#04 - SETEMBRO 2024
EIXO 3: O DISCURSO FAZ DO CORPO UM CORPO
Cinthia Busato (EBP/AMP)
No Seminário 19, …ou pior, Lacan aponta que foi a partir da fala das histéricas que Freud fez surgir “a constatação de que o que se produzia no nível do suporte tinha a ver com o que se articulava pelo discurso. O suporte é o corpo”[1]. O discurso faz do corpo um corpo que funciona, se regula, se orienta e se inscreve no laço discursivo pelo efeito significante. Mas, há um resto que Lacan já definiu como uma marca, um estigma do real que não se liga a nada[2]. Esse real que não se liga a nada será o ponto de opacidade do gozo, que poderá ser acolhido no sintoma. Então, como pode ser tocado esse caroço de real?
Lacan indica uma diferença entre o gozo sentido e o real parasita de gozo do sintoma. É ao redor desse real que o inconsciente bordeja, sendo afetado por ele. Mauricio Tarrab, a partir desta fala de Lacan – “é de suturas e emendas que se trata na análise”[3] –, faz uma leitura interessante. Ele esclarece que o trabalho do analista ocorre em duas frentes simultaneamente: na primeira, sugere que a interpretação clássica freudiana permite uma sutura entre imaginário e simbólico; sobre o saber inconsciente que aparece no exposto pelo analisante, o analista atua e aí obtém outro sentido. Essa sutura seria entre imaginário e simbólico, e Tarrab propõe chamá-la de sutura freudiana. A outra operação, que incidiria no real parasita de gozo, seria da ordem de uma emenda entre este e o sinthoma. O resultado dessa operação produz outra coisa; ela tenta tornar esse gozo opaco um gozo possível, uma nova inscrição recolhida pelo discurso em um dizer novo: “tornar esse jouissance um joui-sens”[4]. Essa emenda lacaniana estaria entre real e simbólico. Assim, como podemos pensar o efeito que essas operações causam no imaginário em seu último ensino?
Lacan afirma que é no nível do corpo que surge todo sentido, mas não como um sentido já constituído, como uma significação; seria mais a base, o chão, “com seus sentidos radicais, sobre os quais não há influência alguma”[5]. Podemos pensar que o corpo que suporta os discursos é o corpo pulsional do falasser, onde estão conjugados significante e suas derivas de gozo, aquele corpo que se goza. É o corpo que escapa do efeito da negativização significante e que resta nos convocando a tentar dizê-lo. Esse corpo suporta todos os discursos, mas em cada um tem um destino diferente, petrificado e recalcado no discurso do mestre, por exemplo. Apenas no discurso analítico ele é tomado como base de trabalho sobre suas “marcas radicais”, pois pela via do sintoma podemos seguir o traço da causa do dizer e produzir novas inscrições.
Em uma análise só há um sujeito, o analisante. Sabemos que o desejo do analista é um desejo impuro, pois restam marcas de gozo, restos de sua própria análise. Do que goza o analista na análise? Certamente, não do gozo contido em seu fantasma, mas ele é um corpo vivo presente na cena. Ele goza de seu ato, nos diz Lacan, e Clotilde Leguil esclarece: “O analista, segundo o último Lacan, o dos anos 1970, é aquele que faz ressoar de seu próprio corpo o efeito de gozo produzido pelo significante. É então como Outro do sentido que ele deve ausentar-se para estar presente como parceiro do corpo do analisante”[6].
Freud já havia percebido o efeito da presença do analista dizendo que essa presença detém a associação livre. Fabián Naparstek[7] esclarece que nesse momento em que o analisante se dá conta da presença do analista algo no fantasma do analisante se desestrutura. Freud aí apontava que o analisante estava pensando algo sobre ele, Freud. Fabián pontua que com isso Freud relançava o discurso do analisante novamente na ficção fantasmática, chamava o Outro. No que pude ler, Fabián indica apontar a hiância entre o discurso e o corpo, para daí recolher a interpretação do próprio analisante a partir de outra alteridade, o Outro corporal.
Esthela Solano[8] traz um testemunho do que foi sua análise com Lacan, e nos mostra tanto a força da presença viva de Lacan, quanto sua capacidade de “furar uma frase, triturar a sintaxe, descarrilhar a linguagem, deslocar totalmente o exercício da palavra do eixo do sentido até o sem-sentido”[9]. Lacan fazia uso de seu corpo como um instrumento de sua prática, como diz Solano: “[…] sua presença era imponente, já que ele fazia valer um estar ali, completamente ali e só ali nesse momento. Sem pronunciar palavra, me dirige um olhar examinador, intenso, no qual o assombro se conjugava com a interrogação”[10]. Solano segue dizendo que Lacan minava sem piedade o corpo da imagem especular, seu eu e seu narcisismo, mas por outro lado “mirava no corpo a corpo para mover as ressonâncias deixadas por lalíngua no corpo, operando ele mesmo como agente do impacto”[11].
Ao analista presente na análise do falasser, disposto a seguir lalíngua nas pegadas obscuras inscritas no corpo, cabe a interpretação como corte, a equivocação, fazendo ressoar essas marcas; ao analisante, “cabe bem dizê-lo […] como possa, o que é uma forma de responsabilizar-se por isso e é também um ato, desta vez o seu próprio”[12]. É claro que nesse ato do analisante está incluído o vivo de seu próprio corpo, mas no ato do analista, o vivo também está incluído?
Esperamos, a partir do trabalho de cada um, poder continuar conversando em torno destes e de outros pontos. Será interessante averiguar como continua operando a indicação de Lacan para que façamos como ele, porém sem o imitar!
[1] LACAN, J. O seminário, livro 19: …ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Ed. Grama, 2012. p. 217.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Ed. Grama, 2007. p. 119.
[3] Ibidem, p. 71.
[4] TARRAB, M. O ato analítico: ler e escrever. Blog Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo, 27 out. 2021. Disponível em: https://ebp.org.br/sp/o-ato-analitico-ler-e-escrever/
[5] LACAN, 1971-1972/2012, op. cit., p. 219.
[6] LEGUIL, C. Presença do psicanalista como testemunha da perda. Punctum – Extra. XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 2022. Disponível em: https://encontrobrasileiroebp2022.com.br/presenca-do-psicanalista-como-testemunha-da-perda/
[7] NAPARSTEK, F. El fantasma aún. Buenos Aires: Ed Grama, 2024. p. 65.
[8] SOLANO, E. Hagan como yo, no me imiten. In: GLAZE, A.; MILLER, J.-A. (dirs.). Lacan Hispano. Olivos: Grama Ed., 2021. p. 171-176.
[9] Ibidem, p. 173. Tradução minha.
[10] Ibidem, p. 172. Tradução da autora.
[11] Ibidem, p. 173. Tradução da autora.
[12] TARRAB, 2021, op. cit.