Falar sobre o que não existe – Do gozo do sentido às bricolagens possíveis
Por Louise Lhullier [EBP/AMP]*
Fala-se sobre o que não existe o tempo inteiro: assim se descrevem “fatos” que jamais aconteceram, se constroem conceitos e teorias, se faz literatura e se associa livremente no trabalho analítico… A demonstração da existência não é um pré-requisito para se falar sobre o ser, sobre o que é ou não é, sobre o que foi, sobre o que será ou sobre o que talvez seja. Dessa forma, como assinalou Miller em seu curso O ser e o Um, “A fala permite pôr em cena seres que fracassam na prova de lógica e se revelam não sendo senão semblantes”[1]. Em outras palavras, é perfeitamente possível falar do que não existe, pois a fala faz ser “alguma coisa, até mesmo o círculo quadrado, o unicórnio”[2]. As ficções constituem mundos e o encontro entre as dimensões simbólica e imaginária é suficiente para fazê-las consistir e mesmo para que produzam efeitos reais.
Portanto, e Miller o diz de uma maneira muito bonita, “o ser transborda em muito a existência”. Por estar no nível do sentido, prolifera na fala, nos ditos. Mas quanto à existência, que concerne ao real, só pode ser apreendida no campo da lógica, da demonstração, recorrendo às matemáticas, a essa “linguagem sem equívoco[…] pura escrita”[3], como disse Lacan no sem. 16. O que não existe, por sua vez, corresponde a um impasse da lógica, e é nessa hiância que Lacan propõe designar o real enquanto impossível[4].
A regra fundamental de uma análise – fale tudo que lhe vier à cabeça – está posta desde Freud. A resposta do analisante a essa convocação vai se desenrolar entre o possível e o impossível de dizer, traçando seu caminho singular, nem linear, nem contínuo, que vai do ser ao des-ser, ao esvaziamento do sujeito, que “só tem seu ser pelo fato da fala”[5].
Mas, com Lacan, a psicanálise foi além do vazio do ser, seguindo aquilo que, do sintoma, não é da ordem do interpretável, não é da ordem de “uma verdade que podemos sonhar revelar”[6], mas que persiste, que reitera, que não cessa de se escrever, que é da ordem, portanto, do necessário. Essa dimensão real do sintoma conduz ao que não cessa de não se escrever, ao real como impossível, gozo opaco ao sentido. Assim se distingue das formações da fala – o sonho, o chiste, o lapso e o ato falho – embora somente pela fala tenhamos acesso a ele e aos seus “restos”. Essa é a perspectiva do sintoma que Lacan grafou com “H” a partir do seminário 23 – O sinthoma -, para diferenciá-lo do sintoma freudiano, dócil ao sentido. O sinthoma, acontecimento de corpo, não se decifra, apenas se constata.
O corpo em jogo quando se trata do sinthoma não é o das miragens narcísicas, dos semblantes ou do real da ciência, mas, aquele tomado na sua dimensão real, como corpo que se goza[7], um corpo que fala e que goza falando.
Antes de chegar ao estatuto real do corpo, Lacan tomava a fala em sua relação ao querer-dizer, o que se traduz como querer fazer sentido, dirigir-se ao Outro, comunicar-se. O querer-dizer, portanto, está em relação com o desejo. Por outro lado, à medida que Lacan resgatava a pulsão como querer-gozar, destacava a fala como “modo de satisfação específica do corpo falante”[8].
Embora a resposta à regra fundamental envolva um querer-dizer, a associação livre, como qualquer monólogo, é animada pelo querer-gozar[9]. O gozo do sentido, como satisfação suportada pela linguagem[10], funciona como motor do processo analítico. Por outro lado, a satisfação assim obtida constitui um obstáculo para que uma análise vá além das sombras e reflexos que constituem o mundo dos semblantes.
A interpretação analítica que vai contra o sentido visa furar a consistência imaginária que caracteriza esse domínio. Furar a tela da fantasia, olhar através dessa janela para o real são maneiras de dizer sobre a travessia que dá acesso a um saber e, no mesmo movimento, abre a passagem ao não-saber, a um lugar vazio de saber. Ante a reiteração do gozo opaco do sinthoma, onde o saber encontra seu limite, algo pode cessar de não se escrever, presentificando a dimensão do real como contingência. Para a psicanálise, aí cabe a aposta na invenção que porte a marca da singularidade.
Seja na experiência analítica, seja no trabalho epistêmico ou no campo da política, não se trata de perseguir as miragens de uma essência, de uma verdade última, de uma resposta definitiva, mas de inventar um saber, “a partir de materiais já existentes”, processo ao qual Miller diz que “atribuiria de bom grado […] o valor de bricolagem”[11].
A 2ª. Jornada da Seção Sul, orientada pelos não existe que fazem série na psicanálise, lança sua aposta em bricolagens possíveis ante o pandemônio[12] que vivemos. Precisamos falar sobre isso.