#04 - SETEMBRO 2024
Um saber-fazer que perturbe o discurso
Juan C. Galigniana – Cartel Fulgurante
EIXO 3: O DISCURSO FAZ DO CORPO UM CORPO
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Ao ler o texto do 3° eixo da 5ª Jornada EBP-Sul, detive-me, momentaneamente, sobre um aspecto do primeiro parágrafo. Ao título escolhido – O discurso faz do corpo um corpo –, Cinthia Busato acrescenta, logo a seguir: “um corpo que funciona, se regula, se orienta e se inscreve no laço discursivo pelo efeito significante”. A pausa se deu sobre o verbo funcionar. Vou me permitir isolá-lo do resto da frase, um pouco arbitrariamente, pois daí surgiram minhas perguntas.
Como entender um corpo que funcione? Por um lado, de que corpo estaríamos falando? E, por outro, como o laço discursivo faz um corpo funcionar?
Não caberia, para abordarmos essas questões, que colocássemos em tensão as noções de funcionamento e a de função? De uma parte, por exemplo, a função do discurso – em sua posição de “porta giratória” – afetando os corpos, e; de outra parte, as normas e imperativos de funcionamento dos corpos, estabelecidos pelo discurso da ciência e do capitalismo e em incessante multiplicação. Algo que costuma apresentar efeitos consideráveis sobre os sujeitos que procuram análise, e cujos corpos pareceriam, em muitas ocasiões, não funcionar[1].
Indo além, se o que se busca é tocar esse caroço de real, isso que resta, parece-me relevante considerar as funções de lalíngua, da linguagem e da letra – enquanto três tempos lógicos – e as do campo do discurso, em seus distintos modos de incidência sobre os corpos. Não serviriam elas como índices de orientação destas operações simultâneas de sutura e de emenda características do trabalho analítico?
Assim, à questão proposta pelo eixo sobre “como podemos pensar o efeito que essas operações causam no imaginário em seu [de Lancan] último ensino”, seria possível acrescentar, lado a lado à simultaneidade indicada – e sem excluí-la –, a relevância do aspecto diacrônico entre esses três tempos lógicos?
Nessa direção, Miller pontua que:
Lacan introduce el concepto de lalengua como anterior al del lenguaje. Considera que el lenguaje es una elucubración de saber sobre lalengua. En este nivel primordial son solidarios el goce y lalengua, y resultan derivados el deseo, el discurso e incluso el lenguaje[2].
As noções de diacronia e sincronia são úteis, inclusive, a respeito do manejo dos conceitos de imaginário e de corpo ao longo do ensino de Lacan. Nuance que Luis Fernando Carrijo propõe ler como: do imaginário do corpo ao corpo é o imaginário[3]. Cinthia Busato assinala, de modo certeiro, o corpo pulsional do falasser como aquele que suporta [serve de suporte] todos os discursos. E ressalta, em consonância com Naparstek, que o ato analítico aponta uma “hiância entre o discurso e o corpo”, para daí poder “recolher a interpretação do próprio analisante a partir de outra alteridade, o Outro corporal”. Foi essa hiância que mais me colocou a trabalho.
Veio-me à lembrança o caso de Amala e Kamala. Duas meninas, de 2 e 8 anos, encontradas na Índia, em 1920, vivendo no seio de uma alcateia de lobos. Após “liberadas” e submetidas à humanização, definharam em poucos meses. Poder-se-ia dizer que seus corpos, até então, funcionavam. Tratava-se de um funcionamento outro. Existiam fora do hábitat humano da linguagem; fora do que Lacan nomeia como essa “segunda natureza” – o semblante[4]. Fora, finalmente, do “mundo como o que ele é: imaginário”[5]. Dito em outras palavras, corpos que não tinham sido fisgados pelo significante da linguagem e da voz humanas, nem, neste caso talvez mais do que nunca, aprisionados pelos discursos. Estaríamos frente a uma hiância inexistente entre corpo e discurso, uma vez que a linguagem não se efetiva? Seria possível hipotetizar a presença desse outro simbólico, não estrutural, composto por uma sucessão de S1 capazes de série, porém não de cadeias? Uma outra lalíngua em cena?
Indagações a ficar em aberto. Não obstante, permitem destacar que para Lacan: “o saber do um se revela não vir do corpo”, senão que “vem do significante Um”. E que será de lalíngua, desse Um-entre-outros, que “se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame significante, um enxame que zumbe”[6]. Esse S1 que se levanta é o significante Um, que “resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, mesmo todo o pensamento”[7]. Importante frisar que esse Um se escreve como uma letra.
Apontar a hiância entre o discurso e o corpo, junto ao convite do eixo a “seguir lalíngua nas pegadas obscuras inscritas no corpo”, resultam-me, então, uma boa maneira de lembrar-nos que o corpo do falasser – o corpo-falante –, seguindo Miller, “no habla sino que goza en silencio […]; pero sin embargo es con ese cuerpo con el que se habla, a partir de ese goce fijado de una vez por todas”[8]. Um corpo, portanto, que, como Cinthia tão bem precisa: “resta nos convocá-lo a tentar dizê-lo”.
Concluo, assim, que as questões lançadas pelo eixo remetem ao cerne de indagações das mais desafiadoras para nossa 5° Jornada da EBP-Sul. Dentre elas, a da relação lógica entre as funções de lalíngua, da linguagem e da equivocidade de a letra; e de como, via sua análise, um parlêtre possa alcançar um bem-dizer e um saber-fazer capazes de perturbar o que, do discurso, aprisiona seu corpo.
[1] Ver ao respeito: ALVARENGA, E.: “As normas e os Corpos: Quando isso não funciona”, Almanaque On-line n° 11, Revista Eletrônica do IPSM-MG, 2012. Disponível em: https://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Trilhamento-As-normas-e-os-corpos-Elisa-Alvarenga.pdf
Acesso em: 02/09/2024.
[2] MILLER, J-A. Los signos del goce, Buenos Aires, Paidós, 1998, p.340.
[3] CARRIJO, L.F. Eixo 1 – Capturas imaginárias e o real do corpo. In: BOLETIM CODA #03 – XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (encontrobrasileiroebp2024.com.br) Acesso em: 02/09/2024.
[4] LACAN, J. Do ser ao semblante. In: A terceira; Tradução de Teresinha N. Meirelles do Prado. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 22.
[5] Idem, p.23.
[6] LACAN, J. Seminário, livro 20: mais ainda, (1972-1973) – Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 154.
[7] Idem.
[8] MILLER, J-A. Hablar con el cuerpo – Conclusión de PIPOL V. Textos del VI ENAPOL, 2013, p.10. Disponível em https://enapol.com/vi/wp-content/uploads/sites/8/2021/08/Volumen-Preparatorio.pdf. Acesso em: 02/09/2024.