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Cidade-corpo: Corpos na cidade

Tatiane Fuggi
[…] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa cota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para ele, não apenas um ajudante em potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus. (Freud, 1930, p.116)

Florianópolis não é uma ilha. O pedaço de terra cercado de mar chama-se: Ilha de Santa Catarina e neste contorno tão singular, um desenho pode ser admirado. Este fragmento de terra que se solta do resto-continente, intriga com suas belezas, segredos, folclores, seres fantásticos e bruxas que de uma maneira ou de outra, fazem parte da história, memória e paisagem urbano-cultural deste lugar. Inseridos nesse espaço, estão os corpos dos viventes, cada um à sua maneira. A cidade também é um corpo vivo. Suas ruas e vielas, morros e praias compõe a paisagem mesclada, antes predominantemente, dos índios Carijós da nação Tupi-Guarani mas também pertenceu, segundo registros arqueológicos, a nação índigena Jê (que deu origem aos Xokleng e Kaingang) há pelo menos 5.000 anos atrás.

Foi a partir da admiração e escolha decidida em viver neste espaço amalgamado entre urbanismo e natureza, através de uma observação detalhista da pólis, que este trabalho tomou corpo. Dentro deste contexto, uma questão suscitava a todo instante enquanto percorria cotidianamente as ruas de outras cidades mas principalmente desta: “o que esta frase quer dizer nesta parede?”

Em seus muros e arquitetura, residem a história, urbanidade e desigualdades cravados na carne de Florianópolis. Frases, palavras, signos, desenhos e cores vão compondo as linhas de expressão desta velha senhora resistente ao tempo.  A demarcação do território cidade, revela para além do processo de gentrificação (enobrecimento de área urbana), mostra também o movimento de exclusão de corpos que, propositalmente são tidos como invisíveis, indesejáveis. Nesta perspectiva de cidade-tela, podemos ver seus generosos espaços em branco servindo de corpo-tela, marcando a existência destas vidas e o pertencimento na cidade. Denúncias, declarações de amor, calúnias, gritos, cólera, ironias e toda sorte de afetos estão registrados em suas paredes.

Sendo assim, podemos pensar que por fora da lógica de consumo, os escritos urbanos diferenciariam-se dos “outdoors” em um detalhe importante, apesar de também serem palavras no corpo da cidade. Estes escritos não passariam pelas mãos das empresas de marketing, nem tampouco, estão à serviço do capital e da lógica neoliberal. As marcas de pertencimento na cidade estão diretamente ligadas com aquilo que os cidadãos não querem saber, não querem se implicar.

Não há, de fato, segregação mais radical do que a que se funda na negação da fala do sujeito. Quando se nega a alguém o direito à fala, lhe é negado o mais fundamental, o reconhecimento simbólico de seu ser em relação ao outros. O sujeito que não pode ter acesso ao vínculo simbólico da fala, seja pela palavra dita, pela escrita ou significada por outros meios, é então um sujeito excluído do vínculo social. Por isso a relação entre os transtornos de linguagem e os fenômenos de segregação nos parece evidente. (Bassols, 2018, p.1).

Aquilo que não é simbolizável nas entranhas das ruas, retorna no real da cidade-corpo. Nosso olhar faz então, o papel de fixar o escrito da cidade como inscritura urbana que contém a palavra, a imagem (da cidade), podendo ser comparadas as marcas de gozo no corpo do sujeito. Um escrito-inscritura que se diferencia da dimensão de significante puro e recortado. Há um contexto que enlaça: significante, escrito, muro, cidade que resulta em inscritura. Uma marca talhada temporária ou não no real do corpo da cidade. Uma escrita do real. Trago algumas frases pertencentes ao território da ilha: “Fora Bolsonaro”, “Resistência sapatão”, “Nunca foi mimimi. Meu pai morreu”, “eu não sou os outros”, “vandalismo é não falar de amor”, “cidade à venda” “eu sei lá o que eu quero”, “fucknópolis”, “tua mãe não te bateu o suficiente” “moça, você é linda” “Cura hétero já”, “se a arquitetura não subsiste, a arte resiste”

Habitar, transitar, conviver a cidade em sua mais complexa fluidez é pensar as subjetividades presentes nestes territórios e ler o que escapa aos corpos enquanto fora da lógica do auto-empreendedorismo e da felicidade instagramável. Heidegger, na conferência de 1951, vai dizer no texto “Construir, habitar e pensar”, que o acesso a essência do habitar vem da linguagem. Pensar a cidade como território que faz marca, a partir de uma pertença, do trânsito. Habitar significa pertencer.

Pensar as inscrituras urbanas como produção social fazendo eco, é ler a cidade sob outra perspectiva. Há algo que grita e perturba a ordem urbana, para além dos fulgurantes paradouros em voga na ilha. E deste “ruído” incomodo, pouco se escapa.

 

BIBLIOGRAFIA

Bassols, Miquel. (2018).O bárbaro. Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana Online.

Freud, S. (1930) “O mal-estar na civilização”, vol. XXI.

Heidegger, M. (2002). Construir, habitar e pensar. Ensaios e Conferências. Vozes

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