#04 - SETEMBRO 2024
Um cabideiro!
Andréa Tochetto
Na primeira Preparatória para o XXV EBCF, algo me toca, fisga minha atenção de tal forma que a reação que tenho é olhar para meu amigo ao lado e dizer: “oi, foi isso mesmo que ouvi?” – “o imaginário é o corpo”?Esse fragmento ecoa. O dito toca o corpo e não encontro aporte para explicar. Eis o que me pôs a trabalho.
Um corpo tem uma grafia, um desenho, uma forma, um limite entre o dentro fora. Um campo biológico em um mapa exterior. Um corpo que desliza em um mundo com outros corpos, que compõem uma coreografia nos laços que se estabelecem no decorrer deste deslizamento. Como uma dança, mas que não se dança só.
Assim sigo fazendo uso de significantes e, na tentativa de localizar esse dito, me dirijo ao Seminário 19, na Lição XVI – Os corpos aprisionados pelo discurso. Desde ali o uso de aprisionados novamente me convoca. O termo também é discussão no meio e acompanho algumas conversações. Aprisionados me parece um uso justo, mas também parece uma palavra rígida. Justo, porque aprisionado contém a descrição daquele que se aprisionou, que foi cativado pelo discurso. E uma palavra rígida, porque fisgado pelo discurso me parece também a palavra ideal. É um dilema? Uma escolha a se fazer?
Faço uma rápida elaboração, uma imaginarização, para me ajudar a compreender esse: “o imaginário é o corpo”. Em minha casa, logo na entrada tenho um desses cabideiros de chão. Nele, os que entram depositam casacos, casaquinhos, blusas, bermudas, bonés, chapéus, bolsas e até peruca… uma infinidade de trecos que usamos para recobrir o corpo na relação com o mundo fora de casa. Volta e meia faz-se necessário uma limpeza, mas algo sempre fica. Não me lembro, desde o momento que ele começou a operar nesta casa, de ele ter ficado nu. Sempre um resto das relações permanece.
Esse cabideiro é um objeto inanimado. No entanto, minha analogia faz-se a partir da substância gozante. Essa substância que de entrada recebe do Outro significantes, que são nomeados pelo Outro, que formam cadeia, e assim constrói imagem de si. E ali, entre um significante e outro, uma hiância, um objeto de constituição lógica, de causa do desejo.
Lacan no Sem. 20 me traz uma chave: “esse imaginário, eu o designei expressamente com o I aqui isolado do termo imaginário. Não é senão a vestimenta da imagem de si, que vem envolver o objeto causa do desejo, que se sustenta mais frequentemente – é mesmo a articulação da análise – a relação objetal.”[1]
O imaginário que tantas vezes e tantas vezes frequentou os seminários de Lacan, em mais ou menos evidência, com menor ou maior credibilidade, esse imaginário que não é imagem, mas como diz Brousse “trata-se do poder de uma imagem como real… é algo que tem um poder imediatamente eficaz, consequências, no real mais real.”[2]
Meu cabideiro funcionou até aqui.
Sigo meus deslizamentos e, novamente, me detenho no texto dos Corpos aprisionados, e já na primeira página está lá O aturdito: “Que se diga, como fato, fica esquecido por traz do que é dito, no que se ouve”[3] e é a ele que retorno.
O que fica esquecido em meu cabideiro está do lado da existência, nele destaca-se o que se veste, e por vesti-lo de resto do que é dito (usado), uma parafernália de coisas o recobre. Não se pode mais vê-lo como cabideiro, já que está vestido. Sua função está recoberta. Aprisionada ou fisgada? Não sei!
O ponto a que chego nesse momento é que esse exemplo é “assertivo por sua forma”, por ora, e pertence ao que é provável ou possível “pelo que emite de existência”, e embora muito se possa dizer, pelos penduricalhos, dos que ali decantaram algo, ainda assim será um meio dito![4]
Seria este o trabalho de uma análise? Retirar parte das parafernálias que recobrem, para restituir ao cabideiro a função de ser suporte, sem vergar?
E, tirando as histórias de contos de fadas, um cabideiro não dança com outro cabideiro!
Estes foram alguns dos deslizamentos em torno do que permanece como causa: “o imaginário é o corpo” .