Chegamos ao último boletim P U L S a R. Dessa vez, na seção Ancoragens,…
Um osso …em torno do tempo e daquilo que ele permite localizar
Diego Cervelin (EBP/AMP), Valéria Beatriz Araujo, Fernanda Baptista e Priscila de Sá Santos
O boletim P U L S a R chega a sua última edição contemplando um percurso cujo trajeto passa pelos três eixos de investigação deste tema candente que nos acompanha nesta jornada: o gozo e a época, o gozo no início das análises e o gozo nas análises que duram. Percurso esse onde o gozo, suas vicissitudes, sua gramática, sua contingência, seu possível e seu impossível têm sido trabalhados pelos responsáveis de cada eixo e pelos convidados, cujos escritos se decantaram em ancoragens e ossos, cada um com seu grão de (não) saber.
A partir desta perspectiva, uma questão, entre várias, se apresenta como um divino detalhe: o tempo. O tempo, em uma experiência de análise, não segue apenas em uma direção. Ele também implica uma certa possibilidade de revisitar e, ao mesmo tempo, de ressignificar aquilo que, do passado ou mesmo do futuro imaginado, resta como fio solto. Não que todos os sentidos se fechem numa análise. Não se trata disso, mas muito mais de algo que se coloca entre construção e arranjo, contando com um bom uso, um uso possível da contingência. Assim, quando nos perguntamos “cadê o gozo?”, o tempo também se apresenta como um elemento de localização importante.
Vimos algo disso, como uma entrelinha sutil, em cada um dos textos que passou por este boletim P U L S a R. Há o tempo da pressa pela satisfação – tão emblemático em nossa época –, há o tempo das entradas em análise e há o tempo das análises que duram. Muitas vezes, no sabor mais próprio do après-coup, esses tempos se entrechocam e produzem tantos os lampejos de um saber novo quanto os estilhaços daquela satisfação que permanecerá apenas como sonho ou virtualidade espectral que esconde, no seu reverso, as declinações da inexistência da relação sexual. Lacan, ao propor as sessões de tempo variável, não estava abrindo espaço justamente para colhermos algo da lógica do gozo de cada um, daquele gozo que se repete ou se embaraça na sucessão e na reversão dos acontecimentos que perfazem uma vida?
Em A erótica do tempo, Jacques-Alain Miller assinala que “o inconsciente resulta da temporalidade da experiência analítica”[1] e vai além ao sustentar que o analista, como sujeito suposto saber, encarna na atualidade aquilo que remete ao passado do analisante, como inscrição passada da fala: “O tempo do analisante é regido pelo ainda não, por um ainda não saber, enquanto o tempo do analista, o tempo como analista, é regido por um já está aí, pelo saber já aí”[2]. Seria, portanto, em função disso que as intervenções e interpretações do analista poderiam estabelecer uma conexão entre o inconsciente atemporal e o presente de cada um dos analisantes. Trata-se, contudo, de um modo de fazer uso do tempo que não se desfaz dos efeitos de surpresa – afinal, são eles que também permitem que algo ressoe, que um intervalo se interponha entre S1 e S2, que um sentido pesado demais se suspenda e eventualmente se reabra, que uma nova leitura possa surgir com auxílio do vazio criado pelo silêncio do analista.
Por outro lado, para que as surpresas não se diluam em palavrório, Miller também destaca que cabe ao analista não passar por cima do tempo que caracteriza as entrevistas preliminares, pois são elas que reinstauram um automaton, “um aparelho que permite prever as respostas futuras […] é necessário que isso dure um certo tempo para que seja possível verificar a regularidade da resposta. É aí que é possível de fato se inscrever o imprevisto, imprevisto que de fato constitui acontecimento”[3]. Desse modo, uma análise pode se constituir inclusive enquanto remanejamento das condições que existiam antes, possibilitando uma nova aposta. Trabalhar com o tempo em suas dimensões atemporal e infinita, trazendo para as sessões “um elemento suplementar, equivalente ao ponto no infinito”[4], como escreve Miller, aí está o dia a dia do analista.
Em seus desdobramentos lógicos, instante de ver e tempo de compreender acompanham esse acontecimento que é uma análise, mas também uma jornada de psicanálise, cujo momento de concluir se abrirá para possibilidades de saber-fazer, para um outro modo de viver a pulsão, circunscrevendo arranjos possíveis para lidar com a não-relação entre saber e gozo. Saber fazer com o que muda e com o que não muda, com o gozo do qual se pode falar e com o gozo do qual não se fala, opaco ao sentido, e que se apresenta a partir de um acontecimento de corpo, que chamamos o choque de lalíngua no corpo. Uma aposta que visa manter pulsante o desejo de saber, o qual é um farol na formação e na vida da Escola.
Seguimos então, rumo à jornada, lugar onde o bom encontro se dá no laço com o Outro e, nesse encontro em especial, também com nossas convidadas, Marina Recalde e Ondina Machado. Seguimos, também, com Paulo Leminski, o polaco curitibano:
Óbvio o título desta legião de enredos.
Gozo fabuloso só pode ser o delírio combinatório de extrair do restrito infinito dos entrechos possíveis uma história sem par, delícia só comparável à de cantar uma canção bonita[5].
Até breve!
[1] Miller, Jacques-Alain. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: EBP, 2000, p. 29.
[2] Idem, p. 53.
[3] Idem, p. 56.
[4] Idem, p. 38.
[5] Leminski, Paulo. Gozo fabuloso. São Paulo: Todavia, 2025.