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Uma experiência com a Escola e a NPJ: notas de rodapé
Mariana Dias
Para que algo de uma experiência possa se escrever, é preciso não estar em queda de braço com o encontro contingente. É preciso não estar travando uma queda de braço com o real. Enquanto se usarem as mãos para isso, definir quem é mais forte, a escrita trava. Não vai sobrar mão, e sabemos quem triunfa no final.
Essa mão canhestra que aponta para o sem sentido dá o tom da orientação lacaniana. É num lugar que nomeia em A instância da letra como um lugar terceiro – nem o de sua fala nem seu interlocutor, mas o lugar da Proposição – onde Lacan afirmará que existe um real em jogo na própria formação do psicanalista e que as sociedades existentes fundam-se nesse real¹.
O que gostaria de propor como fio condutor para algo poder dizer, não apesar da mão canhestra, mas orientada por ela, é que deste real em jogo na formação do psicanalista, só daí poderia advir uma máxima como “não há formação analítica, só há formações do inconsciente”². Isto é, somente da pena de um Lacan tão herético quanto excomungado.
Isto me faz pensar na parecência do real com uma representação social que nos tem sido muito familiar através dos tempos: o diabo, um solitário com quem quase ninguém quer papo. No mal-entendido constitutivo das línguas, o diabo foi um dos sorteados para ficar como culpado pelos azares na vida dos outros.
O real marca o estilo de Lacan e, portanto, a fundação de sua Escola. Digo que marca, no tempo presente do verbo, porque uma vez que marcou, está marcado. A marca para a psicanálise justamente vem do verbo que atravessou o corpo e ficou aprisionado no presente. Se não dá para definir o real, dá para inferir seu tempo: está sempre no presente. Com isso fica patente a pergunta: Escola, que lugar é esse?
Bem, parece que nunca pararemos de nos fazer essa pergunta. Decerto este é o pulo do gato. Seria a própria Escola uma espécie de formação do inconsciente? Porque quando participamos de um cartel, dizemos que o inscrevemos na Escola. Quer dizer, a Escola é onde se inscreve algo. Outra questão: será que a Escola se representa no inconsciente?
Após mandar minha carta de intenção, convocada que me senti pela Escola e pela Nova Política da Juventude, recebo uma carta de mim mesma. Por uma sorte de extravio, o SMS que escrevia para meu pai depois que ele saíra do ônibus, fui eu quem recebi, pois era um sonho. Despertei com o vibrar da notificação: “não quero passar o dia inteiro na Universidade”.
Acho que isso marca minha experiência com a Escola. Que não é o universal e muito menos o discurso hegemônico: o que me interessa são os desvios. Então talvez a pergunta não seja exatamente se a Escola se representa no inconsciente, mas como se representa.
Para mim, a Escola se representou no inconsciente como a própria escola, um lugar onde o que me chamava a atenção era: quem cola e quem não cola, o que a colega artista desenha na carteira, o colega calígrafo que fica enfeitando as letras e esquece de copiar a matéria, aquele menino que mexe no cabelo da menina sentada na frente para provocar. Ou seja, o que cada um inventa para se desviar pouco que seja do discurso do mestre.
Neste lugar, eu procurava minha turma, que eu identificaria por estarem vestindo uma camisa igual à minha. Ando, ando; mas não acho. Então resolvo perguntar a uma pessoa ali se havia visto alguém com a mesma camisa que a minha e esta pessoa me responde que não, que “na verdade, lá eles dão sempre essa”. E aponta para a que está usando.
O que esse sonho me ensina é que não há o significante do analista. Que a Escola de Lacan está fundada na não identidade do psicanalista, porque sua carteira de identidade se perdeu. Portanto, nunca se formará o conjunto dos analistas. O que se forma é uma série aberta e sem lei que a defina, como um conjunto de Russel.
Desde que Iordan Gurgel nos falou sobre o cartel como máquina de guerra, fiquei bastante curiosa. Ele remeteu o cartel – que está no princípio da Escola – à estrutura transindividual do inconsciente. Isso me fez ficar pensando no “o sonho é o guardião do sono” de Freud. Se o sonho é o guardião do sono, o Mais-Um é o guardião do cartel. E a Escola é a guardiã do discurso analítico.
Mas se tem uma coisa que Freud nos ensina, é que o diabo do real mora nos detalhes, nos desvios. Às vezes pode morar na nota de rodapé, por exemplo. Depois de concluir que não haveria ninguém com uma camisa igual à minha, vejo que ali pelo menos tem sobremesa e resolvo pegar uma gelatina. Vê-se que algo de meu apetite não se negativizou. Enquanto como a gelatina, que achava ser de morango, percebo que na verdade era uma gelatina de três cores.
Quando se fala em experiência, toca-se em algo que é da ordem do comer. Porque a experiência é uma coisa que se experimenta. Na via contrária de tentar dar consistência a uma identificação, esse comer pode ser o saborear de uma gelatina inconsistente. Como diria Lacan: “Come teu Dasein”³. Mas com a condição de decivorar a letra lacaniana não sem os outros. Nesse banquete só tem restos, então a conversa tem que ser muito boa…
Notas
¹ LACAN, J. (2003[1965]). “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 249.
² Idem. (1973). “Intervention à l’EFP, le 3 novembre 1973”. In: Lettres de l’École Freudienne de Paris, nº 15.
³ Idem. (1998[1949]). “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 45.