atos falhos, dos esquecimentos, dos sonhos, dos sintomas, enfim desses fenômenos nos quais o inconsciente se mostra na superfície mesma da qual ele é feito: estrutura de linguagem e furo, buraco, real. São esses restos, esses relâmpagos que iluminam algo da opacidade do gozo que situa o ser falante no terreno do tropeço, do equívoco e que permitem um saber ler de outro modo o que era antes perturbador e se opunha à circulação, se opunha ao que é próprio da letra em psicanálise: “ela se move”, como disse, recentemente, Alejandro Reinoso, em uma conferência. Tudo isso que se extrai e se solta acontece também ao longo da experiência analítica, no que ela tem de vital: o trabalho de rasura, de leitura e o movimento que ela “comove”. Alejandro Reinoso nos fala da importância dessa leitura da letra que “aponta à materialidade da escritura, quer dizer, a letra enquanto que produz o acontecimento de gozo que determina a formação dos sintomas […]”. E acrescenta: “[…] seu destino (o da letra) não é a significação, essa é a morte da letra […]. A letra morta que se encontra se distingue da letra viva que se lê”[5].

Como suporte material que traça o traço de cada um, da letra podemos evocar Lacan, em “Lição sobre lituraterra”, no Seminário 18: trata-se de “um escoamento […], “compõe um buquê […] pelo traço unário e por aquilo que ele apaga. […] Rasura de traço algum que seja anterior […] e que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que o traça”[6].

Poderíamos dizer que é somente quando o falasser se solta daquilo que o traça é que pode ler o traçado singular da letra que vivifica?

Muitas dessas colocações tendem a nos levar ao tema do fim da análise. Mas talvez não seja só assim. As bricolagens mantêm sempre seu aspecto de abertura, de um ir fazendo, se virando. Então, ainda, algumas perguntas: como aparecem os restos no percurso da análise? Como sabê-los? Que bricolagens se constroem com eles?

Vamos falar sobre isso?


[1] Leitora: Flávia Cera
[2] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 24: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Lição de 19 de abril de 1977 [Inédito].
[3] VIEIRA, Marcus André. Restos: uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, p. 119.
[4] VIEIRA, Marcus André. Restos: uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, p. 114.
[5] REINOSO, Alejandro. La letra, entre el amor y lo escrito. Conferência apresentada em 19 de junho de 2021 no “Seminário de Formação Permanente da Nueva Escuela Lacaniana”, em La Paz, Bolívia.
[6] LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 18 – de um discurso que não fossem semblante. Rio de Janeiro: Sahar, 2009, p. 113.
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